“…Antes de começarmos a fazer uma coisa, devemos estudá-la bem, para sabermos se vale ou não a pena fazê-la e não começar a fazê-la para depois deixar. Portanto, perfeição, aproveitar bem o tempo e ter o sentido prático das nossas realizações, capacidade de realizar até ao fim cada obra, cada coisa que temos para fazer, é muito importante camaradas, fundamental na nossa cultura, camaradas”.

Amílcar Cabral

 

Nestas linhas que seguem faremos algumas reflexões sobre possibilidades de construções em meio aos bits que correm nas veias cibernéticas da sociedade contemporânea. A empreitada alavanca-se às demandas da comunicação digital que atravessam sem perguntar as ciências, ditas humanas de um lado, e do outro, tende a ser um diálogo com conhecimentos tecnicistas absorvidos outrora e que hoje se apresentam a nós como campo de mandinga para vingar outros mundos. Estarmos atentos a dissecar diferentes combinações de coexistência. Esse é o nosso ponto.

Precisamos mergulhar em campos de possibilidades, pois sem eles acreditamos que costurar mundos dentro, somente do existente, é recriar amalgamas que desencadearão mesmices. Quanto vale se jogar no instável? Optar pelo certo ao invés do duvidoso nos fornece quais chances de erradicar problemas secularmente vivos nas entranhas da sociedade brasileira? A sua sensação cotidiana é do jogo jogado? Sem movimento das partes há jogo? Perguntamos para gerar cabulosos parafusos, dar nós, desatar e recriar outros. Chacoalhar é o propósito da brincadeira de hoje.

Aqui somos plena infancialização. Infancialização, na filosofia afroperspectivista, é uma condição do viver. Aquela que possibilita a invenção de novos modos de vida (NOGUERA, 2018). Somos Esù Enugbarijó, esù elegbara cujos domínios são do comer e restituir de outra forma. Somos o Pastinha assentado na capoeira, na qual tudo que a boca come é tudo o que o corpo dá. E do dinamismo corpóreo criar possibilidades (SIMAS, RUFINO, 2018). Estamos a atirar a pedra hoje que matou o pássaro ontem. Nesse vão não estamos a inventar a roda, mas a rasgar o verbo, rasurar a verdade ainda restrita às pessoas vistas como autorizadas para afirmar a fixidez do ser ou apontar outras fixidezes.

Dentro deste terreno nos colocamos com o intuito de abrir espaço para a produção de conhecimento cibernética. Faz-se necessário porque entendemos ser uma das pontes de consolidação do relacionamento social intensivo das últimas décadas. Porém, entrar nesta dimensão é perceber o ambiente sob interesses privados. A produção das linhas de comando das ditas grandes comunicações são fechadas e bem controladas. Aliás, essa questão sempre foi alvo de grandes debates com Richard Stallman, Lawrence Lessig entre outras/os. A briga era dura e a discordância sobre a privatização de códigos e conhecimento sempre foi acirrada. Não menos que décadas de debates até estarmos nessa toada da internet das coisas, em que a maioria dos objetos tem um protocolo de identificação e se comunica com outros dispositivos tendo como limite a imaginação das programadoras e programadores.

Bom, mas como o mundo não é separado entre áreas do conhecimento como a modernidade tentou imprimir, o problema colonial do raciocínio monolítico também transpassa, ainda mais forte, as ciências ditas exatas. As relações digitais são marcadas basicamente com a comunicação técnica de bit 1 (um) e bit 0 (zero). Tal quanto a exacerbação da subjetividade ocidental. Razão e não razão.  1 (um) é verdadeiro e 0 (zero) falso. Temos que ter em mente que as áreas do conhecimento se misturam, dialogam e cumprem uma agenda tristemente condicionada à lógica do bem e mal; bom e ruim; como já dito razão e não razão; saber e não saber. Nada diferente no mundo digital: um pulso está comunicando; não pulso, não comunicando. O problema, a princípio, não seria a comunicação técnica restrita do um e zero, mas a sua restrição de conhecimento ao campo do privado.

Há décadas os algoritmos não são partilhados na rede e esse é um dos maiores dilemas desse quiprocó. É importante expor o seguinte aspecto: a disputa de poder alicerçada nos valores capitalistas cresce, imbricam e a cada segundo criam novas anomalias no comportamento coletivo. Essa condição construída ao longo dos séculos, nas mais diversas áreas, permeia também as ciências exatas e causa o choque discutido desde meados do pós-guerra sobre como usar a internet. Perguntas surgem: da forma como a comunicação é feita pode ser algo compartilhado? Quem pode programar? Qual a ideia de internet? Todas essas questões estão dentro do círculo de produção do conhecimento da comunicação humana. Eles são fundamentais para que hoje a predominância de uso de algumas marcas seja hegemônica. Microsoft, Apple, Facebook, Amazon, Dell, Cisco, Google, Uber, Xiomi, Intel e afins estão dentro do que consideramos algumas delas.

Em suma, temos uma gama de produção de serviços digitais que impactam nossas vidas cotidianamente no micro e macroespaços. Como resultado comprimiram o espaço pelo tempo (SODRÉ, 2017). Não temos acesso ao modo como funcionam, não sabemos quanto de dados absorvem das usuárias e dos usuários, como articulam entre si e muito menos quais são as produções já pensadas. Um exemplo é a Intel, produtora de processadores para dispositivos mobiles e não mobiles, que sempre esteve 10 anos à frente de seus lançamentos. Em outras palavras, ela realiza lançamentos, embora em seus laboratórios há produção ainda não vendidas ao público consumidor.

Podemos pensar a Cisco, empresa responsável, em larga medida, por prover a comunicação ultramarina entre os continentes via seus equipamentos de rede. Estamos nesse contexto dentro de um oligopólio de empresas cujos bits vão e vem e nós não podemos saber como funcionam. Sem contar que muitas dessas empresas estão alinhadas com governos para manutenção de seus locais de poder na capitalização do mundo. Precisamos entender primeiramente que deste mato não sai coelho e se sair é isca para sermos absorvidos dentro de algumas dessas corporações. Leia mais sobre o caso da CyanogenMod, por exemplo. Não há disputa onde a regra do jogo quem faz são aquelas/es que dão as cartadas.

O cerco parece muito fechado realmente e, por isso, é necessário rodopiar para além do que está posto. Se pensarmos que estamos a utilizar uma pequena parte da internet, de forma muito precária, podemos instigar nossa imaginação e atender outras lógicas de relação humana dentro do contexto digital e que almejam relações. Como dizem os mais velhos, olho no olho, consequentemente. Bem, antes de chegar na cartada final temos que pensar alguns quereres que dispomos e que implicaram na nossa proposta. Entendemos que a modernidade foi mais uma forma de domesticar certa parte do mundo, assim, a eurásia tendeu ser o centro da humanidade quanto referência e, logo após, os norte-americanos adentraram na disputa. Hoje, o mundo vê outras grandes famílias querendo realizar o mesmo bote quando observa a China.

Enfim, como estamos a defender o afastamento da lógica monolítica, da visualização de centralidade no uno, de teleologia etapista e afins, reforçamos que a questão da representatividade e alteridade se encontram em declínio. Então, queremos partir do seguinte fio da meada: toda pessoa pode falar por si, bem como seu grupo de identificação deve ocupar o lugar de decisão com os demais diferentes. Qualquer coisa que fuja dessa percepção tende a cair numa colonialidade novamente. Ainda somos viciadas/os em rejeitar o diferente e radicalidade é o ponta pé inicial da proposta.

Precisamos estimular que essa relação social de decisão coletiva aconteça e nesse momento entraria a primeira parte da proposta. Necessitamos de uma educação digital que nos defronte com os anseios civilizatórios de coletividade e afeto. Afeto aqui seria uma aglomeração de sentimentos que façam de fato aguçar a alteridade entre as diferenças e não simplesmente o processo dissimulado que a racionalidade tem promovido há séculos. Nesse jogo de combinações e trocas podemos pensar a oferta que o Linux nos presenteia. Linux é um sistema operacional que tem como princípio a produção do sistema de forma coletiva. Diversas pessoas do mundo podem ter o sistema da forma que bem entende e até mesmo ajudar outras a construírem aquilo que deseja.

Para tanto, temos algumas regras: a produção dos sistemas é feita para o usufruto das pessoas e do bem comum; a imaginação deve ser para que todas as subjetividades possam ser acolhidas e terem seus espaços de criação; o diferente é uma concepção que permeia todo o processo, pois vemos a combinação desses diferentes como algo que potencializa resolução de problemas. Então, temos uma comunidade intersubjetiva. Ou seja, estamos diante uma proposta biocêntrica (KAKOZI, 2017), na qual a epistemologia do Ntu seja acionada quanto princípio basilar daquelas/es que estejam nessa circulação de vida (MALOMALO, 2017).

Essa mandinga toda se faz latente para darmos cabo de um mundo sem encante. A produção coletiva de códigos do mundo cibernético nos oferece um tratamento suleador, uma vez que estamos a adentrar uma máxima filosófica negro-africana (RAMOSE, 2002; LUZ, 2017; SIMAS, RUFINO, 2018) em que ser reconhecido como humano perpassa pela afirmação da outra pessoa que coexiste contigo. Não basta mais se autonomear como tal. O ser porque nós somos, ou em idiomas sul africanos zulu e xhosa que significa “humanidade para todos” (NASCIMENTO, 2014).

Essa prática afina-se com uma outra, que para nós é imprescindível, de modo que estamos alinhados com a ocupação do espaço pelos corpos para produção da vida. Precisamos de ambientes que coloquem os seres vivos para trocar. Trocar as diferenças, combinar o distinto, trocar o que tem e o que não se tem. Se temos o meio que seria a produção de um mundo cibernético por meio do Linux, a elevação das relações sociais entre seres vivos torna-se a ordem dia para implicar novos mundos. É o pisar na terra que firma o viver e nele coaduna a existência (BENISTE, 2016).

Pode parecer que estamos muito longe de alcançar o proposto. Pode ser, mas preservamos a necessidade de nos jogarmos no instável. Ir para o jogo. Fazer o movimento movimentar. Nesse balançar as condições vão se mostrar e a avaliação constante do caminho a ser percorrido também se consolida coletivamente. Como não inventamos nada do nada. Nosso ponto filosófico existencial sempre se manifesta imbricado da ancestralidade para a com a futuridade vivida na condição da palavra presente (LUZ, 2017). A temporalidade não se quebra e apresenta-se em três, pois aqui não existe morte. As experiências não ficam e também não virão, elas sempre são. Sendo assim, incorporamos o Grupo de Estudos Sobre Intelectualidades Pretas – Lélia Gonzalez. Observamos nele uma característica interessante que pode ser a ponte de condição para ampliar as relações de mundo cibernética.

O grupo de estudos foi pensado a partir da necessidade de oxigenar a produção epistemológica via a escrita de sujeitos marginalizados politicamente pela academia. Nesse sentido, algumas pessoas se organizam e defendem um alargamento de produção teórico-prática existente nas áfricas e suas diásporas. Construímos dada ambiente por meio do Incentivo a Diversidade e a Convivência da Universidade Federal de Ouro Preto com base em encontros que fomentasse a construção de reflexões descentralizadas e coloridas no que tange a construção de conhecimento. Nada novo, mas necessário para o cenário do Instituto de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de Ouro Preto. Neste grupo invertemos e assinalamos bioepistemologicamente (MALOMALO, 2017) a fim de entender que o conhecimento não está afastado de quem o produz. A produção corta diretamente a vida privada das pessoas que a inscrevem.

Então, no GESIP, não estamos distantes das referências que lemos, pois são questões presentes na vida cotidiana. Isso é muito diferente de dizer que estamos a abarcar todas e todos seres vivos, que somos universais. Falamos de um ponto de vista e que ocupa um dado espaço no mundo. Seria esta condição permeada pelo GESIP de convivência analógica que podemos pensar a produção de um mundo digital permeado pelo uso do Linux que possui as mesmas formas de lidar com o nosso cotidiano. Pensamos, assim, uma agenda de produção coletiva do mundo digital via Linux. São vários encontros nos quais cada qual responde pelo si-coletivo a fim do bem comum. Estamos consolidando uma possibilidade de filosofar uma experiência de pontes infancializadas que a afroperspectividade cobre, recobre e o mais importante: deixa sempre caminhos abertos para novas criatividades de mundos.

A ressalva, precisa ser reforçada, e é sempre bem-vinda: o Brasil ainda é um território onde a dissimulação, em grande medida, é usada pelos sujeitos universais para continuarem com seus lugares de poder bem assegurados. Nesse sentido, nossa proposta tende a falhar. A coisa somente funciona se a abertura de gestão a partir de experiências de matrizes epistemológicas não ocidentais que estão inseridas em nosso dia a dia forem ativadas. Seja de matrizes indígenas ou africanas. Eis o pulo do gato: a proposta biocêntrica tem de ser feita por estas pessoas, pois ambas se combinam, apesar de não misturar. Ler sobre já não é mais suficiente. Precisamos de uma gestão posta por pessoas ontológica e epistemologicamente imbricadas pelas noções de vida a qual anunciamos. Aos sujeitos universais cabe se permitir refletir e abrir espaço para outros corpos tentarem resolver problemas coloniais seculares deste chamado Pindorama.

Nas palavras salivadas acima identificamos algumas permanências existentes nas condições de vida cibernética que a modernidade concretizou. Além disso navegamos por outros mares que também estão dentro do mundo cibernético, mas que não estão dentro da Logos capitalista das grandes corporações. Defendemos que nessa fresta é preciso adentrar e nela firmar ponto de recomeço do ser, pois neste momento ajustamos nossas programações de ambientes de partilha. Não precisamos disputar ambientes fechados, da mono-vida, da anti-bios. Temos outros ainda não declarados e que podemos trazer ao ser.

Nesse momento que amarramos o sistema operacional Linux e GESIP como experiências distintas, mas importantes porque ao nosso ver se combinam e recriam possíveis mundos que saem da lógica estabelecida pelo status quo. Isso somente será possível se não tivermos que conservar alguns status de poder do agora que estão ladeados pelas verdades de algumas autorizadas e autorizados. Este novo terreno pode qualificar outro território brasileiro que respire o que se é: de tudo um pouco e um pouco de nada ainda vivido pelos sujeitos de fronteira.

 

 

 

 


EBÓ

BENISTE, José. Mitos Yorubá: o outro lado do conhecimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016.

KASHINDI, Jean-Bosco Kakozi. Ubuntu Como ética africana, humanista e inclusiva. Cardernos IHUideias, São Leopoldo, n° 254, vol. 15, p. 03-24, 2003.

LESSIG, Lawrence. Free Culture – how big media uses technology and the law to lock down culture and control creativity. New York: The Penguin Press, 2004.

LUZ, Marco Aurélio. Agadá – Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. 4a edição. Salvador: EDUFBA, 2017, p. 15-166.

MALOMALO. Bas ́Ilele. Estudos Africana ou Estudos Africanos: Um campo em processo de consolidação desde a diáspora africana no Brasil. Capoeira – Revista de Humanidades e Letras, Vol.3, No. 2, Ano 2017, p. 15-50.

MAZAMA, Ama. Afrocentricidade como um novo paradigma. In NASCIMENTO, Elisa Larkin. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. Tradução Carlos Alberto Medeiros. São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 111 – 128.

NASCIMENTO, Alexandre do. Ubuntu como fundamento. UJIMA – Revista de Estudos Culturais e Afrobrasileiros. Número XX, Ano XX, 2014.

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SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: as ciências encantadas das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Rio de Janeiro: Vozes, 2017, p. 7-109.

SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência. Poesia, Grafite, Música, Dança: hip-hop. São Paulo: Editora Parábola, 2011.

 

 

 


Créditos na imagem: Ikire Jones.

 

 

 

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