Vera gata
gata vera

 

verdadeira gata
gata verdadeira

 

1

Há dias em que não quero a feira, nem ela me merece, nem merece crônica, nem poema. Não é uma questão de contexto, nem de circunstância, nem de ocasião. É cotexto. É junto do texto, com o texto. E não é porque juntinho é que fica bom. É porque as coisas correm juntas, concorrem. Muita vez, se prefere separar, compartimentar. Se eu caso, se compro bicicleta. Se eu fico ou se vou. Se eu subo aos ares, não fico no chão. E os dias são isto e aquilo. E são isto ou aquilo.

Fui à feira. Nela, vende-se um excelente queijo meia cura que atende muito a meu paladar. E era apenas o que precisava de imediato, tendo finalizado o queijo que tinha em casa no café da manhã de hoje.

Sem uma palavra, sem um olhar e com a preguiça de ir à feira e de tomar os cuidados sanitários de quem vive em uma situação de pandemia, em cuja ocasião é pandêmica, de quem vive junto a outros em mesmas condições, fui às barracas de rua na rua onde moro.

Passei pelo verdureiro. Não resisti, comprei acelga chinesa, agrião, espinafre e cenouras com as ramas. Comprei o queijo. Voltei para casa me fazendo de invisível para que o fruteiro não me visse, uma vez que não compraria frutas.

Desde criança eu aprendi com meus primos mais velhos a ficar invisível. De primeiro, não gostava. Eles é que me faziam de invisível. Era uma brincadeira, talvez, sem graça. Depois, eu aprendi que eu mesmo podia me fazer invisível a depender da situação, da ocasião, do cotexto, das circunstâncias. E quando isso era feito a meu favor, de modo adequado a mim, para meu benefício, enfim, era bom.

Eu gostei disso. É um pouco de meu pai essa espécie de se envergonhar por ir à feira e não fazer compras em uma das barracas costumeiras, nas quais semanalmente vou.

Uma amiga diz que sou um escritor que desconcerta o leitor. Mal sabe ela o quanto algumas coisas me desconcertam.

Compras feitas na barraca do Ricardo, o menino dos queijos e quejandos, compra feita no verdureiro, desci a rua até minha casa pela calçada, de modo que as barracas e caminhões estacionados me escondessem do fruteiro.

Vim meio que me esgueirando. Se eu implico com o conceito de contexto é porque de fácil uso e porque de muito abuso. Ele deve ser esse esgueirar do sentido das coisas ditas, das coisas vividas. É como se fosse algo exterior ao texto que serve para desculpas, isenções. O escondido do sentido voltando pra casa.

Hoje eu quero uma pausa de mil compassos. E ouvir Ana Virginia Pinheiro falar de livros raros. E ouvir Temístocles César conversar com outros historiadores. Desculpem-me os linguistas, os fruteiros e os outros mercadores, mas hoje, para vocês e para o fruteiro, estou invisível, fora do contexto e no cotexto.

 

2

No metrô, a moça de calça com rasgos proeminentes nos joelhos, sentada à minha frente, me fez lembrar-me de Nara Leão.

Se perguntasse à moça se ela conhece Nara Leão ou se sabe quem é, certamente não conheceria Nara, nem saberia me dizer quem ela é.

Se eu a dissesse que os rasgos nos joelhos, de suas calças, me fazem lembra-me Nara, a moça do metrô, sentada à minha frente, acharia estranho. Não veria relação.

Nara Leão, para além de ter sido excelente intérprete, ter aberto as portas de sua casa para a Bossa Nova quase toda tocar violão e cantar em sua sala de estar, ficou conhecida por ter joelhos bonitos, lindos, lindíssimos, joelhos tesudos, um puta de um tesão de par de joelhos.

Mas joelhos? Joelho não é aquela parte do corpo que recém-nascidos se parecem nos primeiros dias, nas primeiras semanas ou até meses logo após o parto?

É preciso lembrar que Nara Leão tocava violão e cantava. Sentada num banquinho, cruzava as pernas. Seus joelhos ficavam à mostra, em primeiro plano.

Isso foi na década de 50 do século passado. Nara surgiu antes da revolução sexual. Antes, praticamente, da pílula anticoncepcional.

Não vou explicar moral anos 50 no Brasil. Vou me ater aos joelhos, que era parte à mostra, visível, assim como foram tornozelos no século XIX.

Calças com rasgos nos joelhos, depois de me fazerem lembrar-me Nara Leão, me lembraram de que nos anos 90 eu ia à faculdade de jeans com rasgos nos joelhos e minhas professoras de Letras reclamavam.

Vai ver meus joelhos fossem feios, peludos, não belos como os de Nara Leão. Eu era cobrado a usar roupas “mais apropriadas” para um professor. Argumentava que era aluno. Não era professor ainda.

Hoje, professor, já não uso mais calças com rasgos em parte alguma.

Além de me lembrar de Nara quando vejo joelhos juvenis, penso, num dia como o de hoje, de inverno com garoa, que a moça sentada à minha frente no metrô talvez apenas tenha provocado frio em si mesma.

Nos outros talvez não tenha provocado nada, pois todos olhavam para seus celulares. Ela mesma olhava para seu celular. Eu, apenas olhava para minhas memórias. Olhava para a relação entre as coisas.

Não era para os joelhos da moça que eu olhava. Não era para o visível que eu olhava. Visto eu olhava para o não visto e o não visto era visto.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Cotidiano. Foto: Chronosfer.

 

 

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