Si vous avez de la peine: feminismo e musicologia em Amélia de Mesquita              

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Amélia de Mesquita (1866-1954) nasceu no Rio de Janeiro e iniciou seus estudos em música na infância, no colégio São Vicente de Paula, onde se destacava ao piano. Segundo Alexandro Paixão e Patrícia Amorim de Paula (2021), Mesquita seguiria alguns anos mais tarde para França com a família para concorrer a uma vaga no Conservatório de Música de Paris. Seu irmão Carlos de Mesquita (1870-1916), que também era músico, viria a ser muito conhecido por ser o primeiro compositor de obras modernas para cravo. Ele foi aprovado antes da irmã e tornou-se o seu primeiro professor. Alguns anos depois, Amélia também conseguiu o ingresso na instituição e teve aulas de composição com Jules Massenet, de piano com Antoine-François Marmontel, de órgão com César Franck e de harmonia com Émile Durand. Após a sua volta ao Brasil, em 1885, a artista passou a desenvolver uma série de atividades como professora de piano, de órgão e de harmonia, como solista em orquestras e como compositora. Amélia de Mesquita é a primeira brasileira a compor uma missa inteira, dedicando-se com afinco à música sacra, assim como às canções, sendo publicamente reconhecida como uma artista (termo raramente associado às mulheres que se dedicavam à arte nesse período, ainda que de forma profissional e autônoma) por conta das suas composições e das suas execuções.

A música Si vous avez de la peine foi composta em 1934 e, para este breve artigo, alguns aspectos musicológicos podem ser apontados de forma a possibilitar o entendimento das relações entre gênero na cena musical da passagem do século XIX para o XX. A começar pelo título e pela letra da composição, observamos que se trata de uma mensagem de amizade, de empatia e de companheirismo nas horas difíceis:

 

Se estiver a sofrer

se uma tristeza tornou a sua vida má e desagradável

é necessário que um coração o compreenda

vem até mim, meu amigo

a alegria que somos se inflama

 

Primeira página da partitura de Si vous avez de la peine. Fonte: fotografada pela autora, 2023.

Na partitura da música, impressa e vendida à época pela Casa Arthur Napoleão, um estabelecimento especializado em pianos e em outros instrumentos, temos a informação de que a letra foi escrita pela poetisa, jornalista e ativista Maria Eugênia Celso Carneiro de Mendonça (1886-1963). Filha do historiador e membro do Instituto Histórico e Geográfico (IHGB), Afonso Celso, foi ativista do movimento feminista brasileiro ao lado de Bertha Lutz (1894-1976) na primeira década do século XX. Maria Eugênia foi representante do Brasil no II Congresso Internacional Feminista ocorrido no Rio de Janeiro, em 1931. Foi, também, vice-presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. No ano em que Si vous avez de la peine foi escrita, Maria Eugênia Celso redigiu e divulgou a nível nacional, junto a Lutz e outras colegas, o Manifesto Feminino ou Declaração dos Direitos das Mulheres, importantes documentos que apontavam para o reconhecimento e para a valorização dos direitos femininos de 1ª, 2ª e 3ª geração.

Reunião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1930. Fonte: https://www.todapolitica.com/movimento-feminista-brasil/

 

A melodia da canção, composta por Amélia de Mesquita em moderato, revela, logo de início, o conhecimento por parte da compositora acerca das principais características da Música Barroca. A introdução lembra a escrita para órgão de tubos (instrumentos muito presentes até hoje em igrejas históricas do Brasil, por exemplo) e a escrita polifônica para Música Antiga, ou Música Barroca. A melodia possui como um dos aspectos mais marcantes o uso das pausas em suspirans. Esta técnica, quando executada, faz lembrar os suspiros e soluços causados pelas emoções de tristeza e de angústia. Há, no entanto, uma mudança gradual que dialoga com a mensagem de esperança da letra. As pausas dão lugar a uma melodia mais alegre e fluída, mas se alternam, dando a sensação de quando estamos sendo acolhidos e consolados por uma/um amiga/o. A musicalidade barroca, não por acaso, se utiliza muito da Teoria dos Afetos, que movimenta e conjuga as diversas emoções do público através das letras e melodias.

Um terceiro aspecto tão relevante quanto os acima mencionados refere-se à dedicatória da música. Amélia de Mesquita e Maria Eugênia Celso a compuseram para Gilda Mesquita B. Dubet, de quem não dispomos de muitas informações, ao menos nesses primeiros momentos de pesquisa. Encontramos, entretanto, um registro da sua participação em um abaixo-assinado enviado à Getúlio Vargas (1882-1954), chefe do então Governo Provisório, em 1932. No documento, várias signatárias questionam a falta de inclusão e de indicação de mulheres para participar da elaboração do por elas chamado de “ante-projeto da Constituiçãoa ser redigido em 1934. Registram, também, a indicação de Bertha Lutz para representante feminina na referida atividade legislativa. Outras questões aparecem implícitas, como a crítica à tutela das mulheres e a tomada de decisões referentes a elas por outrem, ou seja, que eram, então, realizadas por homens.

A partir da década de 1920, as manifestações feministas se tornariam mais frequentes no Brasil e ganhariam mais adeptas. Destacamos que, da mesma forma como fazem Mesquita e Celso nesta composição, outras artistas das mais variadas linguagens também se utilizaram dos seus artefatos e das suas performances como forma de manifestação e de ativismo político-social. É o caso, por exemplo, da pintora Georgina de Albuquerque (1885-1962) e da sua premiada obra Sessão do Conselho de Estado que decidiu a Independência (1922).[1]. Assim sendo, conclui-se que a análise musicológica, tanto quanto a análise iconológica, é extremamente válida e necessária aos estudos feministas e de gênero em geral, para além de permitirem a identificação de aspectos relacionados à formação educacional e aos processos criativos das musicistas brasileiras.

 

 

 


BIBLIOGRAFIA:

PAIXÃO, Alexandro Henrique; DE PAULA, Patrícia Amorim. Os modos de vida das musicistas no Rio de Janeiro oitocentista. Revista EM PAUTA. Rio de Janeiro: 1º Semestre de 2021, n. 47, v. 19, p. 202-216.

 

 

 


NOTAS

[1] Ver o texto Retratos, publicado, anteriormente, nesta coluna.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Obra Charles Courtney Curran (1910)

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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