O Vale do Jequitinhonha, sobretudo nas primeiras décadas do século XXI, passou a ser conhecido internacionalmente pela sua cultura, especialmente a partir de 2004, quando dona Isabel Mendes da Cunha ganhou em primeiro lugar o prêmio Unesco de Artesanato para a América Latina. Dona Isabel, nascida em 1924 e falecida em outubro de 2014, foi uma ceramista e escultora que abriu portas e solidificou caminhos para a arte e o artesanato ceramista da região. Residente no distrito de Santana do Araçuaí, no atual município de Ponto dos Volantes/médio Jequitinhonha, ela ficou conhecida pelas famosas bonecas esculpidas na argila que através da linguagem artística contam a vida de tantas outras mulheres do Jequitinhonha.
Falar da arte ceramista do Jequitinhonha é falar de vida. Neste entrelace de arte e vida, muitas histórias e mulheres são alinhavadas pelos fios da memória e da ancestralidade. Por isso, é importante dizer que o artesanato ceramista da região do Jequitinhonha é uma atividade secular, oriunda de diversas etnias indígenas que habitaram e que ainda habitam o que hoje conhecemos como vales do Jequitinhonha e Mucuri, no nordeste mineiro. Esta herança cultural ficou latente nas comunidades rurais que utilizaram ao longo do tempo, o saber fazer ceramista para fabricar utensílios de uso doméstico como panelas, potes, pratos e xícaras para uso próprio e eventual comercialização no mercado local. Nos últimos anos, os ceramistas do Jequitinhonha alcançaram espaço no mercado nacional e internacional da arte, a partir das trilhas pioneiras abertas por dona Izabel com a comercialização de suas bonecas modeladas em argila.
No Jequitinhonha, normalmente, a aprendizagem na arte de modelar o barro inicia-se na infância, através da observação da atividade materna ou de alguma vizinha/vizinho que domina o ofício ceramista. Dona Izabel Mendes da Cunha, em entrevista concedida ao Museu da Pessoa em 2007, relatou que a sua aprendizagem ceramista ocorreu ao observar a própria mãe que fabricava peças utilitárias para vender aos vizinhos. Assim ela relatou:
nós morávamos na Fazenda dos Homens. Mas meu pai trabalhava mexendo com roça, fazendo roça. E a minha mãe trabalhava. Trabalhava fazendo panela e pote, mexendo com o mesmo barro que a gente hoje mexe. […] Ela fazia essas peças: panela e pote e prato. Essas coisas ela fazia para vender. […] De vez em quando, meu pai levava na cidade, naquelas cidades mais perto1.
Entre a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos e a ausência de bonecas na infância, dona Izabel relatou que aproveitava o tempo de folga para elaborar alguma pecinha em argila.
eu ficava para olhar aqueles meninos de colo que a minha mãe criava, sabe? […] Eu tinha muita vontade de brincar com boneca. […] Nesse tempo, essas bonecas que hoje em dia têm de plástico, de louça, e de massa e tudo o que tem, nesse tempo, lá para as roças, para a gente, não existia. […] Eu falava: “Boneca deve ser assim.” “Ponhava” uns pedacinhos de pau, botava uns bracinhos. […] Depois, via a minha mãe mexendo, fazendo o barro, puxando assim, montando aquelas vasilhas. Aí, eu falava assim: “Eu vou fazer uma bonequinha de barro, para eu brincar.” […] A hora que o menino dormia, eu botava o menino na cama […] e ia fazer a bonequinha2.
Vejam que na matriz cultural da aprendizagem ceramista de dona Izabel a sua mãe está presente. É a mãe a mulher que ensina e inspira o saber fazer brincante. É, portanto, a mulher a protagonista ancestral do ofício ceramista. Foi a partir dessas brincadeiras com o barro na infância que dona Izabel, já na fase adulta, encontrou na sua habilidade artística de modelar o barro uma fonte de geração de renda para auxiliar no sustento de sua família, após o falecimento de seu esposo. Como ela mesma disse, “só com Deus no céu, e” seus “braços na terra”, dona Izabel protagonizou uma mudança de paradigma no mercado da arte ceramista jequitinhonhesa:
já tinha os filhos, tinha os meninos tudo pequenos. O pai morreu, e eu fiquei aí. Só com os filhos. Só com Deus no céu, e meus braços na terra. Trabalhava na roça de mim mesma e dos outros aqui e voltava e mexia com barro. […] Eu pensei assim: “agora, eu vou sair e vou fazer minhas peças, que eu sei fazer. E vou fazê-las grandes. Mas eu vou sair para a Rio-Bahia. […] Lá, eu pegava o carro e ia até essas cidades mais perto.
Ao sair para as cidades vizinhas, dona Izabel conseguiu divulgar a sua atividade ceramista, abrindo espaço no mercado da arte e artesanato para o fazer artístico ceramista do Jequitinhonha, no cenário nacional e internacional. E assim, dona Izabel modelou não apenas as suas peças em tamanho maior, mas também tornou grande os veios das trilhas a serem percorridas pelas gerações e comunidades ceramistas que vieram depois dela. O protagonismo artístico de Dona Izabel é um legado não apenas para a sua família, que mantém vivo o fazer ceramista, mas também é parte do patrimônio cultural que permite que homens e mulheres possam protagonizar através de sua arte o alimento de memórias afetivas e transformem o barro em documento da vida no Jequitinhonha.
NOTAS
1 MUSEU DA PESSOA. Depoimento de Izabel Mendes da Cunha. Entrevistada por Cláudia Leonor e Winny Choe. Santana do Araçuaí, 29/07/2007. Entrevista número MB_HV026.
2 MUSEU DA PESSOA. Depoimento de Izabel Mendes da Cunha. Entrevistada por Cláudia Leonor e Winny Choe. Santana do Araçuaí, 29/07/2007. Entrevista número MB_HV026.
REFERÊNCIAS
MUSEU DA PESSOA. Depoimento de Izabel Mendes da Cunha. Entrevistada por Cláudia Leonor e Winny Choe. Santana do Araçuaí, 29/07/2007. Entrevista número MB_HV026.
Créditos da imagem da capa: Vaso em argila produzido pelas artesãs do município de Minas Novas. Acervo pessoal de Juliana Pereira Ramalho, 2009.
Juliana Pereira Ramalho
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