Os historiadores Paulo Prado (1869-1943) e Manuel Querino (1851-1923) foram sujeitos diferentes que compartilharam determinado tempo e experiências do início do século XX. Encontravam-se em situações sociais, econômicas, espaciais e culturais muitíssimo distintas. Prado, homem branco e membro da elite de São Paulo, era herdeiro de uma empresa de café consolidada, podendo se colocar como protagonista e mecenas de movimentos artísticos, especialmente no modernismo brasileiro paulista (AGUIAR, 2014). Querino, homem negro baiano, órfão ainda criança, adotado por membro da classe média baiana, teve sua vida transformada pelo acesso à educação formal e ao ofício de pintor, trabalhando como professor, intelectual e militante das causas operárias e da população afro-brasileira (LEAL, 2009).
Ainda assim (cada um ao seu modo e em seu espaço físico e social) construíram pesquisas históricas que resultaram em narrativas nas quais o passado era central para a reflexão da ação política e do comportamento social cotidiano entre os sujeitos, ou seja, através de preocupações ético-políticas. Também realizaram seus textos por meio da oscilação entre aquilo que Gumbrecht entende como dois efeitos: o de sentido, que seria aquilo que é do âmbito lógico-formal, do racional, da lógica; o de presença, que diz respeito ao afetivo, ao sensorial, ao estético e daquilo que possui materialidade física tangível (GUMBRECHT, 2009, p. 13). Para isto, e por isto, o ensaio se encontrava como um gênero adequado a uma descrição ágil, ético-politicamente comprometida com determinados passados e que queria oscilar entre o que chamamos aqui de sentido e presença.
Destaco que, apesar de terem existido outras epistemologias nas quais a produção da escrita da história também se tornou possível, no início do século XX brasileiro foi marcante aquela que escolheu o ensaio como gênero de escrita, que foi ético-politicamente orientada e que oscilou entre presença e sentido. Isto pode ser ainda melhor observado através das narrativas, apropriações e ressignificações destas e de outras ideias tratadas em periódicos por diversos autores como João Ribeiro, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Nelson Werneck Sodré, Edson Carneiro, muitos dos quais escreveram textos acerca das publicações de Prado e Querino. Há, aí, uma complexa rede de sociabilidade entre parte da comunidade letrada da época, seus múltiplos espaços e os critérios inclusivos e excludentes de sujeitos, temas e problemas. Ainda, é importante destacar que seus lugares de fala distintos foram fundamentais para que suas produções circulassem e fossem recebidas de formas e por públicos diferentes.
Claro, também precisamos salientar a riqueza e heterogeneidade no que tange às teorias, métodos, perspectivas, ideias, reflexões e temas à época. O que torna possível, por exemplo, o que podemos chamar de certa disputa entre determinadas epistemes ou conjuntos de critérios próprios à constituição de saberes, e em especial, da escrita da história. Em suas complexidades, as leituras destes textos provocam reflexões e questionamentos quanto às escolhas dos nossos cânones historiográficos, das ideias, dos recursos da escrita da história estético-afetivos e logico-formais, de perspectivas ético-políticas, de variabilidades semânticas e conceituais.
Quanto a estas provocações e reflexões a partir destes textos, gostaria de destacar uma delas. Um determinado posicionamento de Prado, que poderíamos chamar inicialmente de ético-político, menciona que as perspectivas racialistas da época estavam equivocadas quanto à ideia violenta da incapacidade para o progresso social e material do Brasil devido à multiplicidade étnica e da miscigenação. Para ele, parece haver uma importância maior do geografismo ou do determinismo espacial, onde a natureza, austera e colossal, dificulta a ocupação humana. Era preciso se justificar no interior de três preocupações características da experiência moderna as quais, é preciso sempre dizer, atropelaram e atropelam violentamente outras cosmovisões e epistemes: progresso e civilização no interior da nação.
Mais ainda, Prado entende que as culturas afetivas que são constituídas nos processos históricos, nas narrativas históricas (não somente naquelas realizadas pelos historiadores) e nas produções artísticas e culturais, possuem efeito mais importante para maior ou menor engajamento social e comunitário dos sujeitos. No ensaio Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928), Prado argumenta que a cobiça e a luxúria foram marcas brutais no processo de colonização do Brasil. Para ele, não haviam outras instituições sociais ou estatais que pudessem mediar de forma eficaz estes excessos e direcionar as energias para uma melhor sociabilidades entres os sujeitos. Ao fim, de forma bastante freudiana, Prado entende que excessos egoístas e egocêntricos (cobiça + luxúria), historicamente estruturados no Brasil, caminharam para uma generalização da incapacidade de saciar desejos, levando a uma auto insatisfação dos sujeitos e da falta de habilidades para o convívio social mais saudável.
Dito isto, pontualmente, Prado indica que os africanos e afro-brasileiros, em condições materiais, afetivas e educacionais adequadas, possuiriam as mesmas aptidões que os brancos. Mesmo assim, quando trata deste tema, em alguns momentos seu ensaio titubeia quanto a esta igualdade de inteligência e ação entre todas as etnias e os grupos considerados por ele como miscigenados. Parece que, para Prado, há alguma insegurança acerca desta equivalência.
Ao lermos o ensaio de Prado, compreendemos que o paulista encara as culturas e a história brasileira de forma pouco heterogênea, e não percebe os africanos, afro-brasileiros e as etnias indígenas como constituintes da formação do Brasil de forma equiparada. Em seu texto, há certa hierarquização que privilegia os europeus e os homens brancos. Para ele, devidamente pareado com muitas das compreensões eurocêntricas e etnocêntricas de sua época, há uma classificação do que entende como “raças” e estágios de desenvolvimento entre elas. Ao fim, Prado não desmistifica, mais alimenta muitas das ideias daquele momento que constituíram o que conhecemos hoje como a falácia da “democracia racial”, a qual entende que há alguma ou total harmonia no convívio entre “negros, brancos e indígenas”. Prado entende que alguma possibilidade de convivência entre estes grupos foi produzida, especialmente, através do ambiente luxurioso que teria convertido a todos. Em seu ensaio, há participação, mas não há protagonismo no que diz respeitos aos afro-brasileiros, as etnias africanas e a dos povos originários.
Com exceção da tematização das etnias indígenas (mencionadas pontualmente), temos o oposto em Querino. Em seus trabalhos, especialmente em A Bahia de Outrora (1916) e O colono preto como fator da civilização brasileira (1918), os africanos e afro-brasileiros são compreendidos como sujeitos centrais das constituições sociais, econômicas, culturais, éticas, afetivas e políticas. São protagonistas de suas histórias individuais, comunitárias, da Bahia e do próprio Brasil. Seus limites apenas estariam contidos devido as desigualdades, as discriminações e outras violências impostas a eles, em especial à precária e terrível condição material, educacional e aos preconceitos étnicos enraizados no Brasil, especialmente no que tange às elites.
A trajetória pessoal, política e intelectual de Querino evidencia esta estrutura histórica que, inclusive, se encontra duramente em nossa contemporaneidade. Destaca-se aqui, como defendido por Djamila Ribeiro em seu livro O que é lugar de fala? (2019), a importância de estabelecer e evidenciar as múltiplas epistemes existentes em um espaço, haja vista que a “reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida” (RIBEIRO, 2019, p. 317). Querino era homem negro de origem pobre, o qual, com a oportunidade da educação e formação profissional, transformou sua trajetória e agiu ativamente no espaço que se encontrava. O intelectual baiano atuou como abolicionista e republicano, foi um dos fundadores do Partido Operário e a Liga Operária Baiana, foi educador no Liceu de Artes e Ofícios, na Academia de Belas Artes, no Liceu e no Colégio de Órfãos de São Joaquim e escreveu livros didáticos sobre desenho geométrico.
Mais ainda, Querino foi grande historiador da cultura afro-brasileira e das artes, destacando especialmente a obra de diversos artistas e de outros sujeitos negros que ocupavam os mais diversos espaços socio-culturais na Bahia e no Brasil. As publicações de Querino destacaram as diversas transformações urbanas que a população afro-brasileira vivenciou na virada do século XIX para o XX além, claro, de suas resistências. Nestes processos, parte das elites econômicas buscaram marginalizar, repelir a população negra e suas culturas (que compunham e compõe de forma indissociável a diversidade cultural, não somente da Bahia), através do discurso modernizante, criando uma nova situação de colonização violenta do espaço urbano, tomando, mais uma vez, parte das memórias, das histórias, e das ancestralidades daqueles sujeitos.
Querino, antes de muitas outras conhecidas escolas históricas, constituiu suas pesquisas acerca da cultura afro-brasileira ampliando suas fontes, dando ampla importância aos materiais da vida cotidiana, das roupas aos utensílios, dos prédios às ruas, dos costumes, das poesias, das músicas das festas e das fontes orais, especialmente da população negra. Esta, sem a ampliação dos limites das fontes, em especial das oralidades, pouco podia participar como fonte primária da historiografia ao compor as narrativas históricas as quais eram protagonistas, já que a precariedade e o descaso material e educacional que eram submetidos dificilmente possibilitava o acesso a alfabetização e a produção de registros escritos. A desvalorização das formas próprias de tratar das suas memórias e histórias, como as oralidades e as artes, muitas vezes eram utilizadas como justificativas para o silenciamento da população negra nas pesquisas históricas. Uma rejeição que, mais uma vez, nega o protagonismo histórico da população afro-brasileira.
Com isto, através de duas trajetórias tão diversas, podemos afirmar, mais uma vez, que a perspectiva socioeconômica, cultural, étnica (além da sexualidade e do gênero), ou ainda, o “lugar de fala” daqueles que se encontram em posições de vulnerabilidade e discriminação são essenciais para o debate, a constituição de conhecimento e o combate aos preconceitos e outras violências historicamente constituídas.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Isabel Cristina Domingues. Prado e a semana de Arte Moderna: ensaios e correspondências. 2014. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2014.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala: Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra, Edição do Kindle, 2019.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. A presença realizada na linguagem: com atenção especial para a presença do passado. História da historiografia, Ouro Preto, n.º 3, setembro, 2009.
LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino: entre letras e lutas; Bahia:1851-1923. São Paulo: Annablume, 2009.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Oficinas Gráficas Duprat-Mayença (reunidas), 1928.
QUERINO, Manuel. A Bahia de Outrora. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955.
QUERINO, Manuel. O colono preto como fator da civilização brasileira. Jundiaí: cadernos do Mundo Inteiro, 2017.
Créditos na imagem: Jean Baptiste Debret, “Retour d`um proprietaire” (1816)
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