A igualdade não é uma ficção. Ao contrário, todo superior a sente como a mais banal das realidades.

(Jacques Rancière, 2014)

 

 

Produzido em 2019, o filme O Poço[1] gerou sentimentos conflitantes no público brasileiro quando chegou à plataforma de streaming Netflix, em abril de 2020. Podem questionar os atualistas a razão desse texto “desatualizado”, mais de um ano depois, quando para muitos os efeitos da produção já nem fazem mais sentido – se é que para outros algum dia fizeram! Mas ainda assim eu preciso insistir nessas páginas.[2]

Para quem já leu uma das discussões mais importantes elaboradas por Michel Foucault, o primeiro impacto ao ter contato com a estrutura do poço é interpretá-lo como um panóptico, ainda que distorcido. O conceito de panóptico foi utilizado pela primeira vez no final do século XVIII, pelo inglês Jeremy Bentham, para qualificar uma prisão ideal: ao redor de uma torre com janelas de todos os lados se eleva uma construção em anel, dividida em celas. Quem está na torre observa “tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível” (FOUCAULT, 2021, p. 194).

Obviamente, a estrutura não é igual a do filme. Mas há um big eye, um Sauron, um sistema que tudo controla, que distribui o caos pela plataforma em sua descida. Em cada andar, os indivíduos acordam sempre em duplas e poderíamos pensar que aí estaria mais uma diferença. No entanto, observe bem a trajetória de Goreng. Um dos primeiros aprendizados nesse mundo distópico é que o pequeno teatro da sua vida é só seu, não comporta mais ninguém. A trajetória de um mais fere do que intercala com a do outro. Seja do outro ao lado, ou do outro acima ou abaixo. A cada nível que se desce, a voracidade pela sobrevivência desumaniza os indivíduos.[3]

E, de novo, a estrutura do poço induz ao panoptismo, ao passo que “pode ser utilizad[a] como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos” (FOUCAULT, 2021, p. 197). Ao longo da narrativa percebemos que cada personagem está ali por um motivo, que afeta diretamente seus objetivos – ao menos no início de suas jornadas. Goreng está ali de livre e espontânea vontade: para parar de fumar, terminar Dom Quixote e ganhar um certificado. Trimagasi teve duas alternativas: ir para a ala psiquiatra ou para o poço. Imoguiri – ex-funcionária da estrutura – busca redenção, via sua crença na solidariedade espontânea.

Mas as vivências ali se intercalam em torno do eixo disciplina, que a estrutura em si induz. No início, a disciplina que perpassa a trajetória do nosso protagonista está vinculada à necessidade de reconhecimento, ou até autorreconhecimento. A obviedade da trajetória animalesca de Trimagasi pode transparecer a experiência do mundo caótico, instado pelo único e brutal instinto de sobrevivência. Mas, perceba, há eficiência nas suas ações, moldadas quase milimetricamente pelas certezas da incerteza gerada pelo poço. É certo que uma hora você mudará de nível. É certo que os níveis de cima são privilegiados, que quando mais se desce menor a probabilidade de existir sem violência. O óbvio está na eficiência das suas ações, por si.

A entrada de Imoguiri, à primeira vista, nos remete ao sentido de subversão da ordem, na tentativa de mostrar que o poço (a estrutura punitiva) não é maior que a humanidade. Como partícipe do sistema, ela entra buscando redenção, através de estratégias para a sobrevivência do coletivo. A cada descida da rampa, a personagem prepara a quantidade exata de comida para o nível abaixo, decide se é seu dia de comer e alimentar seu cachorro e pede para que sigam seus passos.[4] Na sua lógica, não há espaço para falha: toda comida é contabilizada e autos sacrifícios são necessários. É a inserção de um novo procedimento disciplinar na estrutura panóptica, encadeado no tempo linear, “evolutivo”, quando a gênese de sequências individuais provoca o progresso da comunidade (FOUCAULT, 2021). Imoguiri é a reprodução da engrenagem panóptica no panóptico. Mudar o sistema exige que haja uma vigilância ininterrupta das ações individuais, pois cada falta interfere no sucesso da nova ordem. Subverter a ordem existente implica, assim, a submeter-se à reprodução do vigiar e punir.

Mas, e se Imoguiri tiver sido colocada ali de propósito? E se o filme todo for uma metanarrativa para os tempos pós-modernos? Ainda que o fosse, se Lyotard estiver certo, os espectadores do filme não acreditariam. Mas, olhe com cuidado! Imoguiri representa a primeira possibilidade de vislumbrar esperança dentro da estrutura panóptica e sua trajetória repercute em sentidos contrastantes. Se de um lado sua desilusão e, posterior suicídio, simula a pequenez do indivíduo frente ao sistema, por outro, a tomada final da personagem principal é um fragmento da sua experiência. Algo de Imoguiri sobrevive em Goreng, passa a existir também em Baharat, que se movimentam a partir de então rumo ao horizonte de expectativas, à chegada ao final do jogo/martírio da existência abismal.

Só que estas narrativas que percorrem a grande narrativa do filme, se enredam em incertezas, violências e constantes entraves. Chegar ao que se acreditava ser o final da estrutura é o primeiro grande deles, pois expõe a falha na divisão da comida para manutenção da sobrevivência dos que estão em níveis inferiores. Descer rumo ao desconhecido e (mais) aterrorizante breu, ainda crendo na performatividade da mensagem em torno da panna cotta esmaga gradativamente até o nível 333 qualquer fagulha de perseverança. Ao fim, o encontro da criança e sua subida na plataforma, a meu ver, não evidencia uma mensagem positiva de fato. O desfecho aberto para as personagens que permanecem na última cena do filme pode até compor o discurso moderno de um futuro em expansão, mas frente à distopia do passado recente e presentes o mundo contemporâneo nada de positivo se espera no horizonte.

El Hoyo é muito mais que uma crítica ao capitalismo, como muitos interpretaram. É uma asserção da impossibilidade. Impossibilidade de darmos certos enquanto humanidade nessa dinâmica esmagadora dos tempos modernos e/ou pós-modernos. Impossibilidade de darmos certos se tentarmos mudar todo o sistema. Na onda das minhas pesquisas, sobre comunismo e anticomunismo, perceber o filme com esse olhar me fez construir analogias entre as ações de Imoguiri e Goreng com a construção de um mundo paralelo que prezaria fundamentalmente pela igualdade e solidariedade. Ao final, o mundo que Marx e Engels sonharam enquanto comunista. Mas especialmente a caminhada de Goreng aparece deturpada pela dura face do autoritarismo e da violência, algo que foi naturalizado como a essência do que seria uma experiência comunista. E, nesse sentido, para além da noção imprecisa do que de fato seria o comunismo, de novo e de novo a retórica da distopia, como não lugar (BENTIVOGLIO, 2017) que atravessa temporalidades salienta a impossibilidade de implosão da estrutura panóptica em quaisquer termos que a humanidade já tenha performado.

Ao fim, fiquei me perguntando por que o filme foi tão consumido, gerou tanto engajamento e percepções distintas. Obviamente, a estranheza compartilhada no contexto que vivenciamos entre 2020 e 2021 fez sê-lo quase acolhedor em certo sentido. Estamos bem, ainda! Mas, e mais importante, ele pode ter se tornado um diorama para estes tortuosos caminhos sombrios traçados pela humanidade e é desse tipo de “lazer” visceral que nos agarramos a expectativas para o presente ou horizonte próximo. Porque, para um futuro mais alargado, estamos inebriadas e inebriados pela acachapante leitura da impossibilidade.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BENTIVOGLIO, Julio. História & distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21 /Julio Cesar Bentivoglio. – Serra, ES: Milfontes, 2017.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Editora Vozes, 2021.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

 

 

 


NOTAS

[1] A produção foi dirigida por Galder Gaztelu-Urrutia, originalmente sob o título El Hoyo.

[2] Agradeço a quem compartilhou comigo a experiência de submersão no poço. Agradeço também ao meu amigo Riler Scarpatti, pelos comentários certeiros, que contribuíram para o fechamento, no longo caminho que foi a escrita deste pequeno ensaio.

[3] Não podemos esquecer que a ideia do decaimento tem larga tradição no cristianismo. Lúcifer, por exemplo, é um anjo decaído. Por outro lado, na cultura popular “estar embaixo” se relaciona com a humanização, porque não nos deixa esquecer que somos da terra e viemos dela.

[4] A primeira analogia que podemos fazer quanto ao cãozinho de Imoguiri e com Baleia, de Graciliano Ramos, em “Vidas Secas”, também humanizada pela nomeação. Nomeá-lo como Ramsés II – como aquele que foi considerado “o Grande” faraó da XIX dinastia egípcia, que reinou por mais de 60 anos e carrega um histórico de inúmeras conquistas militares e construções – nos dá alguns indícios. A capacidade de construir (aqui uma ideia), para mim, é a grande simbologia da figura do cãozinho Ramsés II como complemento fundamental da narrativa utópica de Imoguiri. Seu fim é sua desilusão e sua descrença nesta narrativa.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Imagem retirada do filme: O Poço (2019). Netflix.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “214”][/authorbox]