Sim, é verdade. A primeira coisa que esqueci foi de sua voz. Não tenho nenhum vídeo nem nada. Só fotos. Tentava explicar sem muito sucesso já que parecia certo demais que a voz vagueava em sua cabeça. – Sim, sim, eu sei. O que você diz que está ouvindo é o silêncio enamorado com as palavras. Percebe? O sorriso revelava que talvez ele tinha razão, mas a afirmação de que a voz de uma pessoa amada era mera ausência ainda lhe causava estranhamento. – Faça um teste. Diga em voz alta uma frase ou um nome que ela falava muito. Vai ficar claro que é a sua própria voz se apegando a algo que já se foi. Lastimava entre as certezas que preferia não ter. – E na cabeça a voz interior também é essa paisagem de esperanças. Preferiu não fazer o teste. Parecia-lhe insólita a experiência. Escolheu pousar sua concordância num suspiro, movendo os braços em direção ao coração. Não era nem o momento nem a pessoa para criar um caminho de desgastes e cansaços. Havia passado pouco tempo entre a morte e esta última conversa. A verdade é que já tinha ouvido de tudo naqueles dois anos. Versos escritos pelas mãos da dor. Conversas decididas sobre a necessidade de se viver intensamente a pouca vida que ele acreditava ter pela frente. Choros ao ouvir músicas de Roberta Miranda. Tô indo agora pra um lugar todinho meu, quero uma rede preguiçosa pra deitar, em minha volta sinfonia de pardais, cantando para a majestade, o sabiá… A majestade, o sabiá. Marchas ritmadas ao som da Internacional Comunista entoando os ideais revolucionários para uma pátria utopicamente fundada por ele e por sua cachorrinha. – Anunciação do Alceu Valença. Incrível, né? Foi a primeira música que ouvi depois de sua morte. Agora estou tocando até que bem ela, não? Essa parte do refrão eu achava que nunca tocaria. O lá menor é só uma vez e logo passa pro dó maior. Ele apenas espalmava as cordas do Ernesto, seu violão. Tudo comum. Tudo incomum. Até mesmo letras de músicas, que alimentavam uma nova e bela amizade, surgiam de tempos em tempos. Disso ele também falou, do tempo. – Há uma coisa que costumam contar a quem fica quando alguém morre. Que com o tempo as coisas melhoram. Não é verdade. A saudade só aumenta. Você até deixa de pensar a todo instante sobre a morte e a vida da pessoa. Mas quando a vida se faz espanto e transborda com tanta ausência… o tempo amaldiçoa a falta, isso sim. Ele falava isto enquanto lembrava de uma tia e de seu professor de violão que ajuizaram igualmente sobre a ausência. – No excesso do coração o tempo não passa, sabe. Era uma experiência que compartilhava respeitosamente a três. Depois, proverbiava e calava-se em si. – O que eu mais sinto falta é de passar a mão nos cabelos dela. Coisa pouca. Coisa pequena. Só isso. Quando ele falava deixava claro que na ausência dela muito se fazia presente. E assim, no pequeno apartamento, a vida acontecia.

 

 

 


Créditos na imagem: Desenho desenho da Prof. Dra. Naiara Krachenski.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “16”][/authorbox]