Viver não é fácil, mas também não é difícil e o morrer também tem dois gumes.

1

A notícia foi dada às 09:10hs por um aplicativo, desses que existem para liquefazer as emoções, que tornam a imediatez uma constante tangenciável. O meio que se fez a mensagem e a impessoalidade na escolha das palavras distorceram a percepção do acontecimento, fazendo com que ele não lhe causasse dor, sofrimento ou qualquer tipo de desconforto, ao menos ali, naquele momento, ao sabê-lo. A morte da cachorra editou as certezas com sabor de cinza de cigarro. Veio sorrateira em mais uma das manhãs fatídicas de inverno, onde as plantas desnudadas de suas saias recolhiam seu verde exuberante para realçar sua aspereza e frigidez. Uma entrada perfeita. A luz branca matinal revelou a banalidade da vida e as facetas da compreensão que se lançam sempre após os fins das coisas. Como poderia a morte passar assim, sem a devida atenção que lhe é inerente? A sua universalidade endossava constantemente a pergunta, fazendo com que o eco no fundo da mente permitisse à certeza do eterno retorno do mesmo uma fuga objetiva: doeu. Certo era que aqueles olhares jamais seriam vistos novamente, nem mesmo a sensação de compreensão percebida pela ternura que deles jorravam. Pisando em brisas buscou entender como os fatos se fazem presente, como os eventos simplesmente acontecem. Sem mais nem menos o que estava não está mais, o que era começa a não ser, pó de ser, o ser presente passando para o passado. Para a não existência do agora, nem mesmo o aqui se demora. A morte da cachorra veio sem hiatos, presságios, ou consoantes, apenas veio, como as manhãs que se repetem tanto que já não se fazem notar. Como antes não havia bom dia, não haviam saudações, a morte veio sem anúncios. Nem sequer sabia o dia, ontem? Anteontem? Um mês? Mas não perguntou. Seria isso normal? Rodopiou o pensamento construindo um castelo de questões sobre tal espectro mortal. Ainda carrega tijolos para suas paredes? Voltou a si ao indagar: o que poderia fazer a respeito? O fato estava dado. Um sistema energético se findara, a entropia valera-se mais uma vez, como de praxe. Mas mesmo assim, sabendo que tudo não passa de sistemas energéticos que caminham inevitavelmente para o fim, muito mesmo assim, o romantismo que atravessa as relações o conduzira a refletir como eternizar a cachorra, posto que o tempo encarrega-se de esmaecer as memórias. Tivera o ímpeto de esculpir em alguma madeira que tivesse a mesma cor dos pêlos da cachorra, para tateá-la fora do dias de sol. Pensou nos olhos, no nariz, nas patas carameladas, nas orelhas caídas e em tantos outros traços de seu corpo que decidiu desenhá-la, colocar a sedução no papel e dar aparência ao que sentia. A imaginação era tanta que a idealização condensou-se em algumas poucas linhas. Enquanto refletia, de certa maneira, não sofria mais, não estava sentindo as dores atenuadas que lhe atravessavam desde o saber da morte da cachorra. Entregar-se ao fim transformou-se em um alento, um encontro com o passado, e lá as coisas eram belas. Embora suprimidas, as lembranças na companhia da cachorra eram a única existência naquele momento. Os primeiros dias da vida de um filhote são cândidos, a doçura das representações de mistérios em olhos que não julgam, não buscam verdades e não interpretam o caos que compõe a vida. Filhotes são límpidos: a vida em seu estado mais suave. Se no sorriso despretensioso de um filhote habita o belo aprazível, em seu olhar a idealização mais cristalina se faz experiência rumo ao infinito. Um olhar cheio de vazios, sem afetação pelas formas convencionadas, que o espírito não se apossou significando o nada. Puro brilho. A humanização da cachorra era o humano que há em nós, imperfeitos, corrompidos. Daquele chão de fluorita, de onde edificava-se o existir fluindo o devir e burlando a possível eternidade de qualquer luto, as rochas tornaram-se areias movediças. Como de hábito, o cosmo transforma todo constructo em pó. Agarrou-se então às rotações que não cessam para aceitar que a vida expande-se e os filhotes se tornam adultos. Ao acontecer, permanece a caixa e suas quinas duras, ângulos agudos em relações obtusas, retas monótonas de razões rasas em torno do espírito livre que fora qualquer filhote. Assim, nos olhos que eram pontes para alma, a angústia destruiu o caminho, ocupando todos os cantos, invadindo com significados convencionados em códigos. Percebê-los não era mais correnteza. A cachorra crescera acorrentada, arrancaram-lhe a liberdade. O crime da cachorra foi já ter nascido condenada à prisão perpétua. A vida roubara-lhe os sonhos apenas por ser cachorra. Em um espaço delimitado teve que construir seu mundo. Cravou seus devaneios e fantasias para criar a cena onde passaria a atuar. Talhando o mesmo caminho constantemente teve que dar nome às pedras e conversar com as árvores. Sua corrente chamava-se Beatrice.

 

 

 


Créditos na imagem: Título: A morte vem à cavalo
Técnica: Nanquim e lápis de cor
Dimensões: 21,0 x 29,7 cm
Ano: 2017
Autor: Liw Sepol

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Will Lopes

Brasileiro, mineiro da Zona da Mata. Amante do mato e do hightech. Licenciado em história. Aventureiro das artes.

1 comment

Post a new comment

Veja:

no meu caso

  lembrar você no meio do dia é lembrar a carne e um espírito meu fazendo raso o peito. desvio teimoso, alma assoreada despejada curta ...