Hoje é terça-feira, 30 de novembro de 2021. Eu estou começando agora, às 17h30, a redigir o texto com tema “As literaturas africanas de língua portuguesa e eu”. Esse texto diz respeito, para além de mim, a uma série de autores e seminários que constituíram a disciplina de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, lecionada pela Universidade Federal de Ouro Preto, disciplina na qual me responsabilizei, junto a um grupo, pela apresentação do livro de poesia Sangue Negro (2001), escrito por Noémia de Sousa.
Escrevo da cidade de Itabirito (MG), onde o dia hoje está bastante nublado, monótono e chuvoso. Pouco antes de começar a chover, estava ventando intensamente, foi quando ouvi aquele prólogo tempestuoso. Minha intenção era sair, correr um pouco antes de dar início à escrita, já que em dias como hoje os epílogos das corridas, apesar de desconfortáveis, são sempre mais satisfatórios. Tanto às vésperas quanto após as chuvas, me sinto pertencente às ruas, nunca sei exatamente o porquê, mas sempre escuto um suplicar, como se o próprio ar livre estivesse me invocando. E são precisamente essas as horas em que mais gosto de correr. Eu sei que além de perigoso é também contraintuitivo, correr quando o tempo está assim: trovões compondo os sons junto às músicas no fone de ouvido, relâmpagos iluminando os horizontes, raios cortando os céus e nas ruas, poças d’água refletindo todos esses fragmentos. Talvez seja o encontro único desses aspectos que acabam por aguçar minha experiência sensível, uma vez que todos eles carregam em si, ao meu ver, uma inerente nuance de liberdade; e para mim, correr é sobre isso: ser liberto. Confesso que apesar de todas essas circunstâncias eu queria ter ido correr, como fiz inúmeras vezes, porém hoje eu hesitei, não fui, e eu sei que não foi por causa da chuva, que aliás, pareceu brincar comigo, estiando tempo o suficiente para eu calçar o tênis, só pra depois de eu pôr o pé na rua e começar a chover de novo. Coisa que aconteceu não uma, mas duas vezes.
Foi quando eu tirei o tênis pela segunda vez, que aproveitei para pegar o livro da Noémia para ler um pouco antes de começar a redigir essa narrativa. Contudo, sabia que de alguma forma eu ainda precisava correr. Então decidi: —Pode pá, vou ficar em casa e escrever a narrativa, mas hoje eu lido com a minha dor por lá.
—Que dor?
Você me pergunta, caro leitor. Vou tentar constituí-la aqui como a dor dos que possuem o sangue negro.
Ao abrir uma das páginas do livro, escutei um clamar ensurdecedor, demandando impiedosamente por liberdade, mas foi um som isento de violência ainda que fincado meio a ela. Da sensível escrita de Noémia de Sousa adveio esse clamor, um grito calado, escrito. Estarrecedor, tantos para aqueles que possuem o sangue negro quanto para os que perpetuam chibatadas para vê-lo jorrar. Eu jamais me esquecerei da sensação que senti quando escutei o poema Sangue Negro. Foi quando Noémia clamou, foi quando ela gritou: “Ó minha África misteriosa e natural, minha virgem violentada, minha Mãe!” (SOUSA, 2016, p. 129), e eu escutei, eu lembrei, eu senti saudades da minha casa e de todos os meus irmãos.
Tudo que descrevi sobre a realidade climática do meu presente momento é drasticamente oposto à realidade na qual vim ao mundo. Uma realidade passada, porém, não muito distante. Eu nasci no interior da Bahia, minha mãe biológica é a Caatinga, sou filho único do Brasil, sou nordestino e meu sangue é quente como o sol que ilumina as rachaduras da minha terra. Meu sangue também é negro e possui a mesma gradação de cor da sombra que me acompanha; perpetuamente viva enquanto houver luz. E no grito da Noémia há luz, há nele um timbre que brilha tanto quanto o sol, há uma gravidade ideal, uma força de atração e poder de realização, pois mesmo aqui isolado o grito chegou até mim, me fez entender que eu nunca estive só, só deslocado.
Sempre me pergunto se eu começaria a correr se não tivesse conhecido Minas Gerais, e a resposta mais provável é não, não teria começado. Na Caatinga a gente experiencia essa dor que mencionei diretamente na paisagem, que por sua vez, reflete o sofrimento na expressão de quem ali viveu a vida toda. Eu vejo isso no rosto da minha avó materna, mesmo ela sendo a pessoa com a aparência mais acolhedora que eu conheço. A Noémia me lembra muito a minha vó, só que o que ela tem na voz, eu vejo no olhar da minha vó Nina. Meus bisavós, pais da minha vó Nina, provavelmente foram escravizados, se não eles, muito certamente os meus tataravós, e falar isso, dessa forma, machuca muito mais do que você imagina, caro leitor, porque eu apenas sinto, mas eu não sei, a gente nunca fala disso lá em casa, as informações que tenho sobre a minha genealogia são praticamente inexistentes. No entanto, sei de fato que a nossa ascendência é majoritariamente africana e sei também que nossa existência sempre foi muito sofrida. Meus avós paternos eu nem os conheci. A minha vó Nina e o marido dela, meu vô Maro, não foram alfabetizados e por esse e tantos outros motivos diretamente ligados à nossa história ou ao desconhecimento dela, eles sempre tiveram uma enorme dificuldade em prover para todos os filhos, que são muitos. Meu pai e minha mãe, só depois de adultos conseguiram ser semialfabetizados, algo que certamente ajudou para que, mesmo com dificuldade, eu trilhasse o caminho que me traria até aqui, ao ensurdecedor clamar da mãe dos poetas moçambicanos, e aqui é o ponto em que tive contato com o Sangue Negro de Noémia.
Ao olhar em retrospectiva para a minha própria vida, parece inacreditável que o “aqui” seria o agora, esse ponto em que me encontro parte de uma Universidade Federal, longe de casa, escrevendo ao som de Miles Davis ─ Blue in Green, sobre o impacto e importância do registro poético da moçambicana Noémia de Sousa, enquanto lá fora chove, impetuosamente.
É de valor indescritível conhecer os registros desses vários autores africanos abordados nos seminários, e ainda que de forma virtual ter tido essa oportunidade de saber mais sobre eles, de poder também debater suas obras e compreender seus significados. Com isso em mente, além de Noémia de Sousa destaco Abdulai Sila (2006) e Conceição Lima (2006), que também me elucidaram profundamente. Entretanto, fico imensamente feliz de ter apresentado a escrita de Noémia, e uso aqui a palavra “escrita” com ressalvas, pois na verdade dialogamos. Jamais me esquecerei daquele primeiro diálogo.
Foi quando lhe perguntei:
—Noémia, quem sou eu?
E no ritmo de uma canção fraterna, ela falou:
“—Irmão negro de voz quente, o olhar magoado, diz-me: Que séculos de escravidão geraram tua voz dolente?” (SOUSA, 1948, p. 63).
Eu disse que 1994 foi o ano em que nasci, mas complementei:
—Talvez todos eles, irmã. Todos os quatrocentos e também o presente, dado que apesar dos meus 27 anos, habitam em mim memórias análogas à escravidão.
Novamente ela questionou. Dessa vez usando uma entonação que me pareceu retórica:
“—Quem pôs o mistério e a dor em cada palavra tua? E a humilde resignação na tua triste canção? E o poço da melancolia no fundo do teu olhar? Foi a vida? o desespero? o medo? Diz-me aqui, em segredo, irmão negro” (SOUSA, 1948, p. 63).
Tive a sensação de que para tais perguntas ela tinha resposta. De todo modo continuei contemplando atentamente aquele paciente e gentil olhar e com segurança eu lhe disse:
—Eu não sei, irmã. Sei tão pouco sobre mim. Uma das coisas que sei, e eu sei com certeza, é que eu sou negro, mas quem sou eu? Pois da vida, do desespero e do medo surgiu essa dúvida que é recibo irrefutável da minha cor de pele.
Ela então acrescentou, melodicamente:
“—Porque a tua canção é sofrimento e a tua voz, sentimento e magia. Há nela a nostalgia da liberdade perdida, a morte das emoções proibidas, e saudade de tudo que foi teu e já não é” (SOUSA, 1948, p. 63).
Continuou:
“—Diz-me, irmão negro, quem a fez assim… foi a vida? o desespero? o medo?” (SOUSA, 1948, p.63).
Passaram-se alguns minutos. Nessa hora nada consegui falar. Senti como se dessa vez a pergunta tivesse sido direcionada não a mim, mas a quem eu sou. Aquele “eu” que nem eu mesmo conheço, o que vai além, o eu coletivo. O conjunto de toda a dor, a junção de todo o sofrimento e de todas as inimagináveis circunstâncias que resultaram aqui, na minha existência. Nada eu consegui falar, apenas engoli uma saliva amarga e olhei para baixo.
Foi quando Noémia apalpou o meu rosto e eu senti aquela mão tão macia tocar minha alma. Ela apoiou a palma no meu queixo, alçou meu semblante e disse:
“—Mas mesmo encadeado, irmão, que estranho feitiço o teu! A tua voz dolente chorou de dor e saudade, gritou de escravidão e veio murmurar à minha alma em ferida que a tua triste canção dorida não é só tua, irmão de voz de veludo e olhos de luar… Veio, de manso murmurar que a tua canção é minha” (SOUSA, 1948, p. 64).
Jamais me esquecerei desse primeiro diálogo.
Quando eu notei um livro chamado Sangue Negro, sabia que era o livro que eu escolheria para apresentar, quando vi que era um livro de poesia, eu senti aquela mesma sensação advinda do epílogo de uma corrida tempestuosa. O primeiro poema que eu li foi “Canção fraterna”, pois sempre que vejo um livro de poesia abro-o numa página aleatória e leio.
Ao todo, eu e Noémia conversamos 46 vezes, e eu vi na poesia dela o mesmo sofrimento acolhedor que o olhar da minha vó Nina transpassa. A leitura desse livro cuidou de mim, foi aquele aconchego alicerçado em sofrimento. É como correr em meio à tempestade ou receber afeto de uma avó que agora você consegue entender o quão machucada ela realmente é. Noémia me mostrou que ter sangue negro é enxergar a chuva de ódio e apesar da dor correr meio a ela. O sangue que corre nas minhas veias é negro e eu sei que é negro o sangue que corre nas veias de muitos, a Noémia talvez não tenha nos dito com essas palavras, mas eu a escutei clamando e ela me suplicou para não parar de correr, então hoje eu corro aqui, porque além de mim, talvez também lhe ajude, caro leitor, a lidar com essa raiva que aflora na compreensão de tamanha injustiça.
REFERÊNCIAS:
DAVIS, Miles; COLTRANE, John; EVANS, Bill. Blue In Green. Columbia Records: 1959. 5:37min.
LIMA, Conceição Lima. A dolorosa raiz do micondó. Lisboa: Editorial Caminho, 2006.
SOUSA, Noémia. Sangue Negro. São Paulo, Kapulana, 2016 (Poemas: Sangue Negro – Pag. 129 – Canção fraterna – Pag. 63)
SILA, Abdulai. A última tragédia. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
Créditos na imagem: Reprodução: foto de Mariana Fujisawa, publicado pele editora Kapulana. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-sangue-negro-de-noemia-de-sousa-poeta-da-revolucao/
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