As políticas indigenistas, e junto delas, a legislação, foram criadas originalmente com o objetivo de assimilação e integração dos povos indígenas na sociedade que se formava. Isso, no que diz respeito aos povos falantes do “Tupi”, enquanto que para os falantes de outras famílias linguísticas, conhecidos como “Tapuias”, a política era o extermínio, como apresenta John Monteiro, em Tupis, Tapuias e Historiadores. Se considerarmos a colonização portuguesa, no território que viria a ser o Brasil, é importante ressaltar o projeto de assimilação dos povos indígenas.
Pode-se perceber a sua construção, em uma perspectiva de longa duração, desde os primeiros anos das invasões europeias. Foi com a Bula Papal Sublimis Deus (1537), que se afirmou que os indígenas possuíam alma e eram capazes de receber a fé cristã, negando portanto, a escravidão dos mesmos. O que é intrínseco neste documento, além da óbvia evangelização, é a tensão existente sobre o uso de sua mão-de-obra. Apesar da suposta proibição da escravização, para os indígenas cristãos, o mesmo não era oferecido para os indígenas considerados como “bravios”, como demostra Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, em Linha de Fé: A Companhia de Jesus e a Escravidão no Processo de Formação da Sociedade Colonial (Brasil, Séculos XVI e XVII) (2011). A Bula Romanus Pontifex, anterior à Sublimis Deus, autorizava a escravidão e seu tráfico dos “infiéis”, presos de uma “guerra justa” contra a heresia ou, em outras palavras, contra os que não submetiam à ordem e crença do Deus cristão. Por isso, muitos povos foram submetidos às “caças dos bugres”, generalizados como indomáveis Tapuias, e alvos dos “descimentos” para comercialização dessa mão-de-obra. John Manuel Monteiro, em Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (2009), demonstra como o aprisionamento de indígenas, assim como o rapto de mulheres e crianças, ainda co-existiu com a escravização de povos negros africanos, traficados até o século XIX.
As legislações indigenistas oscilaram a todo momento, ora “defendendo-os”, ora perseguindo-os, como demonstra Manuela Carneiro da cunha, em Antropologia do Brasil, Direitos do Índio, dentre outras publicações. O Diretório dos Índios, principalmente durante o período colonial, foi um conjunto de determinações traçadas para a “inserção” dos indígenas na sociedade colonial, e por inserção podemos compreender como assimilação e apagamento. Um dos tópicos principais deste regulamento diz respeito à política de catequização daqueles povos (Tupis) que, por sua vez, passariam a pagar o dízimo. Para esse pagamento era então necessário instruir aqueles sujeitos e ensinar um ofício, o que também fazia parte dos objetivos principais do Diretório, como demonstra Mauro Cezar Coelho, em Do Sertão para o mar – um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1750-1798). No texto, o autor evidencia o projeto de integração dos povos indígenas no corpo social, também através da estimulação do casamento com mulheres indígenas.
Esses casamentos poderiam acontecer de diversas formas, incluindo formas violentas de rapto, estupro e casamento forçado, como destaca os Movimentos de Mulheres Indígenas em todo o Brasil e, mais precisamente, Joselaine da Silva, em Protagonismo Feminino nos Movimentos Indígenas no Brasil. Além disso, ao ser batizado, e depois do casamento, os homens e mulheres indígenas recebiam nomes cristãos e eram obrigados (direta ou indiretamente) a abandonarem suas crenças, criando assim uma invisibilização de suas ancestralidades nos registros cartoriais, como aponta Maria Leônia chaves de Rezende, em Gentios Brasílicos: índios coloniais em minas Gerais setecentista.
Essa invisibilização, junto da proibição de suas práticas culturais, foi estabelecendo a dispersão de suas organizações sociais em povos, e isto se relacionando com as interfaces identitárias e territoriais, como aponta Paul Little, em Territórios e povos tradicionais do Brasil. Dito de outra forma, as violências das tentativas de aculturação no Brasil, trouxeram consequências brutais, percebidas mesmo em nossa contemporaneidade, como por exemplo no debate sobre o “Marco temporal”.
Já no século XIX, essas invisibilizações ganham notoriedade dentro da historiografia, com a nítida defesa de um branqueamento social realizado por Carl von Martius, Francisco Varnhagen, dentre outros; ao mesmo tempo que se intensificava uma idealização do indígena generalizado pela Literatura Romântica de José de Alencar. No que tange a legislação, propriamente dita, o branqueamento social (que iria perdurar até o século XX) e a generalização sobre os indígenas se refletem na legislação, como a defesa feita por José Bonifácio de “meios brandos e persuasivos” no trato com os índios, como aponta Manuela Carneiro da Cunha, em Política indigenista no século XIX. A posição de José Bonifácio contradizia a política de extermínio, promulgada pela Carta Régia, em 1808, contra os que ficaram conhecidos como “Botocudos antropófagos”. A antropofagia, aqui, foi uma ferramenta de demonização de vários povos (como os Krenak e os Giporok), tido como incivilizados (e por isso, Tapuias), que objetivava seu extermínio, como defende Maria Hilda Paraiso, em O Tempo da Dor e o Tempo do Trabalho.
Além disso, é também durante o século XIX que se estabelece a Lei de Terras (1850) que, no que diz respeito aos povos indígenas, demandava terras devolutas para a colonização, incluindo daqueles povos. Estes, ainda vistos como incapazes, eram então tutelados em território diminutos enquanto outros espaços eram ofertados a imigrantes brancos para o branqueamento social. Infelizmente, a Lei de Terras ainda é utilizada (direta e indiretamente) como argumentação jurídica para tentativas de destituição dos direitos originários sobre seus territórios, como apontou Gilberto Aranha, em A Lei de Terras de 1850 e as terras dos Índios. É importante dizer que as leis indigenistas, até então, eram mobilizadas de formas diferentes, a depender da região e dos povos envolvidos.
Já na Primeira República brasileira, mais precisamente a partir do século XX, criou-se o Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). Como o próprio nome indica, o órgão era responsável ainda pela integração dos indígenas na sociedade e, naquele momento, com o foco no trabalho agrícola. O Brasil passava por uma regeneração agrícola e, muito baseado em preceitos positivistas, buscava a integração dos povos originários no corpo nacional. A política do SPILTN (e depois, em 1918, apenas SPI) era de isolamento e integração, como indica Antônio Carlos de Souza Lima, em Um Grande Cerco de Paz.
Alvo de várias críticas de corrupção e violências (registradas no que ficou conhecido como “Relatório Figueiredo” que foi resgatado pela Comissão Nacional da Verdade apenas em 2012), o SPI se tornou FUNAI, Fundação Nacional do Índio, já em período ditatorial, em 1967. As denúncias foram silenciadas e o órgão continuou operando em uma intensa oscilação entre tentativas de proteção e violências intensas, como mostra Rubens Valente, em Entre Fuzis e Flechas.
Ao longo dos anos 1970, há a organização mais detida dos Movimentos Indígenas ao redor do Brasil, destacando nomes como Raoni Metuktire, conhecido como Cacique Raoni; o primeiro deputado indígena, Mário Juruna (eleito em 1982, pelo PDT); e Ailton Krenak, ambientalista que conquistou amplo destaque mediático ao discursar na tribuna, durante a idealização da Constituição Federal, pintando o rosto de Jenipapo, em preparação para as batalhas que ainda seguiriam, como aponta Daniel Munduruku, em O Caráter Educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990).
Com isso, tem-se pela primeira vez na história do direito brasileiro, o reconhecimento do direito à diversidade dos povos originários. No entanto, a garantia desse direito só é possível mediante lutas constantes. A valorização dessa diversidade é reforçada, pro exemplo, pela Lei 11.645/08 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena. Apesar dos problemas de aplicação da mesma, essa foi uma lei revolucionária em relação ao direito à diversidade, apesar de tardia se comparada com a Lei 10.639/03, como indica Edson Kayapó e Tamires Brito, em A Pluralidade étnico cultural indígena no Brasil.
Além disso, atualmente se debate o “Marco Temporal”, no STF, que opera em uma lógica deturpada de negar as demarcações de Terras Indígenas em territórios que não estivessem ocupados antes de 1988, ano da Constituição Federal vigente. Ou seja, nega-se as violências, em longa duração, que os povos originários foram alvo desde as primeiras invasões europeias, como defende Eloy Terena, em “O Direito originário dos povos indígenas”. O argumento do autor remonta ao Instituto do Indigenato, apresentado por João Mendes Júnior, em 1902, que defendia o direito originário dos indígenas sobre a terra, denunciando a usurpação das mesmas pelos colonizadores, e a continuidade desses roubos.
Ainda, em janeiro de 2021, foi publicado o parecer da AGU para a FUNAI sobre a heteroidentificação indígena. O mesmo especula que apenas a autoidentificação (forma utilizada para a autodeclaração indígena) não seria suficiente para definir a identidade indígena, justificando assim uma banca de heteroidentificação. Como se o “ser indígena” fosse vinculado aos fenótipos ou cor. Mais uma violência política e legislativa contra os povos originários, em um país que o então presidente (ex-presidente, agora em 2023), acusado de genocídio contra os povos indígenas se auto-premiou com a medalha do Mérito Indigenista.
Créditos na imagem: Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) realiza audiência pública interativa para debater sobre: “A Situação das Comunidades Quilombolas e Indígenas e as fortes implicações da PEC 215 de 2000, que gravemente afeta a demarcação das Terras Indígenas no País”.
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Helena Azevedo Paulo de Almeida
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