Como muitos já sabem, a internet não é um espaço muito fofo, aconchegante, muito menos ordenado, mas um campo de batalha sensível onde o menor ruído é uma explosão imediata. Um meme, uma notícia, ou até mesmo uma palavra aleatória podem acender o pavio curto dos algoritmos, gerando uma enorme cadeia de explosões digitais. Sendo uma mídia como qualquer outra, o campo cinematográfico segue um percurso parecido, no mesmo ritmo de outros pacotinhos semióticos. Nesse jogo de imagens em movimento, qualquer detalhe é um gatilho inconveniente, desde um personagem, um comentário, até a estrutura do próprio enredo. No início de 2025 acenderam um novo (e longo) pavio… na verdade, vários, todos conectados a um mesmo cilindro de pólvora.
Emilia Pérez é um fenômeno em todos os sentidos da palavra, uma presença constante nas manchetes dos maiores jornais do planeta. Não apenas por suas treze indicações, circunstância rara na história do Oscar, mas principalmente pelas polêmicas… as dezenas e dezenas de polêmicas!!! Mesmo sem ter assistido o filme, você com certeza sentiu o cheiro de algo estranho no ar, um aroma agridoce nas entrelinhas. Odiado pela direita, por sua suposta agenda progressista, odiado também pela esquerda, por não ser progressista o suficiente, Emília Pérez foi vítima de um cancelamento duplo, detalhe curioso e digno de análise. Em geral, filmes desse tipo são polarizantes, binários, como um cabo de guerra entre dois extremos. Exemplos como Pantera Negra, A Mulher Rei ou Ainda Estou Aqui são obras simples de mapear, ao menos eticamente falando. A distribuição das peças no tabuleiro é clara, sem muita complexidade em jogo, apenas um campo de batalha pré-estabelecido. Em outras palavras, esquerda defende, direita ataca, ou vice-versa… simples assim. Mas o que significa quando todos atacam o mesmo alvo? Que tipo de mensagem pode ser extraída desse cenário incomum?
Em condições normais de temperatura e pressão, se alguém é de esquerda existe lá fora um mercado de bem simbólicos aguardando sua presença, um espaço com produtos valiosos na prateleira, como diria Bourdieu. Nessa economia de trocas simbólicas, todos reconhecem o valor de cada item no mercadinho ideológico, desde os produtos mais baratos, como um adesivo automotivo vegano, até itens mais caros, como uma camisa pró-palestina ou uma mochila de Ainda Estou Aqui. Em geral, existe sempre um mercado simbólico de esquerda ou de direita, cada um com seu estoque exclusivo de produtos, assim como diferentes prioridades, valores e qualquer outro detalhe identitário, quase como insígnias reforçando um sujeito faminto por reconhecimento. Mas Emilia Pérez, por algum motivo a ser investigado aqui, ameaça aquele sociólogo francês e seu universo praxiológico, revelando um objeto desprezado pelas duas mais importantes economias simbólicas no mundo contemporâneo: progressistas e conservadores. Como isso é possível? Como explicar esse duplo desprezo?
Antes da segunda sessão começar, eu comprei o ingresso sem uma gota de vontade no meu corpo, com plena consciência de que o meu desânimo, nutrido por meses de polêmica, fofocas e críticas de blog, seria reforçado por aquele filme. Duas horas da minha vida (e 35 reais) estavam em risco naquela tarde de sábado, era inevitável minha frustação. Eu apostei nisso, mas perdi a aposta…
Quando o assunto é filme, e seu circuito específico de jogo, é normal um indivíduo aleatório confundir suas análises e julgamentos, misturando parâmetros, premissas e qualquer outro detalhe no seu campo visual. Critérios políticos, religiosos, acadêmicos se misturam facilmente com o universo estético da obra, como se fossem sinônimos, como se fronteiras não existissem. Da mesma forma que um leigo não consegue diferenciar os tons de um vinho, ou as várias nuances em uma pintura impressionista, ou as variações em instrumentos musicais, o mesmo acontece no universo cinematográfico. A sutileza do nariz, o refinamento do ouvido ou a sagacidade dos olhos não são produtos espontâneos, algo disponível no DNA, mas uma conquista lenta em um fluxo de infinitas horas de prática. No corpo despreparado do leigo, tudo se resume a uma mesma massa homogênea de impressões, sem níveis, fronteiras ou parâmetros… tudo se confunde. Por isso, nós precisamos urgente de um enólogo de filmes… um cinéfilo.
Sem dúvida, existem polêmicas pesadas em Emilia Pérez, como o fato do diretor não ser mexicano, o filme não ter sido gravado no México, além de sua representação sensacionalista da cultura local. Eu não sou ingênuo, muito menos insensível… eu reconheço muito bem os riscos desses deslizes, assim como a necessidade de um debate sobre cada um deles, mas tudo tem um limite. Seguindo os passos do formalismo de Harold Bloom, o meu ponto não é negar a existência desses problemas, muito menos a necessidade de debates sérios. A minha meta é apenas sugerir uma fronteira entre eles e o critério estético de uma obra. Em outras palavras, embora a péssima representação do México seja um problema, isso não pode invadir os limites estéticos do filme, sua qualidade. As polêmicas não falam sobre a obra enquanto tal, apenas do seu entorno, da sua borda.
Sou sociólogo há mais de dez anos e entendo muito bem o tabuleiro de jogo contemporâneo, por isso não me surpreendo com o duplo cancelamento. Nesse mundo identitário vivido por você e eu, um filme não é apenas um filme; ele é uma insígnia definidora de quem sou e de como quero ser visto pelo outro. Se uma obra não atende as expectativas desse eu soberano, ela não merece existir de nenhuma forma, muito menos aplaudida por um público específico. Vivemos exatamente nesse mundo, nesse universo cinematográfico onde filmes, até mesmo os “cults”, são simples mercadorias em rota de consumo, mastigados por indivíduos de esquerda, direita, centro, ou qualquer outra modalidade aleatória. Apesar das lutas políticas entre os envolvidos, todas as mãos permanecem unidas em um espaço narcisista costurado por algoritmos aconchegantes.
A crítica principal1 em vários cantos da internet, aquela sobre a falta de representatividade da cultura mexicana, reduzida no filme ao tráfico e a pobreza, soa estranha aos meus ouvidos, muito estranha. Produções como Tropa de Elite (José Padilha) e Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund), duas joias do cinema nacional, além de presenças garantidas nas maiores universidades do planeta, revelam uma porção podre e bem simplificada do Brasil, reforçando, inclusive, péssimos estereótipos ainda insistentes em nosso território. Isso torna o filme um objeto estragado ou prejudica em algum nível o contorno estético da obra? Claro que não. Sem dúvida, esse detalhe político e cultural deve ser debatido, além das consequências dos estereótipos, mas isso não se confunde, ou pelo menos não deveria se confundir, com o julgamento estético da obra. Ou seja, apesar da péssima representatividade do Brasil nesses filmes, e até do meu próprio grau de frustração diante desse detalhe, as duas produções continuam sendo duas obras de arte do cinema nacional.
A história de Emilia Pérez é poderosa, com uma protagonista complexa, antiheróica, em um roteiro também atravessado por complexidade. O tabuleiro de forças, digamos assim, é ambíguo, como na cena onde a protagonista ameaça a própria mãe dos seus filhos ou quando sua filha pequena, sem perceber, a obriga a repensar sua própria transição e seu senso de identidade. Eu, pessoalmente, prefiro histórias assim, com narrativas que implodem um binarismo moralizante com seus heróis e vilões bem definidos. Grandes cineastas, como Guillermo Del Toro, aplaudiram de pé Emilia Pérez, destacando até mesmo sua competência técnica. A direção (independente das controvérsias identitárias com o diretor) e a fotografia foram todas costuradas com cuidado, o que apimentou mais ainda o tom dramático da história. As performances foram excelentes também, não é coincidência que Zoë Saldaña conseguiu a estatueta de melhor atriz coadjuvante na noite do Oscar. Quando o assunto é Karla Sofia Gascón, a protagonista, muitos até acreditavam numa pequena chance de vitória como melhor atriz, mas suas polêmicas no Twitter destruíram completamente qualquer migalha de possibilidade.
O único problema técnico do filme, na minha opinião, foram os musicais, nem um pouco memoráveis ou até necessários. Embora não fossem performances descoladas da história, como aconteceu com Coringa: Delírio a dois (Todd Phillips), ainda assim não produziram muito impacto além de um simples passatempo. Além disso, algumas músicas comprometeram a seriedade do enredo e o tom construído ao longo do filme, como a La Vaginoplastia na clínica de redesignação, completamente memeficada nos quatro cantos da internet. Essa quebra de expectativa, e do próprio ritmo do enredo, não foi uma experiência muito agradável, preciso confessar. O choque foi semelhante à minha reação no final do filme de Coralie Gargeat, A Substância… não gostei!!!!
Infelizmente, vivemos hoje no chamado mundo identitário, um espaço onde produtos de consumo são insígnias em uma guerra cultural. Se um certo produto não atende minha demanda, da mesma forma que em um restaurante com seu cardápio à la carte, eu devolvo a comida ou arremesso na cabeça do cozinheiro. Essa lógica de consumo era muito comum em filmes mais populares, da grande mídia, digamos assim, enquanto outras produções, mais “cults”, eram apreciadas de outra forma. Mas, o que enxergamos hoje é uma fetichização até mesmo de filmes considerados “alternativos”, todos participando de um circuito identitário, talvez o único ponto de concordância entre a direita e a esquerda no século XXI. Se não me satisfaz, se o filme não reflete minhas preferências, demandas e queixas, logo a sentença é instantânea: cancelamento, como se EU fosse o eixo do universo e dos limites estéticos de uma obra.
Emilia Pérez foi odiado em quase 100% dos casos, através de uma infinidade de argumentos, dos mais reaças aos mais progressistas, embora todos desaguem no mesmo ponto de convergência: uma pura revolta identitária com sua quebra de expectativas. Para além desse identitarismo de esquerda ou direita, o filme continua sendo excelente. Isso significa que mereceu as 13 indicações? Não. Muitas outras possibilidades, como minha aposta frustrada no “Hard Truths”, deveriam fazer parte da disputa no lugar de Emilia Pérez, mas, ainda assim, o mérito não pode ser ignorado. Apesar das polêmicas políticas, religiosas, culturais e linguísticas serem importantes, e mereçam uma centralidade em debates contemporâneos, elas não podem se confundir com o potencial estético de uma obra. Afinal, eu não sou a medida de todas as coisas!!!!
NOTAS
1 Existem também outras críticas de esquerda, como a representação simplificada da experiência trans, embora não altere o argumento principal desse ensaio: o universo estético da obra representa um mundo próprio e irredutível, apesar de possíveis parcerias e conexões.
Créditos da imagem da capa: Reprodução do site Paris Filmes.
Thiago Pinho
Related posts
Notícias
História da Historiografia
História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
ISSN: 1983-9928
Qualis Periódiocos:
A1 História / A2 Filosofia
Acesse a edição atual da revista