O que é uma fonte? É algo que não se esgotando não para de dar origem à correnteza. A fonte é o princípio da correnteza. A correnteza tem um começo e um término, um percurso com decurso e fim, a fonte é princípio sem começo nem término. Como princípio, seu fim é consumar a correnteza consumando-se como princípio. A correnteza corre e percorre pelo vigor do princípio, a fonte que não cessa de ser fonte. A correnteza não tem o vigor em si. O princípio é este vigor que não se esgota, pelo contrário, se consuma no estar vigorando. Como vigor, não está situada no tempo, constitui o tempo, por isso, a fonte é o tempo poético-ontológico. A este dá-se também o nome de tempo mítico, que nenhum rito esgota. A correnteza é o rito da fonte. A fonte, como a arte, é o originário. É sempre um acontecer apropriante. (CASTRO, Manuel Antônio de. Notas de tradução. In: HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Ed. 70, 2010, p. 228).
O que é uma fonte? Talvez devêssemos fazer esta pergunta para algum historiador de ofício. Todavia, será que os historiadores responderiam essa pergunta? Ou melhor, será que os historiadores refletem e pensam de forma densa sobre o que é uma fonte? Muitas vezes, o historiador, mergulhado no arquivo, acaba naturalizando o que é uma fonte. Ora, a fonte não são os indícios do passado que possibilitam ao historiador compreendê-lo? A fonte entendida como um objeto para conhecer o passado acaba tendo uma dimensão epistemológica, isto é, uma possibilidade de conhecer o passado. Sim, de fato a fonte histórica tem possibilidade de construir um conhecimento epistêmico sobre o passado. Contudo, qual seria o estatuto ontológico da fonte? Poderíamos pensar a fonte para além de sua possibilidade epistêmica? Arrisco uma reflexão sobre a condição ontológica da fonte a partir do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger.
Observamos, a partir da epígrafe citada, que Heidegger, de forma poética, reflete sobre o que é uma fonte. Podemos compreender a fonte como algo que não se esgota e, portanto, não para de dar origem a correnteza. Nesse sentido, a correnteza pode ser concebida como um eterno devir, no qual os rastros do passado são parte da própria tessitura do devir, então aquilo que constitui os nossos rastros são parte do devir. O princípio é este vigor que não se esgota, pelo contrário, se consuma no estar vigorando. Esse vigor tem a força de trazer para o presente histórico alguns indícios que estão no passado. Ademais, a fonte é o tempo poético – ontológico. Poético no sentido da criação, se preferir, da gênese. Ontológico diz respeito aos seres do passado, ou seja, dos existentes do passado que nos afetam e nos interpelam no presente, que a todo momento exigem e carecem por respostas. A nossa prática está substanciada na própria forma do ser e estar no mundo. A correnteza é o rito da fonte. A fonte, como a arte, é o originário. É sempre um acontecer apropriante. Desse modo, o acontecer se apresenta como uma condição inesgotável daquilo que rompe com o acontecimento de um determinado presente, que foi passado – e como isso, em um determinado presente, implica justamente a constituição de um tempo. O originário é aquilo que não se esgota e, portanto, é a própria temporalidade da história.
Nesse sentido, quando nós, historiadores, pensamos o horizonte inesgotável de relações com o passado, implicamos sobretudo em um constituir-se a partir do devir. A todo momento nós somos interpelados pelos rastros do passado, sobretudo pelo motivo da fonte ter o caráter inesgotável e, consequentemente, pela interrupta forma de dar origem a correnteza. O devir jamais cessa, assim como as nossas inquietudes por respostas.
Heidegger levou a cabo a tentativa de tematizar a história considerando a temporalidade como elemento constitutivo do ser humano. A temporalidade, portanto, não é apenas um ser e estar no tempo, ela configura nosso tecido existencial enquanto ser-no-mundo. Nas palavras de Heidegger: “A análise da historicidade da presença busca mostrar que esse ente não “é temporal” porque “se encontra na história”, mas, ao contrário, que ele só existe e só pode existir historicamente porque, no fundo do seu ser, é temporal” (HEIDEGGER, 2005, p. 181). Portanto, como o vigor é esta temporalidade inesgotável, ela não está situada no tempo, ela constitui o tempo. Por isso, a fonte é o tempo poético-ontológico, como afirma Martin Heidegger, e a sua forma está para além do uso epistemológico que fazemos dela.
REFERÊNCIAS:
CASTRO, Manuel Antônio de. Notas de tradução. In: HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Ed. 70, 2010, p. 228.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte II. 13 ed. Trad.: Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005.
Créditos na imagem: Reprodução: Arte Rupestre em rocha nos EUA. Foto: Mark Herreid / Shutterstock.com
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