O entrevistado de hoje é um grande amigo desde a faculdade, eu me lembro que ele sempre gostou de fotografias, roteiros realistas e filmes. A cultura e as artes sempre estiveram estampadas na sua tela de computador e na sua estante de livros… É incrível acompanhar o que ele faz com tudo isso em sala de aula. Eu não esperaria menos de alguém tão especial. Hoje iremos conhecer a história que o Júlio ensina.

Júlio César de Gouvêa é licenciado pela Universidade Federal de Ouro Preto. Atuou como coordenador da Oficina de Paleografia da Universidade Federal de Ouro Preto, desenvolveu pesquisas na área de História da América e História do Brasil. Trabalhou com a digitalização dos livros de testamentos de libertos e negros livres na Casa Setecentista de Mariana (MG) e no Arquivo da Câmara Municipal de Mariana. A primeira escola em que lecionou foi a Escola Estadual Professor Soares Ferreira, por um curto período de tempo.  Atualmente é professor da Escola Estadual Monte Sinai na cidade de Esmeraldas, Minas Gerais. Tem interesse no Ensino de História, História da América, História do Brasil e História Contemporânea.

 

Ana- Boa noite, Julinho! Muito obrigada por ter aceitado o convite para esta entrevista, é um prazer falar com você. Vamos conversar sobre tanta coisa! Quero te ouvir falar sobre a sua experiência enquanto professor, sobre o projeto com filmes e séries que você dirige, sobre as suas impressões acerca dos problemas enfrentados pela educação hoje. Mas primeiro quero que você fale um pouco sobre a sua trajetória. Qual foi o caminho trilhado até a sua chegada e atuação na Escola Estadual Monte Sinai?

 

Júlio- Boa Noite, Aninha!  Primeiramente, gostaria de agradecer o convite e dizer que me sinto muito honrado em poder contribuir com o seu trabalho. Durante minha graduação, tinha muito – nós tínhamos, não é, Aninha? – interesse pelas disciplinas de educação e pelo Ensino. Sempre achei que tudo começa exatamente ali: no Ensino de História. Portanto, eu sabia que o caminho que eu gostaria de trilhar teria que ser dentro deste universo. E foi.

Quando me formei, em 2017, não consegui nenhum contrato temporário de designação na rede pública. Fiquei parado por pouco mais de um ano, foi um período bem difícil. Sentimos uma pressão muito grande ao formar para começarmos a trabalhar imediatamente, não é? Em dezembro de 2017, a Secretaria de Educação de Minas Gerais lançou o edital para o concurso que aconteceria em abril do ano seguinte. Nesse meio tempo estudei para dois certames, e um deles foi para Professor da Educação Básica da SEE-MG. Após uma prova e uma aplicação um tanto quanto problemática, consegui passar em uma boa colocação para o município de Esmeraldas, na região metropolitana de Belo Horizonte – cidade em que planejava morar.

Mesmo com a aprovação, a minha nomeação seria publicada mais de um ano depois. Enquanto isso precisava continuar participando dos processos de designação. Após mais algumas tentativas, em julho de 2018 consegui uma substituição de três meses na Escola Estadual Professor Soares Ferreira, na cidade de Mariana. Lá, trabalhei com três turmas de sétimos, e, três de nonos anos. Esta experiência foi fundamental para perceber que o chão de escola era o lugar que eu gostaria de estar. Em agosto do mesmo ano comecei a cursar Pedagogia, também na Universidade Federal de Ouro Preto. Apesar de concluir apenas um período, cursei disciplinas que me possibilitaram questionamentos e reflexões essenciais para a minha formação profissional. Uma delas foi a de “Formação de Professores” que, inclusive, aconselho que todos e todas as alunas e alunos de licenciatura cursem.

Em janeiro de 2019, devido a aprovação no concurso, sabia que teria prioridade na escolha de cargo e escola nas designações da cidade de Esmeraldas. Resolvi me mudar, eu precisava continuar trabalhando. Depois de algumas pesquisas, acabei escolhendo a Escola Estadual de Ensino Médio Monte Sinai, e lá consegui me efetivar em novembro do ano passado.

 

Ana- Clube do Filme, esse é o nome do projeto que você dirige na escola Estadual Monte Sinai e confesso que ele me chama muito a atenção porque a compreensão de Ensino de História inerente a esta coluna agrega ensino, enfretamento e lutas, experiência, literatura, música, cinema… E por isso, eu gostaria de saber um pouco mais sobre este projeto tão necessário e bonito. Como o Clube do Filme surgiu? Como foi recebido pelos alunos?

 

Júlio- A escola está situada em uma região periférica, de vulnerabilidade social. O acesso à cultura, como sabemos, não é democratizado – e nessas localidades a realidade torna-se ainda mais crua. Ali não tem uma sala de cinema ou casa de show, nenhuma casa de cultura ou espaços culturais, a biblioteca mais próxima deve estar a 20 quilômetros de distância e quase nunca está aberta, teatro não existe, desconheço a presença de museus e de outros espaços de memória, sebos e livrarias eu nunca vi. Em mais de um ano presente ali, não tive conhecimento de programas ou ações do governo municipal que incentivassem e financiassem as mais diversas manifestações culturais. Para agravar a situação, o bairro não conta nem com espaços de sociabilidade mais comuns e tradicionais, como praças, ainda que pequenas, e parques.

A escola, acredito, tem que ser um espaço de cultura, de trocas, de afeto, de arte. Pensando nisso, resolvi colocar em ação um projeto antigo: trazer o cinema e suas discussões para dentro dos muros. A ideia foi imediatamente acatada pela coordenação pedagógica e pela direção. O Clube do Filme, dessa forma, ajudou a compor o quadro de projetos da escola, que já possuía o Clube de Literatura, idealizado e implementado pela professora de Língua Portuguesa Shirley Parreiras, minha grande amiga.

É lugar comum que a cultura possui um poder transformador — e que é ainda mais transformadora quando caminha lado a lado com a educação. Dessa forma, projetos que estimulem o consumo cultural são sempre muito importantes para a formação educacional, e, principalmente, para a formação humana de todo indivíduo. Proporcionar esse acesso à cultura dentro das escolas, portanto, é essencial.

Por considerar o cinema uma forma de expressão que deve ser universal e democrática, com diversidade de ideias e temáticas, pretendia, com os encontros do Clube do Filme, além de possibilitar ampliações das visões e compreensões de mundo, estimular a reflexão e o senso crítico dos estudantes. As discussões levantadas a partir dos filmes assistidos possibilitariam a criação de um espaço que teria como objetivo expandir ideias e guiar reflexões que teriam repercussão, inclusive, na produção das redações de vestibulares, concursos, e, sobretudo, do ENEM.

Com a permissão garantida, coloquei o projeto em prática. As reuniões aconteceram quinzenalmente, às quartas-feiras, no contraturno. Cartazes elaborados a partir de imagens marcantes dos filmes eram afixados nos murais e as turmas convidadas durante as aulas.

A recepção foi bem calorosa, mas no começo tive medo. Pensava que o projeto poderia não agradar ou, quem sabe, não ser atrativo o suficiente para que os alunos e as alunas frequentassem. Mas desde o começo a presença de estudantes fiéis e interessados me deixou empolgado e confiante para continuar.

O público variou bastante. Algumas sessões chegaram a contar com aproximadamente 16 estudantes, outras com apenas quatro. Mas desde que tivesse um aluno ou aluna disposta a assistir e conversar, o clube estaria de pé. Algumas exibições contaram, ainda, com participações especiais de familiares – inclusive crianças – dos estudantes. Eu achava isso lindo! Alunos e alunas, com seus familiares, frequentando a escola em um horário diferente do que estudavam. E melhor: para discutir cinema. Chego a me emocionar.

As sessões que mais me marcaram foram as que começávamos com as discussões levantadas pelo filme e terminávamos por falar e desabafar sobre cada um de nós. Isso é tão importante e necessário, não é? Falávamos de nossas experiências, de preconceito, de racismo, de banalização da violência, de machismo e de educação, sobretudo educação. Muitas vezes percebi e senti aquele pequeno nó na garganta que nos engasga a fala e umedece os olhos. Tudo isso ao pensar em cada um de nós.

E assim transcorreu o ano de 2019. Diversos filmes assistidos e variados assuntos debatidos. Dentro de uma escola. Pública.

 

Ana- No ano passado o Clube do Filme da Escola Estadual Monte Sinai recebeu o prêmio Charles Lotfi, da Aliança Brasileira Pela Educação. Você pode falar um pouco sobre o processo e o recebimento do prêmio?

 

Júlio- Anualmente, a Aliança Brasileira Pela Educação oferece um concurso para premiar projetos e boas práticas educacionais desenvolvidas em escolas públicas. No ano de 2019, o tema foi sobre “práticas que visam apoiar o alto desempenho dos alunos em leitura, escrita, cálculos, resoluções de problema e atividades colaborativas”.

Ao longo do ano, a escola passou a contar com outros projetos, como de música e de mídias. Além disso, a direção e a vice-direção incentivaram a adoção das salas ambientes, o que acabou por facilitar a nossa relação com tecnologias dentro do chão de sala. Percebemos, por tudo isso, que a nossa escola estava conseguindo desenvolver e se afirmar em várias práticas pedagógicas inovadoras e progressistas. Resolvemos, então, guiados pela Professora Shirley, concorrer ao prêmio Charles Lotfi. O processo foi bem rápido. Os projetos já vinham sendo desenvolvidos ao longo do ano, faltava apenas oficializá-los. E assim foi. Descrevemos todas as atividades, bem com seus objetivos e ganhos que havíamos presenciado até ali.

O resultado foi mais do que satisfatório, conquistamos o primeiro lugar. Foi muito importante para todos nós, primeiramente, perceber que nossas práticas estavam contribuindo para o desenvolvimento intelectual e humano dos nossos estudantes. E, depois, ser reconhecido por isso nos deu um ânimo ainda maior para persistir, resistir e aprimorar nossos projetos. A premiação foi de quinze mil reais, e está sendo revertida em equipamentos que facilitam a prática docente e possibilitam o desenvolvimento de antigos e novos projetos na Escola Estadual Monte Sinai.

Os projetos desenvolvidos na nossa escola são relativamente simples, mas demandam tempo dos professores e da coordenação. Confesso que isso me deixa cada vez mais incomodado e indignado com a maneira com que o Estado nos enxerga. Quantos professores maravilhosos existem em todas as escolas públicas e que, muitas das vezes, não conseguem colocar em prática seus projetos – também maravilhosos… Porque somos empurrados e sobrecarregados, porque não conseguimos salários mais justos? Já desisti de contar.

 

Ana- Essa coluna também é sobre experiências, sobre as experiências no ensino que mudam vidas. Assim, você pode nos contar alguma experiência sua com o Ensino ou com a leitura? Pode ser algum episódio, conversa, ou página de livro que tenha transformado a sua concepção de professor de História e de Historiador.

 

Júlio- Quando estava na faculdade, me foge a memória o período e a disciplina, a professora Virgínia Buarque foi convidada para nos dar uma aula. Ela falou sobre a responsabilidade que temos nas nossas mãos, nas nossas análises e nas nossas falas quando trabalhamos com história. Falou que objetos de pesquisa, antes de serem objetos, são vidas humanas.

Precisamos saber que estamos face a face com o outro, bem como com suas emoções, paixões, afetos, desafetos, esperanças, frustrações. Que este outro viveu – ou ainda vive – e que era querido por muitos e queria bem a outros tantos. Sofreu, mas que talvez tenha sido feliz. Neste dia eu chorei. E entendi que, para ser professor de história, devemos encarar a profissão não apenas com a responsabilidade que lhe deve ser atribuída, mas também com sensibilidade e afetuosidade. Com humanidade.

Além disso, carrego para dentro da sala de aula todo amor que encontro nas páginas de Paulo Freire e na sua pedagogia do oprimido. É necessário, talvez fundamental, que acreditemos e lutemos por uma educação que liberta, por uma educação que emancipa. Que se pretende transformadora e que é capaz de nos livrar das mais diversas dominações que nos são impostas. Acho que é nisso que acredito.

 

Ana- Agora vamos falar sobre os enfrentamentos e lutas contra crimes e preconceitos. Júlio, você é um homem gay e nunca escondeu isso dos seus alunos. Diante disso, você pode nos falar um pouco sobre a sua vivência, sobre os enfrentamentos, sobre as conquistas adquiridas e sobre as problemáticas que o mundo, a Universidade e a educação precisam enfrentar?

 

Júlio- Gostei muito desta questão, Aninha! Necessária, não é mesmo?

Um dos maiores medos que me ocorria quando pensava na profissão de professor era sobre a minha sexualidade. Eu sei que não deveria ser, mas era. Acho que carregamos com a gente o medo da desaprovação, da hostilidade e da violência, não é? Ao mesmo tempo em que tinha a impressão de carecer de coragem, sabia que não existiria melhor lugar no mundo para poder estar e debater do que em uma sala de aula. Uma sala de aula é um universo em constante construção – e desconstrução, principalmente.

Na primeira escola que lecionei, ainda nos primeiros dias, presenciei um episódio que me espantou, mesmo imaginando estar preparado e não ser capaz de me assustar com comentários já tão rotineiros aos ouvidos. No dia, levava a mochila que carrego comigo para a sala de aula. Um detalhe: ela é estampada com a bandeira do orgulho LGBT – maravilhosa, por sinal. Gosto de levá-la nas costas porque sinto que, de alguma forma, paradoxalmente, ela me antecede, entende? Ao entrar na sala, ouvi da boca de um menino de 12 ou 13 anos: Bolsonaro vai matar viado, hein, professor!

Como disse, a reação não veio.

Voltei para casa carregando aquela estranha sensação de ombros e cabeça pesados. Será que você tem coragem para lidar com essas situações? Me questionei no momento e ainda me questiono. Passados alguns dias, ainda com as palavras do menino na cabeça, tentei enxergar a situação com mais amplidão. Mas também recordava, com igual dedicação, as palavras de carinho que ouvi no mesmo espaço. “Que mochila linda, professor!”

Sei que pode parecer uma história tola, ou até mesmo banal. Mas me fez perceber que esses comentários que tanto me magoavam estariam em todos os lugares, mas nesses mesmos espaços também estariam muitos outros, com outras tantas cabeças e falas e afetos. Por essas e outras que, na atual escola em que trabalho, passei a encarar a situação da maneira mais natural que consigo. Nossa sexualidade não pode e nem deve ser um tabu, não é? Senti os reflexos imediatamente. Uma palavra trocada, um abraço ganho, uma confiança conquistada, uma queixa que deveria ser ouvida naquele momento e que não poderia esperar a aula acabar.

Isso quer dizer que a homofobia foi embora da escola? Desapareceu? Obviamente que não. Eu percebo muitas falas e críticas. Mas passei a enxergar em cada crítica e preconceito destilado uma preciosa oportunidade de dialogar. Acho que esse é nosso papel, não é?

Em 2017, com o projeto final da Base Nacional Comum Curricular, as discussões que versavam sobre identidade de gênero e orientação sexual foram suprimidas de maneira obscura. Tal medida, ao meu ver, foi um ataque contra uma educação que se pretende democrática, laica, cidadã. Que tenha como bandeira a tolerância e diversidade. O que me consola é saber que a História é feita por pessoas comuns, e pessoas comuns não são apenas pessoas heterossexuais e cisgêneros, mas também lésbicas, gays, bissexuais, assexuados, e transsexuais – e todas as outras orientações sexuais e identidades de gênero – que lutam, resistem e fazem história.

Mas não me assusto e nem me decepciono. A escola é um pedacinho de tudo que acontece ao seu redor. E se vivemos em um mundo que insiste em demonstrar e derramar sobre todos e todas a sua violência LGBTIfóbica, por que na escola seria diferente, não é? O diferencial que enxergo é que, estar dentro dos muros, nos chãos de sala, é estar preparado para: “vamos conversar sobre o que você acabou de dizer”?

É muito importante que a representatividade exista. Que estejamos em todos os lugares, ocupando os mais diferentes espaços. É importante que não sejamos o outro distante, mas aquele que é o nosso amigo, colega de classe, vizinha, nossa parente. É importante que seja, também, o nosso professor.

 

Ana- Bom, agora eu vou te fazer a pergunta curinga desta entrevista, tenho feito esta pergunta a todos os entrevistados. Esta entrevista está sendo feita em um período de pandemia, e, provavelmente será postada no portal HH Magazine em dois ou três meses. Diante disso, quais são as suas expectativas para esse futuro próximo? E, sobretudo, quais são as suas expectativas para o futuro do Ensino de História nas escolas e nas Universidades daqui para frente?

 

Júlio- Vivemos tempos tristes, não é mesmo, Aninha? Acho que está sendo difícil nutrir qualquer tipo de expectativas positivas para o nosso futuro próximo. Estamos vivendo um Brasil que se desbota diariamente. Só ontem, 19 de maio, 1179 mortos. Essas mortes que ecoam, essas histórias interrompidas. E o que ouvimos do presidente? O escárnio. Tubaína! Estamos nos acostumando a viver um luto que parece não ter hora nem dia para acabar. Enquanto isso, a negação, a relativização de uma tragédia. Enquanto isso, o desprezo pela dor do outro. Tubaína?

Diante de tudo isso, acredito que o Ensino de História tem um papel que é inquestionável, e não apenas nas escolas e nas universidades, mas em todos os espaços de debates públicos – incluindo as redes e mídias digitais. O negacionismo desumano que vemos crescer a olhos vistos é nocivo, perigoso. E se existe uma forma de contermos o seu avanço, neste campo covarde de disputas de narrativas que a história tem se tornado, acredito que seja por meio do Ensino de História.

As mudanças possíveis no ensino, acredito, devem vir todas no sentido de combater, portanto, o negacionismo e suas consequências. Obviamente, desde que este ensino esteja comprometido com a formação crítica, com a emancipação dos sujeitos, com a formação cidadã e com a consciência das nossas necessidades enquanto sociedade.

Experienciamos, hoje, uma temporalidade que é bem distinta da que vivíamos no começo deste ano. De repente, em um curto período de tempo, nos vimos forçados a repensar nossas prioridades, nossas necessidades e relacionamentos. Começamos a desenvolver novas relações com o nosso trabalho, com a nossa casa e também com o nosso próprio corpo. Passamos a conviver com um novo medo, um medo por nós e um medo por todos. Quem pode, desacelerou. Quem não, continuou. É certo que essas experiências são variadas, e, como sempre na história, vividas de maneiras diferentes por pessoas de classes, raças e até mesmo gêneros distintos. Mas, sem dúvida, se mostrou um episódio complexo e único para todos. Acredito, portanto, que esta pandemia seja um marco temporal sem semelhante na nossa história recente.

Estou respondendo a estas questões na semana em que as aulas não presenciais foram implementadas na rede estadual de Minas Gerais. Já sabíamos que este projeto seria de difícil implementação, mas não imaginávamos o quanto. Por esses dias, sendo sincero, tenho carregado um sentimento de frustração e impotência que têm me tirado o sono. Embora elaboradas estratégias para alcançar a maior quantidade de estudantes, o esforço não tem sido suficiente. Dentre os 1,7milhão, aproximadamente, de estudantes matriculados na rede estadual, por volta de 700 mil não contam com acesso à internet. E mesmo levando em consideração a transmissão pela tv aberta de aulas preparadas pela secretaria, a Rede Minas consegue alcançar menos de 200 municípios de Minas– em um universo de mais de 800.

Complicado, não é mesmo? O estado até tentou garantir o material impresso para aqueles que não possuem nenhum tipo de acesso à internet. Mas recurso extra para impressões? Impossível! Nós, que temos o cotidiano baseado no chão de sala, sabemos das dificuldades materiais enfrentadas pelas escolas. Não consideram que deixar um aluno ou aluna para trás já é ferir uma garantia constitucional, o direito à educação. Esta proposta, no meu entender, é apenas o escancaramento dos princípios políticos do governo estadual, que nunca escondeu sua ideia de acabar com a educação pública e demonstra a cada dia ódio aos professores.

Desculpe o desabafo, mas cada mensagem e áudio recebido de alunas e alunos com queixas das dificuldades enfrentadas é um sufoco no coração de cada professor. Imagine, agora, os desabafos silenciados daqueles que não conseguem se comunicar. A proposta é cruel.

 

Ana- Diante de tudo isso, quero saber um pouco sobre os seus projetos. Você pretende dar continuidade ao Clube do Filme? Tem mais algum projeto em mente?

 

Júlio- Tenho sentido muita saudade da escola, Aninha. Isso faz minha cabeça ficar imaginando alguns projetos possíveis e outros não tão possíveis assim. Mas sim, O Clube do Filme continuará. Sinto que ele funciona bem e que alguns alunos se apegaram a ele tanto quanto eu me apeguei, e também esperam com muita ansiedade. Portanto, quando as atividades presenciais retornarem, imediatamente O Clube também retornará.

Para este ano, O Clube será temático: cinema latino-americano. Incrível, não é mesmo?Estou muito empolgado com a ideia. Tenho conversado com amigos, buscando temáticas e filmes que poderão ser exibidos. História das Américas é uma grande paixão na minha vida, conseguir conciliá-la com este projeto tão querido será uma experiência muito emocionante. O cinema latino é único, nos apresenta uma quantidade sem fim de filmes que retratam realidades marcadas pelas desigualdades, explorações, violências e preconceitos que são tão comuns à nossa sociedade, mas também são característicos por representar uma riqueza cultural admirável. Desperta em nós aquele sentimento de identificação, de pertencimento, não é?

Para além, planejo organizar um cursinho pré-Enem para trabalharmos os conteúdos de história que ficaram prejudicados com a pandemia, e, com esse projeto de educação não presencial da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais que, ao meu ver, aprofundará – e já está aprofundando – ainda mais as desigualdades sociais e educacionais do Estado.

 

Ana- Por fim, quero lhe fazer uma provocação. Que filme você recomenda aos nossos leitores após esta entrevista, e por quê?

 

Júlio- Aninha, como estamos falando do Clube, puxarei um que me marcou de maneira bastante especial. Imagino que a grande maioria dos filmes debatidos já tenham sido assistidos pelos leitores que nos acompanharam até aqui, mas o convite talvez seja outro: (re)assistir.

No ano passado, o primeiro filme exibido foi o longa “Que horas ela volta?”, de 2015, da cineasta brasileira Anna Muylaert.O filme é de uma sensibilidade indescritível, e nos traz questões pra lá de pertinentes, como universalização e democratização do ensino superior público, condição da mulher na nossa sociedade – sobretudo da mulher pobre e empregada doméstica –, desigualdade social, o poder de uma educação emancipadora, ações afirmativas e muitas outras.

Depois da exibição, tínhamos as discussões. De acordo com que nos sentíamos confortáveis, as falas saiam de maneira espontânea e sentimental. Fazíamos a leitura da nossa realidade e chegávamos à triste – mas necessária – conclusão de que a realidade de muitos ali era tal qual a passada na tela. A “Val” era a mãe de muitos ali, que também se reconheciam, portanto, como “Jéssicas” – felizmente.

Guardo este primeiro dia com alegria, porque foi ali que entendi a importância que este projeto poderia ter, para mim, para a escola, para os estudantes e para a comunidade escolar. Então, leitores, o convite é para (re)assistir essa jóia da nossa produção cinematográfica. Para que, assim, possamos renovar as nossas forças para lutar e resistir por uma educação que seja pública, gratuita, de qualidade e “pintada de povo”.

 

Ana- Muito obrigada Juju! Foi um prazer entrevistar você e espero poder te encontrar logo para uma conversa, um café e um abraço!

 

Júlio- Aninha, o prazer foi todo meu! É sempre uma honra estar com você, mesmo que virtualmente. Também espero que nos encontremos em breve.

Um super abraço!

 

 

 


Créditos na imagem: Profs / Disponível em: https://www.profseducacao.com.br/2020/02/13/henri-wallon-a-afetividade-no-processo-de-aprendizagem/

 

 

 

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