Há algumas horas atrás um pedido especial, mas desafiador e provocativo, me foi feito. Me pediram para que assistisse ao recém-lançado ‘O fim da beleza: nos olhos de quem vê’, produzido pela Brasil Paralelo e parte de uma trilogia que inclui ainda os episódios ‘A sociedade dos engenheiros’ e ‘O chamado da tradição’. Para este texto, irei me dedicar a comentar apenas o primeiro episódio.

Deixo claro, de antemão, que o desconforto causado pelo documentário perpassa cada fala a seguir; precisei esperar para começar a escrever, tamanha a indignação que me foi gerada. A arte é, sem exagero, a razão de todas as minhas mais importantes escolhas e atuações dentro e fora do âmbito acadêmico. Trata-se de uma relação iniciada em âmbito pessoal e familiar, mas que ganhou contornos cada vez mais aprofundados e apurados, à medida em que comecei a estudar e a fazer arte. Esta necessidade inicial de me apresentar será esclarecida ao longo da escrita… difícil escrita.

Iniciando com o básico, é preciso que se compreenda que, em Crítica e História da Arte, uma análise que se inicia ou inclui adjetivos como “bonita”, “feia”, “linda” e “horrorosa” não é, de fato, uma análise. Resume-se apenas a um comentário originado do afeto ou desafeto causado pela estética da obra e, principalmente, impede que sua dimensão criativa e contextual seja realmente captada pelo público. Esta é a primeira lição aprendida por aqueles que se aventuram nessa área do conhecimento – lembro aqui, com carinho, do meu professor de Arte Moderna, com quem iniciei minhas práticas de escritas para divulgação. Pois bem. Cabem, então, os seguintes questionamentos: que beleza é esta que já se encontra em seu fim – aparentemente – apocalíptico, como menciona o documentário? O que dizer, então, dos “olhos que a vêem”?

Falar de beleza, sob os aparatos teóricos históricos e filosóficos – sobretudo aqueles de autoria de Platão e Aristóteles, implica na compreensão de que a beleza parte de construções sociais que, ao estabelecerem juízos de gostos, no fazem definir se algo é “belo” ou “feio”. Quando pensamos nas nossas próprias definições de beleza, tendemos a remeter diretamente àquilo que julgamos mais próximo da nossa afeição e até da ideia de perfeição. Aí entramos na principal definição de estética: aquilo que nos gera emoções, sensações de acordo com a construção de gostos que dispomos naquele momento. Há, ainda, aqueles pensamentos que remetem à uma memória de sociabilidades, como a visita a uma exposição de arte: ao nos dispormos a frequentar a exposição, é importante estarmos receptivos ao conhecimento e análise das obras. A nossa construção de gostos é feita e refeita diversas vezes ao longo da vida, na medida em que experienciamos situações diversas que abrem novas possibilidades de entendimento do belo, é o interesse em conhecer, ainda que este se inicie com o estranhamento. O gosto, na verdade, deve ser entendido como o potencial de conhecer sem julgar.

 A rígida e deturpada categorização binômia entre “belo” e “feio” como noção artística é característica de regimes/sistemas de exceção como o nazifascismo. Obviamente, essa identificação é implícita em cada momento do documentário, tornando-se gradualmente mais clara ao final. A hierarquização de gostos é um traço característico de regimes controladores, estabelecendo limites pautados na sua própria estruturação de ideários e organização. A relação de Hitler com a arte revelava-se conflituosa e estendia-se às suas práticas durante o período em que esteve no poder: basta lembrar que uma das motivações para o extermínio em massa de judeus foi “justificado” pela classificação do povo judeu como um povo “feio”. À essa ideia soma-se toda a atmosfera acerca da “superioridade da raça ariana”, inclusive no sentido estético, pois era considerada a raça mais “bela”. A perigosa associação de elementos sociais e, principalmente, de pessoas à tal divisão estética deve ser entendida como uma demarcação de controle típica de estados de exceção. A quem interessaria a hierarquização da arte – e, no caso do documentário – da noção integral acerca da beleza? Por quê acioná-la em pleno 2022 na forma de um documentário?

A introdução do documentário cambaleia na própria narrativa ao afirmar que o progresso e a rotina seriam os grandes motores da perda da sensibilidade estética, aqui mencionada evasivamente como a perda da beleza, que seria o que realmente importa. É importante registrar a profusão de imagens que se seguem nesta introdução, remetendo à uma realidade melancólica e sem nenhum traço de coisas que poderiam lembrar agradabilidades da vida contemporânea. É neste ponto em que são lançados os dados do jogo: são apresentados os entrevistados – a grande maioria, teóricos ligados direta ou indiretamente à História da Arte que ainda não conheceu o processo de readequação de seus instrumentos teóricos de análise, ou seja, que buscam, a todo custo, reafirmar cânones que já não servem mais nem à arte que antecede a modernidade.

Nem dez minutos, e eu já formulava minha tese, ainda com receio de estar certa mesmo se tratando de uma produção feita pelo Brasil Paralelo, conhecido deturpador de conhecimentos: o documentário não seria uma pesquisa, mas sim, uma indução a uma certa direção, ilustrada e audível através de uma seleção que atendesse, minuciosamente, o seu verdadeiro objetivo. Apesar de ser apresentado como um produto cultural com fins socioeducativos, não há transparência nas etapas de produção, e nem em seu plano de distribuição. Logo em seguida, vemos o porquê: a máxima bolsonarista que distorce o significado da liberdade de expressão aparece e marca a incoerência com o que se pretende ser o objetivo central do documentário: buscar a verdade. Acontece que estamos falando de uma pós-verdade, ou seja, da distorção inconsequente da verdade rumo a um objetivo alienante, excludente e utilitário para com quem a recebe. Em poucos minutos, vemos que nos é apresentada uma narrativa fechada em si mesma, e que busca apenas dar as voltas necessárias a nível teórico e audiovisual (estético) para se autoafirmar.

Para completar, o aspecto – a princípio, técnico e de marketing – que envolve as aparições constantes de anúncios e promoções relacionadas à Brasil Paralelo serve para escancarar o teor comercial da empreitada. O crescimento da Brasil Paralelo é descrito como algo orgânico, sem jamais mencionar sua relação com o governo Bolsonaro – escorregando apenas ao dizer que cresceu muito durante o período pandêmico, e aqui basta lembrar que este foi o período em que o veículo estreitou e alinhou totalmente sua atuação junto à do ultraliberalismo de Bolsonaro. Não demora muito, porém, para que a própria narrativa se entregue nos agradecimentos aos apoiadores – os “patriotas”. Entra então o novo questionamento: a que serve, realmente, este produto cultural e quais os impactos previstos? Interessante ainda é citar as inúmeras pré-definições e separações feitas ao longo da fala de apresentação: “venha para o lado de cá da mesa”.

A produção audiovisual de alta qualidade sobrepõe a superficialidade das falas. A tentativa inicial de descrever o que é beleza é frustrada e se resume a algo semelhante à idealização – pra não dizer das frases confusas de motivação que viralizam no WhatsApp de vez em quando. O apelo ao âmbito subjetivo do espectador para que este busque exemplos não-estéticos de beleza logo dá lugar ao seu contrário: uma descrição que exclui contextualidades e relega a arte apenas à beleza; o uso excessivo do termo beleza nesta parte se encarrega de induzir o espectador à enganosa mudança de perspectiva geral da beleza para a artística. O que deveria ser um apanhado filosófico sobre a beleza é apenas uma entrada psicoemocional que prepara o espectador para o que vem a seguir.

Eu já havia pausado o documentário várias vezes até aqui para fazer minhas anotações. Mas, finalizadas as introduções, passei a ter de pausar também para respirar e deixar livre minha expressão incrédula com que veio pela frente. Acontece que é aqui onde identificamos o maior problema do documentário – que é também a sua tese defendida, dobrando o sentido problemático da sua intenção. A arte moderna, sobretudo aquela pós-1960, é apresentada copiosamente como algo puramente negativo, depravado, vazio. Não há sequer uma menção positiva a qualquer produção deste período – a não ser em tons jocosos. Há um esforço massivo em situar a arte moderna como o grande problema do mundo contemporâneo, não considerando-se nenhuma outra dimensão social em suas mudanças e permanências. O algoz é a arte. A arte moderna, mais especificamente. Minha tese inicial se confirma na medida em que observo que, não por acaso, não haviam artistas contemporâneos dentre os entrevistados que não fossem favoráveis à narrativa da produção.

A partir daí, inicia-se um jogo perigoso e até perverso com a indução. A pretensa ideia do fim da beleza, que teria sido induzido pela chegada da arte moderna, não é discutida de forma científica e cultural. É combatida com uma indução ainda pior: aquela que deslegitima os afetos e pensamentos que estejam fora da sua órbita limitada e limitante. É preciso que se ponha, com todas as letras, o seguinte: ‘O fim da beleza’ é uma indução não à verdade e ao conhecimento, mas ao desconhecimento. Do quê? Simples: da sua própria fruição artística e cultural enquanto sujeito histórico. A sensação é a de que estamos errados em não viver a séculos atrás, estamos errados em não termos inventado uma maneira de congelar o tempo e vivermos o hoje.

Entramos agora no problema da figuração, talvez um dos mais óbvios para estarem presentes em uma produção com esta linha editorial. A representação da forma em suas variações – realista, estilizada, verossímil ou representativa como aproximação máxima da estética da perfeição é a chave de leitura central utilizada pelo documentário para direcionar cada fala. O argumento central gira em torno da presença da figuração na arte por milênios a fio, mas posta sob uma ideia de “ordem quebrada” pela chegada das vanguardas modernistas. O raciocínio parte do rosto humano como comunicador de sentimentos, diferenças e semelhanças. Gravado em uma escola particular de São Paulo, o momento reúne desenhos em que são identificados rostos humanos em casinhas desenhadas pelas crianças. Após a constatação de que o fato de uma cidade como São Paulo não apresentar tantas “casas com rosto” influenciava no imaginário infantil acerca não apenas da casa, como também da feição e identificação enquanto humano, o documentário solta mais uma fala extremamente contraditória e sem embasamento: se a arte teve perdas nas representações figurativas (rostos, corpos, etc.), ela então se tornou uma arte sem personalidade. A eliminação da figuração implicaria, pois, na perda da autenticidade do processo de criação artística, segundo o discurso montado, comparando o artista moderno/ contemporâneo e o publicitário também de forma pejorativa, diminuindo a importância de ambas as profissões.

Ora, aqui preciso deixar a clara observação de que O fim da beleza não encostou um pé no chão dentro de ateliês e, principalmente, de escolas e cursos superiores da área artística. Se assim o tivesse feito, não insistiria na falta de apuração da sensibilidade e na ignorância acerca do fazer artístico. É preciso que se compreenda que, neste caso, trata-se de um documentário utilitário, político e moralizante. Não se trata da arte em si, de trajetórias de artistas e obras. A superficialidade perversa do discurso dirige o espectador ao desconhecimento de espaços que este deveria conhecer, usufruir, ocupar. É difícil não lembrar de uma intenção de formação de público que se dá de forma fria e extremamente calculada, aos moldes bolsonaristas, e não contando com estruturas de ensino amplo histórico-social e direcionamentos críticos de análise que ensinem o público a se conectar à arte e ser capaz de dizer por si só quais as sensações e reflexões por ela causadas.

O documentário ensaia, por diversas vezes, uma discussão a nível histórico, mas logo muda de foco. Isto se dá, não por acaso, justo nos momentos em que a explicação entraria em contradição. Para um estudioso das Ciências Humanas, este recurso é facilmente perceptível, revelando as problemáticas do discurso posto. Contudo, o Brasil Paralelo é um veículo que conta, apenas no Youtube, mais de 3 milhões e trezentos mil consumidores de seu conteúdo. A massificação da desinformação é grave, sobretudo se disfarçada de informação, ou seja, na forma de pós-verdade; para parte do público, não será perceptível a grande quantidade de lacunas filosóficas e históricas, algo que marca, incontestavelmente, a irresponsabilidade social e a intenção manipuladora do veículo. Isto fica claro quando surge o novo tópico: a tradição como fruto da evolução, entendida aqui como o conjunto de erros e acertos adquiridos ao longo da existência humana – paradoxalmente “interrompida” com a chegada da modernidade e da arte moderna. O ponto central diz respeito a ideia de que a beleza é identificada principalmente na sociedade grega antiga ou clássica. E para por aí. É clara a intenção da produção em demarcar pontualmente a arte grega como a arte clássica, sem se preocupar com categorias analíticas históricas e historiográficas a respeito desta divisão, e muito menos com a coexistência, neste mesmo período, de outras formas de entendimento socioculturais da beleza pelo mundo. O aspecto mais visível é realmente o eurocentrismo; outras civilizações são apenas citadas – ou ainda, apenas ilustradas com fotografias.

A divisão elitista e reacionária se confunde com a falta de apreensão da arte abstracionista – algo que, diga-se de passagem, não é algo incomum nem mesmo ao meio artístico, mas reflete um modo e uma área de produção e conhecimento diferenciado da figuração, que tende a ser que mais acessamos no dia-a-dia. Uma questão que, a princípio, não deveria causar espanto ou desinteresse, e muito menos a produção de todo um documentário pretensioso. Por quê não há nenhum(a) artista abstrato para falar sobre esta vertente das artes plásticas? E por quê tanto esforço na direção contrária à da democratização do conhecimento artístico e sociocultural contemporâneo que rege a abstração ou a arte conceitual? Marcel Duchamp é colocado em um lugar que beira o ridículo, como se sua obra fosse apenas o que hoje chamamos de “meme”. Apesar de irônica e fortemente crítica ao seu tempo, a obra de Duchamp não se resume àquelas exibidas em exposições: o artista iniciou uma importante série de estudos acerca da fruição para além do olhar – o que vai de encontro ao que conhecemos como acessibilidade e fruição extra-sensorial. Ou seja, Duchamp contribuiria com a melhor preparação dos espaços culturais para as pessoas com deficiência (PCD’s), mas o documentário escolheu – isso mesmo, escolheu – falar de sua obra como algo sem nexo, sem personalidade e claro, sem beleza.

Um outro problema gravíssimo identificado claramente em uma das falas dos entrevistados é a que diz respeito à exclusividade e excepcionalidade da figura do artista. Duchamp teria, segundo uma das falas, iniciado um momento em que ficou subentendido que “qualquer um poderia ser um artista”. Esta é, para mim, uma das falas mais nefastas. A arte é parte fundamental do ser humano. Em cada um, existe a necessidade criativa, a necessidade de produzir e dar sentido ao mundo. A arte é o pulso da vida humana, pois dialoga com o que há de mais significativo nas suas experiências em cada período da História. Quer dizer, então, que uma pessoa nascida sem condições de ter um ensino de qualidade e acesso a espaços culturais não deve ter aptidão artística? Quem, então, deveria ser artista? O que é ser artista? Estas, definitivamente, não são perguntas às quais o documentário saberia responder. E nem se interessaria. A resposta implícita é: pessoas que têm condição de acesso a educação avançada (se possível, na Europa), e que estejam dispostas a parar no tempo e ignorar qualquer outra manifestação artística além da clássica europeia. Este é, segundo o documentário, o verdadeiro artista. Noção, no mínimo, cruel e sem o mínimo de noção da realidade fora da bolha. Sem o mínimo de experiência criativa – criativa, não copiadora. A experiência artística e cultural transforma. Abre horizontes, contribui para o desenvolvimento coletivo da mesma forma que a educação.

A quem interessaria, pois, a divulgação em massa de um discurso que grita “você não pode ser artista se não for o Michelangelo”?

A arte moderna é um problema porque representaria, segundo a narrativa, sentimentos individuais, egoístas e caóticos. Destaco, inicialmente, a seguinte reflexão: a falta de afeto e/ou identificação com qualquer linguagem artística não é um problema real quando falamos em arte moderna e contemporânea. Tratando-se de uma arte conceitual, é muito difícil que uma obra consiga representar todas as realidades, pois parte de um estudo realizado pelo artista dentro de sua realidade; isto não quer dizer que a obra é apenas para quem a criou, pelo contrário: é para aqueles que se sensibilizam a favor ou contra a proposta. É para todos. O processo criativo envolve tanto a dimensão individual quanto a coletiva, e afirmo: arte é para ir para o mundo, a não ser que o artista escolha não exibi-la. Talvez o maior problema seja a falta de sensibilidade, criticada no início do documentário, mas paradoxalmente escancarada como fio condutor da narrativa de indução. Uma reflexão que perturbou profundamente: estou errada, então, por admirar o trabalho de Rosana Paulino, já que ele não carrega estes traços – e discursos – europeizados? Estou errada em considerar o CURA (Circuito de Arte Urbana) uma importantíssima manifestação de ocupação, apropriação e criação de toda uma identidade cultural para Belo Horizonte? “Estou errada? Estou errado?”. Eis a indução ao desconhecimento.

Se não gosto de uma música, simplesmente não a ouço. Uma música pode ter um significado doce para mim, e amargo para o outro. Por que razão eu deveria impor a minha doce memória (ou o meu amargor) à escolha do outro, se ele também carrega suas próprias – e únicas – experiências de vida em sociedade? Falta de humanidade, e necessidade de controle, por certo. A tecnologia também aparece no documentário para legitimar a arquitetura pré-moderna como a mais adequada à restauração da beleza aos moldes clássicos, e atribuindo à arquitetura moderna a “criminalização” dos ornamentos antigos. A seguir, clareia-se mais uma indução, através da descrição dos fractais: uma estrutura, bela, que dá origem a várias outras menores e estruturalmente idênticas (fractais) e que, portanto, carregam a mesma beleza de sua matriz.  Tudo isto para chegar ao último – e mais moralizante – tópico: a beleza entre o sagrado e o profano.

Aqui, sim, vemos edificações não-europeias. Mas sem nenhuma descrição ou contextualização, apenas imagens. A inversão proposital do ser humano que antecede o ser religioso para o religioso que antecede o ser humano é incisiva, e parece justificar todas as outras inversões e distorções: da arte grega como imitação da realidade, quando na verdade destacava sobretudo a racionalidade humana, não se atentando propositalmente a outros elementos da composição; da Idade Média como período de “profundidade e significação” da relação arte-espiritualidade, sem ao menos citar o controle centralizador exercido pela Igreja Católica. A religião cristã europeia é retomada sem ser acompanhada de sua dimensão histórico-social, apenas como motivadora das criações artísticas dotadas da beleza tal qual a narrativa selecionada a define, uma noção advinda da dimensão sacra. Valores religiosos e filosóficos aparecem, por fim, para reforçar a real intenção de todo este percurso: uma validação seletiva de simbolismos e conceitos pré-definidos pela produção, mas sem fundamentação que demonstre pesquisa. A prova cabal é a defesa do papel “pedagógico” da arte sacra pré-modernista; as igrejas são lembradas como templos da beleza mais elevada; defende-se ainda uma espécie de hierarquização social e o fortalecimento do imaginário medieval acerca da beleza e seu diálogo com a instituição da Igreja Católica – não é nem possível, para mim, dizer que seria para o diálogo com a espiritualidade, tamanha a falta de veracidade que uma fala dessas, ainda que apenas repetida do documentário, representaria. A Renascença, a título de esclarecimento, também não serve à esta narrativa da indução, pois marca um encontro entre o sagrado e o profano – uma vez que a representação de humanos e de seus vícios a afasta da transcendência medieval.

Por fim, após uma custosa seção de indignação e cansaço, o documentário encerra propondo, já para a fala do segundo episódio, que a figura do intelectual – aqui mencionada como engenheiro social, seria a responsável pela transferência do divino de Deus para o homem, e toda a deturpação da beleza que procede à modernidade. A busca material é tida como egocêntrica e individualista. O modernismo marcaria um corte definitivo com o passado, no qual Deus ainda tinha o seu lugar, não tendo sido ainda tomado pelo homem. É assim que encerramos este percurso; com um apogeu de inversão de valores. O uso incansável de termos como “loucura”, “insanidade” e “essência dos delírios do homem moderno” vem, é preciso dizer, de pessoas – em sua grande maioria, homens brancos – inseridas no mesmo sistema capitalista moderno em que parecem alegar não estar. Pessoas que, provavelmente, não tiveram grandes problemas de acesso a nenhum dos conhecimentos que esforçaram-se por destruir neste documentário.

O que seria a beleza para eles, no final das contas? Arrisco um palpite: a beleza está em ignorar a sua realidade, e em ignorar a si mesmo enquanto sujeito histórico, responsabilizando-se apenas em contemplar o que foi selecionado e definido para que você contemple. Devo dizer que a perversão da indução é, por si só, um afastamento da transcendência que as falas tanto defendem a todo tempo. A nível do estudo de Crítica e História da Arte, é retrógrado, paralisado e infundado. A escolha pela ignorância, em vários níveis, é voluntária e intencional, pois não estamos falando de pessoas leigas, mas sim, sem a sensibilidade apurada que insistem em dizer que têm. Aviso aos que se aventurarem a assisti-lo que é gritante o insulto à inteligência humana. Contudo, é uma produção que chama a toda a classe artística, cultural e intelectual à ação, pois estamos vendo circular uma ferramenta de alienação em massa. Uma ferramenta de desumanização da cultura como vem se desenvolvendo de forma democratizante, inclusiva e diversa. O fim da beleza é um grave atentado à cultura, ainda que se disfarce de defensor da mesma.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: ‘Opiniões sobre o que quer e gosta são realmente suas?’. Thaís Trindade (Artivistha). Desenho autoral, 2022.

 

 

 

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