Ao final da década de 1990, o filósofo Cláudio Ulpiano Santos Nogueira Itagiba era um dos filósofos mais requisitados no Estado do Rio de Janeiro. Nascido em 1932, na cidade de Macaé, Ulpiano iniciou a sua trajetória acadêmica no bacharelado em Comunicação Social na Universidade Estácio de Sá. Depois fez mestrado em filosofia na UFRJ, defendendo uma dissertação sobre os estoicos e a reversão do platonismo, para depois se doutorar, também em filosofia, na UNICAMP. A sua tese foi dedicada ao pensamento de Gilles Deleuze, que passará a ser o seu maior interlocutor intelectual. Foi professor na UERJ e na UFF, sendo os seus cursos muito procurados. “Uma multidão de alunos, vindos de diferentes cursos e até de fora da instituição, lotava o local onde ele estava dando aula, espalhando-se pelo chão, pelo corredor, usando até mesmo o espaço das janelas para garantir um lugar” (ULPIANO, 2017). Realizou diversas atividades em filosofia, além de coordenar vários grupos de estudos. Ulpiano não deixou grande produção escrita, destacando-se a sua tese de doutoramento. A sua paixão eram, de fato, as aulas. Ali a sua performance como filósofo movimentava-se em liberdade, alcançando verdadeiros estados de epifania e de criação. A sua fama no Rio de Janeiro só crescia, sendo reconhecido como um praticante da “pop filosofia” de Deleuze, o que atraiu uma audiência bastante variada para os seus cursos, como profissionais liberais e artistas da música, do cinema, do teatro, além de pessoas com interesse geral em filosofia.

A dinâmica e a linguagem das aulas e dos cursos que poderiam parecer pura informalidade, devido a habilidade de Ulpiano com a didática somada à capacidade de refletir sobre questões do dia a dia, na verdade era um genuíno exercício filosófico, ou seja, a tentativa, à moda deleuziana, de fazer conceitos e criação interagirem mutuamente. Um artigo saído no Caderno Cultura do Jornal do Brasil, em 1993, nos faz ter um vislumbre daquela figura: “Os colegas puristas não deixam de ficar irritados com Ulpiano, que já deu aulas de filosofia até em botequins. [Ele] transforma o pensamento complexo em algo simples. Por essa razão é venerado por seus pupilos. Suas aulas, realizadas na casa dos alunos, são um acontecimento” (GERHEIM, 1993). Há até mesmo relatos de alunas e de alunos chorando após as exposições profundas e direcionadas para o cotidiano efetuadas por esse professor brasileiro. Chegava a estudar 15 horas por dia. Pouco dormia: cerca de 3 horas por noite. Mais dois relatos nos fazem ter uma ideia da sua persona. O aluno Luis Manoel disse isto: “Temos que nos agenciar com as coisas e as pessoas que nos fazem mais potentes”. Já Silvia Aguiar deixou este depoimento: “Assisti a uma aula de Ulpiano e não acreditei. Foi a primeira vez que vi alguém pensar” (GERHEIM, 1993).

Estes estudos dialogarão, em uma série de três ensaios, com a filosofia de Claudio Ulpiano, destacando os principais temas trabalhados pelo professor brasileiro, além de percorrer a labiríntica trajetória de leituras e de apropriações realizadas por ele. Na medida do possível nos valeremos das suas indicações para criarmos/compormos com as suas reflexões, além de oferecermos alguma estabilização possível ao seu pensamento disponível em aulas transcritas, mesmo sob o risco de apaziguarmos a potencia da sua criação, que se direciona para distintas linhas e perspectivas de conhecimento.

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As reflexões sobre o tempo estão presentes nas aulas de Ulpiano. Ele foi um exímio leitor de Deleuze, mas um leitor deleuziano: que opera não apenas a transposição de quadros conceituais, mas a aplicabilidade criativa, forçando o ato de leitura como apropriação inventiva. As suas meditações voltadas ao tempo direcionam-se, primeiramente, para Aristóteles. O estagirita associa a percepção da passagem do tempo com a noção de movimento. Não é difícil compreender o seu significado: a passagem de um corpo de um lugar para o outro. É uma forma de deslocamento. O tempo seria, nessa ordem de argumentos, a forma de medir o movimento ou o deslocamento. Por essa razão o tempo é seriado numericamente, estabelecendo sequencialidade processual. “Então, tempo para Aristóteles é o número inteiro e o nome de um período” (ULPIANO, 1996). Aristóteles chama isso de número numerado, que projetado ao tempo o faz ser percebido como número numerado do movimento. Assim ele é, então, medido e organizado.

O tempo passa a ser entendido como período. O que o filósofo faz é codificar o movimento. Essa necessidade humana estaria ligada à administração do deslocamento. “Quer dizer, o movimento tem uma ordem, um equilíbrio, por causa do tempo, por causa do período temporal que está administrando aquele movimento” (ULPIANO, 1996). O tempo torna-se o período, o que faz o movimento ficar condicionado a ele. Essa disposição de pensamento é o que leva ao aprisionamento das temporalidades. O tempo é, dessa maneira, preso por Aristóteles. Nesse momento, quando uma aluna interrompe a preleção de Ulpiano, ficamos sabendo a sua percepção acerca das temporalidades, subvertendo Aristóteles deleuzianamente. A aluna pergunta se o tempo seria uma unidade. A resposta do filósofo brasileiro é categórica: ele é uno e múltiplo, acionando toda uma tradição de pensamento bergsoniana. O tempo se estabeleceria por meio de vários períodos: estes, aqueles, outros, infinitos. Interessante o sentimento de Ulpiano ao dizer que essa forma de perceber a experiência do tempo, por seriação, é dominante no ocidente: “Nós só sabemos trabalhar com esse tempo periódico” (ULPIANO, 1996).

Os períodos como codificações tornam possível a identificação artificial do tempo. É a periodização. O tempo aprisionado às regras do período, tornando o movimento, cuja natureza é múltipla, ordenado. Mas no próprio universo grego existiam sinalizações para outras formas de perceber a passagem do tempo. Para que isso pudesse ocorrer o tempo teria que libertar-se das periodizações, pois deixando de ser período ele perderia aquela perspectiva inicial de medição do movimento. Para que isso pudesse ocorrer Claudio Ulpiano usa a potente imagem do enlouquecimento do tempo, que se dá quando há a separação entre tempo e movimento, interditando, assim, as periodizações.

Aristóteles mesmo se ocupou disso. Passou a separar o tempo supralunar, acima da lua, do tempo sublunar, abaixo da lua. As formas de periodização estariam disponíveis apenas para o primeiro caso, dado que a estaticidade dos astros tornaria possível a medição dos movimentos através da noção de rotação. Era o movimento uniforme e perfeito. O movimento entorno de si não muda, estabilizando as periodizações. Porém, existiria o outro polo: o mundo da terra. É o ambiente não das periodizações, mas das trajetórias, das sinuosidades, dos corpos em deslocamentos variados em que a noção de velocidade enlouque os períodos, os desarranjando, os desorganizando e os desconcertando. Os movimentos passam, assim, a repelir os períodos. Uma aluna faz a pergunta necessária para aquele momento: o tempo perderia a regularidade? Assim Ulpiano pôde dissertar sobre os horizontes do tempo do mundo, em que se suspende a perspectiva de regularidade, de uniformidade e de perfeição. Abaixo da lua os tempos são imperfeitos, impermanentes, variantes, instáveis, angulares, com ritmos heterogêneos. O tempo humano é, então, aperiódico. É o chamado movimento aberrante, que possibilita a experiencia temporal por meios de velocidades diferenciais, tornando obsoleta a clássica noção de período. O movimento aberrante é, então, sintetizado pelo filósofo carioca:

 

O movimento aberrante é quando o movimento se separa do período. Quando o movimento se separa do período, ele começa a se tornar aberrante e o tempo a se tornar aperiódico. O tempo vai se libertando do movimento, ele vai se libertando do período no qual ele estava incluído (ULPIANO, 1996).

 

Esse problema era importante para Ulpiano, a ponto de dizer que essa era a grande questão da vida: “libertar o tempo do movimento”. O filósofo foi mais radical em seu apontamento: “libertar o tempo é vencer a morte” (ULPIANO, 1996). A intenção de Ulpiano é imprimir uma espécie de fenomenologia do tempo: deixar de o compreender pela noção de movimento para o enfrentá-lo diretamente. Nesse ponto o professor carioca inicia um diálogo propositivo com Immanuel Kant, no sentido de tornar possível uma percepção do tempo de maneira aperiódica, como forma vazia. “Quando ele perde a periodicidade dele, anos, horas, minutos, seja o que for… ele se torna o que se chama de pura forma vazia” (ULPIANO, 1996). Ulpiano quer imprimir duas direções combinatórias para a reflexão: a libertação do tempo do período, descongelando a concepção clássica e unitária de movimento, o tornando enlouquecido ou aberrante, o que implicaria na perda da noção de regularidade, sendo ele impassível de observação ou de acompanhamento, muito menos de medição. A perspicácia de Kant é a de não tomar o movimento como razão e como causa última do tempo. O filósofo inverte a lógica. Para ele é o movimento que está subordinado. Assim, a questão posta ao pensamento ocidental, desde ao menos as reflexões do autor da Crítica da razão prática, é a de conquistar o tempo que se libertou da noção clássica de movimento, da passagem de um lugar ao outro. “Porque conquista do tempo é sinônimo de liberdade” (ULPIANO, 1996).

Ulpiano pressiona a sua filosofia por várias linguagens e flexiona segmentos teóricos. Como no momento que reflete sobre as relações entre forma e conteúdo, majoritariamente cingidas e dualizadas. Na tradição aristotélica o tempo seria entendido como a forma em busca da adequação do seu conteúdo, quer dizer, o movimento. Mas essa cisão é suspensa a partir da entrada em cena do corpo, condição para a existência em si dos movimentos. O aristotelismo disponibiliza a noção de bloco de espaço-tempo, que é a disposição de associar tempo à deslocamento, ou movimento mais período, o que faz emergir as noções do “aqui” e do “agora”, que se situam nas periodizações, orientando-as. É na passagem do século XIX para XX, na leitura da filosofia ocidental operada por Ulpiano, que emerge toda uma gestual plural de libertação do tempo, cujo objetivo é fazê-lo transcender o movimento em sentido clássico. É a tentativa de esvaziar o caráter indireto da experimentação do tempo, na direção de que ele só pode ser apreendido se percebido secundariamente ante a periodização. O tempo é agitado, frenético, multidirecional, incontrolável, imperfeito, variante, aberrante. Isso é importante porque o movimento aristotélico mede o deslocamento, a passagem unidirecional do passado para o presente. O movimento aberrante, das temporalidades desorientadas, estilhaça-se e se envolve em múltiplas linhas temporais, que se cruzam, se atravessam, se (re)combinam.

O naturalismo em literatura, como no caso de Émile Zola, ou no cinema, posteriormente, com Luis Buñuel, seria uma expressão de assimilação do tempo de maneira direta, seguindo orientação de Gilles Deleuze. Zola e Buñuel operam formas de percepção da realidade consideradas não realistas, expressões de pensamento que aprisionariam, de alguma maneira, o tempo ao movimento. Os naturalistas quebram, ou rompem, com o gancho realista. O naturalismo faz o tempo superar o movimento, pluriversalizando-o. Se oferece, em última instância, liberdade e independência para as temporalidades e para as suas variações. Lembrando que não são apenas os naturalistas que se lançam na libertação do tempo. Outras linguagens literárias, filosóficas e cinematográficas caminham nessa direção, como no chamado nouveau roman de uma Marguerite Duras ou de um Alain Robbe-Grillet. Menção importante é feita à literatura de Orson Welles. Esses autores, com atenção para os que movimentavam a linguagem do naturalismo, enfrentavam os realistas, tais como Balzac ou o cineasta Elia Kazan, que valendo-se da estética realista pretendiam organizar, medir e prender o tempo.

Esses autores que multiplicam o movimento e libertam as temporalidades estariam articulando o chamado tempo negativo, onde há o governo da pulsão de morte. Mas antes de se aprofundar nessa investigação, ele reflete a importância do pensamento de Newton, do seu modelo dinâmico, mais precisamente a ideia de um tempo reversível. Isso tem a ver com a noção de gravidade, porque será possível pensar o tempo em estado de previsão, mas não apenas lançando-se para o futuro, mas em direção ao passado. Isso porque no mundo gravitacional existe a possibilidade da reversão. A questão é que Newton pensa o tempo, também, sob a perspectiva do movimento, em uma espécie de atualização aristotélica, que também era, cabe dizer, um pensador da física. Tanto para um quanto para outro é o movimento, a forma, que condiciona os extratos temporais.

Ainda na física, os pensadores da dinâmica enfrentam os pensadores da termodinâmica, que apontariam para a irreversibilidade do tempo. Tempo irreversível, em termos imagéticos, seria a morte térmica. Filosoficamente se estabelece o tempo da desdiferenciação, em que as coisas tornam-se idênticas, onde nada ocorre. É a entropia em física. A entropia é o olhar direto para o tempo, em que a sua irreversibilidade é inconteste. É o tempo da morte, da destruição. Há, como se pode ver, a libertação do tempo do movimento, mas através de uma dimensão negativa. Forçando a (multi)linguagem, flexionando os campos de saber de forma transversal, Ulpiano projeta essa percepção filosófica do tempo para o cinema de Erich von Stroheim, especialmente Ouro e maldição, e para a literatura de Isaac Asimov, em Escolha a catástrofe (1979). A opção naturalista, que liberta o tempo através do polo negativo, é a da irreversibilidade. As personagens direcionam-se para a degradação, para a destruição, para a morte. A irreversibilidade não depende do movimento, do período; o tempo é livre, manifestando-se em termos ontológicos. Uma das dimensões do ser do tempo seria, então, o irreversível.

Greed (Ouro e maldição) – 1924

O enredo de Greed (1924) se desenvolve a partir dessa lógica. Trabalhando com um dos ditos pecados capitais, a ganância, Erich von Stroheim conta a história McTeague, um ex-minerador que se torna dentista em uma cidade vizinha a sua. Ao relacionar-se com Marcus e com Trina, desenvolvem a propensão à cobiça e à ganância. Essa disposição aumenta após Trina ganhar na loteria, ascendendo aqueles afetos, que acabam superando o agir consciente. Essa mudança dos personagens, controlados por uma espécie de força irrefreável, os encaminha para ruina e para a degradação. O cinema naturalista de Stroheim que ir, na leitura deleuziana de Ulpiano, ao âmago mais profundo do ser humano. Para um âmbito até mais do que psicológico, mas psicofisiológico mesmo.

A estética naturalista, na percepção de Claudio Ulpiano mediada pela filosofia de Deleuze, seria uma metáfora possível para o tempo não submetido ao enquadramento artificial do movimento, da periodização. A ideia de forças, muito mobilizada pelos naturalistas, seria essa imagem do tempo que rompe com o enquadramento do movimento. Aquele desejo exacerbado, aquela ganância, percebidos como forças, numa direção aproximada à noção de instinto, seria mais forte do que qualquer fator de cultura organizador da existência. Aqui temos umas das imagens de tempo não aristotélico, que não é passível de controle e de ordenamento. Ele simplesmente irrompe, projeta-se para desmesura. Quando Ulpiano reflete sobre o naturalismo, ele volta-se para as temporalidades do corpo, que não podem ser medidas e padronizadas em sentidos unívocos. Importante dizer que os determinismos dos naturalismos, mais visíveis no século XIX, são suspensos, mas essa dimensão corpórea é evocada. Algo que Stroheim explora no filme quando, por exemplo, McTeague é apresentado por uma cartela que assinala que o mesmo herdou a ternura da mãe e a animalidade do pai. Em vários momentos há cortes que fazem os espectadores associarem os personagens com animais. Eles estariam agindo assim na trama, sendo movimentados por temporalidades subterrâneas, incrustradas no corpo, no somático; não apaziguadas.

O tempo em estado de libertação que acompanha o cinema naturalista, por meio do polo negativo, se volta para uma espécie de pulsão destruidora: quer romper, arrebentar, distorcer. É uma revolta ante o aprisionamento do tempo. Mais dois cineastas trabalham a apreensão temporal fora do esquema aristotélico. Joseph Losey, em Casa de bonecas, com a noção de violência contida. E Buñuel com Anjo exterminador, com as noções de retorno e de repetição. São três modos negativos de operar o tempo aperiódico.

A Doll’s House (A casa de bonecas) – 1972

A casa de bonecas também evidencia formas de apreensão da temporalidade não aristotélica. O filme é uma adaptação da homônima peça de Henrik Ibsen. Ulpiano enxerga na obra outra imagem de tempo negativo, a da violência contida. O enredo do filme conta a história do casal Torvald e Nora Helmer. Ele, um bem sucedido gerente de banco, condiciona as ações de Nora, percebida por ele como uma boneca de porcelana, sendo tratada de forma machista e autoritária – percebida como alguém frágil, sem força, infantil, fútil. Os gastos de Nora eram um segredo. Ela o contraíra com o seu advogado Krogstag para fazer uma viagem à Itália e socorrer a sua saúde. Porém, o advogado passa a chantageá-la para não perder o emprego no banco presidido pelo marido. Mas ele revela a atitude de Nora, podendo torná-la pública, o que impactaria na reputação de Torvald.

O filme todo carrega essa violência contida. Primeiro através do comportamento de Torvald, que sob a roupagem da proteção da sua esposa a partir da ideia de sexo frágil, acaba por violentá-la por meio da submissão e da subestimação. Segundo: Nora que possui esse segredo, mas se contem, não deixando explodir em violência explícita, o que ela poderia fazer. Por fim, Krogstag que chantageia Torvald. A imagem do tempo está nesses planos temporais encobertos e/ou latentes, que se movimentam na invisibilidade, que se desenvolvem em paralelo ou transversalmente. O indizível é encoberto pelos interesses e pelos movimentos sociais. Esses movimentos aberrantes estão contidos, assim como Ulpiano percebe os diversos planos de temporalidade que nos atravessam, com ritmos, com impactos, com movimentos e com durações multidirecionais.

El ángel exterminador (O anjo exterminador) – 1962

O Anjo exterminador é outra película que rompe com a temporalidade do movimento, flexionando o naturalismo por meio da estética surrealista. O enredo: a desconstrução da sociedade aristocrata, o desmascaramento dos padrões sociais. A trama se desenvolve num grande salão onde há um jantar. Mas há algo que faz os personagens ficarem presos ali, mesmo não havendo impedimento físico. Há o retorno a um estado possível de animalidade e de despersonificação. As personagens agem sob a pressão do corpo. Banheiros improvisados, sexualidade reprimida, fome, sede, morte. É a derrubada da moral, da hipocrisia, das aparências burguesas. As imagens da dessacralização do ethos cristão são fortes, como no momento em que os cordeiros atravessam a sala e são sacrificados. Buñuel força movimentos aberrantes: temporalidades subterrâneas, paralelas, disruptivas, vazando por planos fora da orbita do sentido, da identidade, da moral, do socialmente construído. São tempos devastadores. Por isso Ulpiano considera que são temporalidades libertadas pelo polo negativo. Ele compreende o filme a partir da lógica do eterno retorno, mas no sentido dos antigos e não na atribuição nietzschiana.     

Por outro lado, Alain Robbe-Grillet e Orson Welles, que também se aventuram pela libertação do tempo, projetam-se no polo positivo, que o filósofo brasileiro passa a chamar de afirmativo, no sentido nietzschiano, também aperiódico, mas não voltando-se para a destruição e para a irreversibilidade, mas para a perspectiva do tempo criativo. Foquemos, então, em O ano passado em Marienbad, dirigido por Alain Resnais e com roteiro de Robbe-Grillet, em que Claudio Ulpiano trabalha com as noções de pontas do presente e lençóis do passado, formas de libertação afirmativas das temporalidades.

L’Année dernière à Marienbad (O ano passado em Marienbad) – 1961

O ano passado em Marienbad explora a multiplicidade dos tempos, deixando em evidência que as construções de sentido, a ordem do tempo, são artificialidades narrativas de conforto. Tempos, espaços, personagens estão fora do movimento em sua perspectiva clássica. É um elogio ao impermanente, aos ritmos descompassados das temporalidades, às (de)sincronicidades da duração. Os flashbacks e os flashforwards desorganizam as disposições temporais e espaciais, quebrando com as noções de sentido e de orientação. A narrativa é totalmente fragmentada, em que diálogos se atualizam em contextos diferentes. É uma quebra com a noção de contexto unitário, e mesmo referencialidade absoluta, tanto que os personagens não tem nomes. Noções como confusão, como desconexão, como justaposição, como caos podem ser empregadas na direção de elaborarmos e de compormos, com Claudio Ulpiano, uma percepção acerca das temporalidades que esteja fora dos planos da ordem, do movimento e da periodização. O ponto que chama, pois, atenção do filósofo está nas performances do sr. X e da sra. A.

O primeiro tenta convencer a segunda que eles se relacionaram no passado, mas a mulher não se lembra. O sr. X insiste. A metáfora temporal possível é das temporalidades invisíveis, correlatas ou encobertas.  Lembrando que o filme flexiona a estética onírica surrealista, que são desorganizadas e plurais, sem o filtro das narrativas de sentido e de identidade. A cada vez que a mulher não lembra é refeita toda uma anamnese que rearranja e recombina as temporalidades intuitivamente. Isso vai se sucedendo, sendo que repetição e diferença se flexionam e (re)criam o novo, ou o afirmativo, em que pontas do presente, ideia deleuziana, se voltam para os lençóis do passado, que traz uma ambiguidade semântica interessante: ao mesmo tempo que os lençóis se remetem às mortalhas e aos sudários, voltando-se para o encoberto, por outro se abrem para camadas, estratos, extensões subterrâneas e porosas. Das pontas do presente se acionam lençóis do passado, movimentos que não vemos na superfície, mas que estão em deslocamentos próprios, pluralizados e em movimentos extensivos variantes e imprevisíveis.

 

 

 

 


REFERÊNCIAS:

GERHEIM, Fernando. A metafísica do dia-a-dia. Jornal do Brasil, 1993. Disponível em: https://abre.ai/fLte Acesso: 06 de fev. 2023.

ULPIANO, Claudio. O movimento periódico e a forma vazia do tempo (Aula transcrita), fevereiro de 1996. Disponível em: encr.pw/ofox5 Acesso: 06 de fev. 2023.

ULPIANO, Silvia. Relato biográfico sobre Claudio Ulpiano. 2017. Disponível em: https://acervoclaudioulpiano.wordpress.com/ Acesso: 06 de fev. 2023.

 

 

 


Créditos na imagem: Acervo Cláudio Ulpiano. Acesso em 20 de março de 2023.

 

 

 

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