Há várias cadências em um mesmo indivíduo, que se comunicam, contraem-se e expandem-se, entrelaçam-se em relações e o tornam único mesmo que se acumulem incontáveis pessoas sobre a terra; há uma diversidade de impulsões, de memórias, de apegos e aversões que podem ou não vir a ser objeto de percepção alheia – talvez tudo acabe vindo à superfície mais cedo ou tarde, mas sem que nos esforcemos em cruzar símbolos, afetos, rotinas e padrões, sem que nos importemos, muito se perde na realidade discreta dos ocorridos e, muitas vezes, do que se imagina que deve ocorrer. Muito do que nos constitui como indivíduos requer olhar e/ou escuta, toque, troca, enfim. Perceber as nuances dessas tramas justifica trabalhos longos, que calejam, exigem dedicação, e ainda assim permanecem dobras nos indivíduos que nunca serão observadas, transcritas – há quem creia que esse intocado assim deve permanecer, distanciado pelo medo e pela reverência.
Também por isso o trabalho educativo é tenso. Envolto em alegrias e tristezas, novidades diárias e duradouras esperas, abre espaço às singularidades e o pratica criando vínculos entre os indivíduos e as normas gerais. De certo modo, tira-se com uma mão o que se dá com a outra, mas a ideia geral não guarda nenhuma contradição, pois orientar singularidades em meio ao comum é uma das definições possíveis do educar. Uma definição interessante, aliás. O que insinua uma triste contradição é que o tirar consiga, não raro, a prevalência, que o comum prescinda do singular e torne-se somente um geral. Seria isto, perder é a lição a ser aprendida em uma sintonia com o mundo real? O assemelhar-se é o ganho a ser esperado ao “fim” desse processo? Não é sempre que essa contradição se insinua: condições precárias e gente que se importa se chocam constantemente e não podemos dizer que há derrota, tampouco vitória – há esse conflito constante, só que mais do que nunca, hoje, uma dualidade se desfaz: alguns fracassos da educação privada mostram que os conflitos e as contradições não caem apenas do lado público (na escola pública, por exemplo), mas dizem respeito a algo mais profundo que as educações podem alcançar.
Essa espécie de pedagogia da derrota foi associada ao ensino básico público, uma imagem disseminada baseada em desconhecimentos, mas, também, em experiência. Pois, com efeito, há contradições e conflitos profundos instalados na educação pública brasileira desde sempre. E, creio que seja notável, abismos persistem e até se aprofundam – em especial com as reformas do ensino – entre o básico público e o privado. E nem se espera que conflitos e contradições não existam no ensino privado. A promessa que é relevante, aqui, é outra: de que se irá vencer. Promete-se que a derrota é do outro porque sua criança e seu jovem terão a singularidade não apenas respeitada, mas cultivada. E a crença no poder de que isso pode ser comprado é tão arraigada que se esquece que a singularidade não se perde, e que dinheiro nenhum a garante.
E assim sendo, muitas são as razões de levar a uma escola privada e nem todas existem da negação do público, os entrelaços permitem muitas perspectivas – é a promessa que importa neste momento, até porque é sobre isso que posso divagar, sem a preocupação, que não tenho, de procurar escolas para minhas crianças, que não existem. Essa imaginação sobre a educação pública brasileira cedeu à fatalidade de que há uma derrota e de que ela se deve a muitos de nós, educadores, educadoras, de quem em várias vertentes trabalha com a educação, seja por má vontade, seja porque com a miséria que recebemos não podemos trabalhar bem. Assume-se a pedagogia da derrota como parte de um fado que temos de carregar – um fado que o dinheiro pode aliviar ou mesmo eliminar (é uma extensão dessa crença). Pode-se pagar pela pedagogia da vitória, pois esta é um produto, como tantos outros. Porque tudo depende de o indivíduo ser bem treinado para que tudo dependa apenas dele.
O bom encontro com os saberes, a experiência mostra, alavanca outros critérios – muitos dos quais, de fato, escolas privadas, a depender de suas condições, podem fornecer melhor. De qualquer maneira, o bom encontro com o saber – e aqui fico com Espinosa, filósofo de longas datas, do século XVII – é causa de alegria, ou seja, de fortalecimento do que nos instiga à vida (no âmbito individual, dos afetos e feitos que reconhecemos nossos, e do que vemos fortalecer a comunidade), do que nos comunica o mundo sem torções de domínio de uns sobre outros, embora seja inevitável o contato com o horripilante: a experiência faz um conhecimento que inclui absorção de desastres (a aceitação já depende de inúmeras variáveis) e interioriza que a vitória de uns depende da derrota de outros, que a liberdade consiste em ultrapassar a fraqueza alheia e pisar na existência de quem se “quis”, de uma maneira ou outra, ser derrotado.
Claro, tudo isso se dá com a intromissão de meios termos, passagens, permanências, diálogos e imposições. Caso se faça disso uma luta “bem contra mal”, como tudo que assim se faz, é o poder – de grana e de armas, simbólico e afetivo – que decidirá o braço de quem se levanta (nada mais que a meritocracia), e pelo corpo social amadurecerá então um sentido de educação que se nutre de mortificar as singularidades; a moral, como produto de forças plurais que não se veem como plurais e sim como hegemônicas e necessárias, acaba por cumprir o papel que nenhuma abstração pode cumprir, e daí a contradição lancinante: a legitimação pedagógica da tristeza, da submissão, do silêncio forçado. É como se fosse possível separar indivíduo e comunidade nesse processo que se chama educação, e como se fosse possível, a quem quer que seja, apoiar-se na derrota como condição de vida. Isso apenas gera raiva e morte. Como envolver-se com a derrota? Como aderir à solidão – aquela – que é signo de morte?
Não há como pôr tais questões e me limitar a um texto apenas – por isso, pela primeira vez, arrisquei colocar um “I”, indicador de que haverá continuações, já no título. A singularidade nunca deixa de ser esperada, em graus absurdos de civilização homogeneizante ela ainda é um brinquedo em que todo mundo quer tocar, se não for o caso de brincar. Onde a singularidade surge e como se faz é terreno de disputa, e nisso nos metemos – quem se importa –, pois daí nos lançamos a romper silêncios amortecedores em salas de aula, a fazer razões pulularem para que a revisão prevaleça sobre a punição, para que, se for o caso, o termo autoridade não seja subnutrido por um concílio de pessoas (mães, pais, equipes escolares, autoridades pedagógicas, etc.) dispostas a abafar as singularidades que ameaçam a linearidade rígida que hierarquiza o educar entre quem sabe e quem deve aprender. Que rigidez é essa que cede aos sons e movimentos inesperados de uma criança, de uma jovem singularidade?
Há um fiasco perigoso na crença de que ser cliente garante – e tratamos da educação – a vitória, seja qual for a extensão que tenha a competição de que se trata. Pagar por educação não somente não é o problema (esse problema não deixa de ser pertinente, mas depende muito de aspectos dos quais nem chegamos perto aqui), mas camufla algo mais: há pelo menos uma promessa aí que é tipicamente neoliberal e, contiguamente, enganosa, a de que há um tipo de singularidade que vale a pena no mundo real, e de que essa construção – que é de vidas – pode ser comprada (a valores que dependem, em muitos casos, da dedicação de uma ou mais vidas para serem pagos).
Tantas questões a serem tratadas – este pequeno texto se fez sem esperar conclusões, mesmo assim determinou que haveria de ser continuado. Vejo então que se trata de um apelo a um tanto mais de experiência, talvez até mais de erudição (de que fugi deliberadamente neste texto em particular, no qual apenas alguns sentimentos foram despejados). Mas há algo que me coça as orelhas e que, parece-me, leva a outras ideias que serão tão inconclusas como as atuais – sem missão alguma, talvez a inconclusão seja a deixa para as próximas cenas.
Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Chronosfer
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Perfeitooo DEMAISSS! Que orgulho do meu amigo!
Brigado pela leitura, querida, saudadesss