Bem-vinda melancolia: Nick Drake e os 50 anos de Five Leaves Left

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Em 3 de julho de 1969 é publicado o primeiro álbum do cantor e compositor britânico, Nick Drake. A primeira vista, Five Leaves Left nos é apresentado mais como um mistério a ser solucionado, do que um simples LP fechado em si mesmo. Hoje, após 50 anos da sua publicação, pouco se sabe sobre como um jovem britânico de 20 anos construiu uma obra tão fundamental para o cenário da música folk. Suas contribuições foram, em uma dimensão musical, imprescindíveis; nunca alguém havia feito aquilo. Com longas unhas seu dedilhado é forte e juntamente com o domínio poético, Nick sustenta o som do violão no meio da orquestração complexa. Apesar do pouco reconhecimento suscitado na época, hoje, Five Leaves Left é considerado o 150º melhor álbum, dos 1001 Discos Para Ouvir antes de Morrer, de Robert Dimey.

Robin Frederick comenta que “tanto a harmonia, como o ritmo, tem aparentemente um efeito mágico em quem o escuta; é uma agridoce combinação” entre o mundo melancólico e o mundo da esperança. Mais do que músico, Drake é um poeta que fala sobre o movimento das coisas, que intenta compreender a luz que atravessa as árvores, que põe a emoção na palma de nossas mãos e sabe que todos nós podemos compreender e amar a magia desse mundo paradoxal.

Como se sabe, não houve áudios de Nick falando, nem mesmo vídeos das suas performances. O que nos restou são apenas fragmentos fotográficos e seus três álbuns elaborados durante sua corta existência. Seu primeiro disco Five Leaves Left, publicado quando Nick tinha apenas 20 anos – ainda aluno da Universidade de Cambrigde[1] – nos reserva um lugar celeste. Caminha entre o áspero e o conforto de veludos. Conjuga a poesia na musicalidade. Sua visão natural da ordem do mundo envereda entre uma ideia de revelação e de mistério; tenciona, ao mesmo, tempo, o melancólico e o esperançoso. Dois mundos que se conjugam e transcrevem uma ausência da qual nunca poderemos alcançar.

Quão doce soa Day is Done aos ouvidos – parece ter vindo de outro mundo: cada arranjo encaixa perfeitamente sobre a métrica das palavras. Cria-se uma ordem que nos permite ficar perdidos. Não se entende como foi possível no início dos anos de 1970, canções tão místicas e sem rótulos – ninguém tinha almejado aquilo! E como não pensar na fragilidade de Fruit Tree que contesta aquele antigo desejo de fama e permanência da memória por parte dos grandes homens. Piedosos, sábios, esclarecidos – Dom Quixote’s que lutaram nessa terra para preservar suas façanhas na cabeça de transeuntes desinteressados. Ela nos lança ao chão:

 

Fama é uma árvore frutífera

Tão estática

Que pode nunca florescer

Até que os ramos encontrem o chão

Alguns homens de renome

Podem nunca encontrar um caminho

Até que o tempo voe

Além do dia de sua morte (DRAKE, 2019, p. 173)

 

Nick Drake explorou o tolerável e o intolerável; o imutável e o movimento. Sua música parece confrontar a antiga tópica do dualismo terreno/celestial. Alguns estudiosos da sua obra argumentam que suas influências retomam uma mistura entre a tradição barroca, com a leitura dos poetas do romantismo. Aluno de Cambridge, na área de literatura inglesa, Nick foi um leitor voraz. Segundo o catálogo de livros que pegou na biblioteca da Universidade, seus autores favoritos eram John Keats, Charles Dickens, Hermann Hesse, Alexander von Humboldt, Jonathan Swift e Alexander Pope.  Em uma carta de 12 de fevereiro de 1969, Nick escreve que “o trabalho não é de todo mal. Estou estudando poetas do século XVII e XVIII, gente como Swift, Pope, Blake, etc., que têm muito a oferecer, cada qual ao seu modo” (DRAKE, 2019, p. 109).

Nessa dinâmica entre o melódico e o harmónico vemos as possibilidades poéticas e musicais criadas por Drake. Five Leaves Left é sobre desapego, flutuação e esquecimento. Segundo Pete Paphides, “Nick estava encontrando novas e sofisticadas maneiras de expressar um fatalismo”, e seu primeiro disco “remete à filosofia do absurdo e da pergunta fundamental: como podemos seguir vivendo, quando se sabe que a vida não tem sentidos?” (DRAKE, 2019, p. 157). Sem dúvidas isso fica compreendido em Way to Blue, canção que explora uma busca ideal, inalcançável e aliciante – característica da poesia simbolista francesa, na qual Nick tinha familiaridade.

Pela gravadora Island Record, Five Leaves Left é lançado em 1969 dentro de um cenário musical pós-segunda guerra, dominado por aquilo que Terry Eagleton caracterizou de “fissura interna” dos sujeitos. Tópica que se transcreveu em um notável sentimento de ruptura por parte de algumas bandas dos anos de 1970. Segundo Eagleton, argumentando sobre a arte no pós-guerra, “os trapos de autenticidade que se podem preservar depois de Auschwitz consistem em manter-se teimosamente segurando os chifres de um dilema impossível”, em que os sujeitos ponderam-se entre um distanciamento da realidade com um apurado senso crítico das novas formas de vida social e política (EAGLETON, 1993, p. 259).

A música de Drake não negava a realidade do seu tempo, mas, por outro lado, se alinhou ao problema do distanciamento do mundo e centrou-se em narrativas de sujeitos abandonados – tema recorrente de suas canções. Em Leaving Me Behind, poema escrito em 1968, ele enfatiza: “Para alguns, há um futuro para encontrar/ Mas eu acho que eles estão me deixando para trás” (DRAKE, 2019, p. 131). Já em Parasite, canção de 1972 com forte apelo niilista, ousa exclamar: “E olhe direito e você poderá me ver no chão/Pois sou o parasita desta cidade/ e olhe direito e você poderá me ver dentre a poeira”.

Houve elogios? Alguma sólida admiração sobre o LP? Não! Seu primeiro disco não rendeu “meia dúzia” de vendas pela Inglaterra. Mesmo hoje, Joe Boyd, seu produtor, não tem sólidas respostas para tal fato. Nick se tornava a velha tópica do poeta esquecido. Um William Blake do seu tempo. Criador de obras enigmáticas e rejeitadas, mesmo pelos seus pares. Por outro lado, o oculto e recôndito disco nasceu quase como descreveu Rimbaud em Alquimia do Verbo: “Escrevia os silêncios, as noites; anotava o inexprimível. Fixava as vertigens” (RIMBAUD, 2005).

Hoje, após 50 anos, nos vemos com profundas dúvidas sobre como recolocar Nick Drake no seu tempo. Simples palavras parecem não dar conta das músicas do tímido garoto de quase dois metros de altura, que aos 26 anos morreu vítima da depressão. Reservado e de personalidade introvertida, realizou poucos concertos.  Em ambientes agitados, onde as pessoas falavam alto, copos se quebravam e cadeiras se arrastavam, não permitiam que ele se sentisse à vontade. Segundo conta algum de seus amigos de Cambridge, Nick abaixava a cabeça, realizava sua canção e saia de cena: “Ninguém parecia nota-lo”. Robert Kirby – quem orquestrou parte das suas músicas – dizia que ele era um “romântico perdido”, que estaria bem se vivesse nas Academias musicais do século XVII. Não é difícil imaginar as canções de Drake com as de um Henry Purcell, por exemplo. Talvez, ironicamente, isso fica claro em um dos poemas de Nick, I was made to Love Magic:

 

Eu nasci para usar meus olhos

Sonhar com o sol e os céus

Sair flutuando numa música que dura a vida inteira

Na névoa onde a melodia voa

Eu fui feito para amar a magia (DRAKE, 2019, p. 143).

 

Algo faz com que as músicas de Nick Drake não se apaguem das superlotadas Playlists modernas. A grandiosidade de suas doces palavras o fixa no chão. Chegam até nos em ventos misteriosos, de tempos que não mais nos pertence. Escorregadias, suas músicas não são explicáveis; mas por um momento, podemos deleitar sobre o sofá em algum sábado do mês – cansados da rotina – e nos permitir ouvir Saturday Sun, onde o toque do piano clássico é guiado pela sua voz doce. É ouvir o que um garoto de tempos antigos tem a nos dizer. Mesmo depois de 50 anos, Five Leaves Left nos permite fugir e dissolver-se das insanidades cotidianas. Esquecer-se dos dias em que tudo parece dar errado. Por mais uma vez a arte nos vez sobreviver.

 

 

 


REFERÊNCIAS

DRAKE, Gabrielle (org.). Nick Drake: Recuerdos de um instante. Buenos Aires: Malpaso, 2019.

EAGLETON, Terry. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

RIMBAUD, Arthur. Rimbaud: Complete Works, Selected Letters, a Bilingual Edition. Chicago: University of Chicago Press, 2005.

 

 

 


NOTAS

[1] Nick não chegou a completar o curso de língua inglesa na universidade. Largou em 1969, após se assumir como músico profissional. Em uma carta de 12 de novembro de 1967, Nick escreve: “Minhas opiniões sobre Cambridge parecem flutuar continuamente entre o bom e o mau, embora ainda sem enlouquecer-me especialmente com o tipo de gente que vem até aqui. Creem que vão encontrar um monte de pessoas inteligentes e ilustradas, mas não tarda em descobrir que o estudante médio é em realidade mais sem graça” (DRAKE, 2019, p.108).

 

 

 


Créditos nas imagem: Nick Drake (Foto: Island Records).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Luis Filipe Maiolini

Graduado em Bacharel-licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto na área de História (2018). Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História pela mesma Universidade. Coordenador da Oficina de Paleografia da UFOP desde 2016. Tem experiência na área de História e prática paleográfica, especializando-se em História da Ciência e Medicina no século XVIII e XIX. Tem interesse nas áreas de História Política e Filosofia da Ciência.

1 comment

  1. Marcela 13 agosto, 2020 at 09:27 Responder

    Desde que descobri a existência de Nick Drake, nunca mais fui a mesma pessoa.
    Suas músicas são obras- primas, obras de arte, não consigo explicar em palavras o quanto a música dele me tocou.
    toda vez que escuto suas canções é como se eu pudesse manter ele vivo hoje em 2020. sempre,mas sempre que posso indico e falo em seu nome para que a sua obra seja ainda mais apreciada. mudou a minha forma de ver as coisas depois que o “conheci”.
    Viva Nick Drake .Que tanto me emociona e não importa quantas vezes eu tenha ouvido suas músicas.
    Irei ouvi-las até o fim da vida.

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