Devo dizer, agora de início, que este é o meu primeiro esforço para alcançar ouvidos civilizados e, por isso, perdoem-me os possíveis defeitos comunicativos. De antemão, também já esclareço que não sou eu quem escrevo. Queria eu ter mãos para rabiscar o papel! Como não as tenho, resolvi trabalhar na forma dos espíritos, que pelas mãos do médium escrevem cartas aos vivos. Porém, como ainda não morri e nem mesmo poderia ser eu um espírito, fiz do escritor o meu mensageiro e desta crônica um bilhete, que colocada dentro de uma garrafa foi lançada ao mar da insciência, na esperança de que alguém possa encontrá-la.
Eis minha breve história:
Sou uma dessas poucas árvores idosas que, por alguma sorte, sobreviveu ao progresso. Chamam-me de Curi, pinheiro, araucária etc. e, minha espécie, comum ao Paraná, num ato anárquico, transcendeu o consenso geográfico, fazendo das demarcações suas travessias e dos outros lugares, também sua morada.
Sempre tive uma boa relação com o restante da natureza, abrigando entre meus galhos os ninhos dos pássaros; dando alimento aos bugios, às cutias, aos indígenas. E eles, agradecidos, faziam questão de retribuir. Dentre os pássaros, construí uma ótima relação com as gralhas, que agradecidas se propuseram, na companhia das cutias, a espalhar minhas sementes pela floresta. Já os indígenas, não só plantavam as sementes como faziam todo o manejo florestal, limpando a minha volta e me alimentando com adubo da floresta. E os bugios, que fizeram dos meus galhos um caminho para a selva, e dos meus pinhões sua alimentação diária, retribuíam com belos espetáculos, fazendo acrobacias inimagináveis sobre meus galhos.
Fui plantada por um indiozinho, que regou-me, adubou-me e me deu um nome: Curi. Ele brincou sobre meu galhos, comeu dos meu frutos, dormiu sob a minha sombra e, num mórbido crepúsculo, quando um som diferente, seguido de fumaça, ecoou pela floresta, retirou-se da vida diante de mim. Naquela noite o céu desabou em águas. Os pingos de chuva, como lágrimas, escorreram pelos meus galhos, desceram até aquele corpinho sem vida, lavando-o e levando seu sangue para o íntimo das minhas raízes. Recebi-o! E, da mesma forma que um dia fui plantado, plantei-o também em mim, fazendo da minha madeira seu mausoléu.
Dali em diante, o clima sepulcral se tornou cotidiano: presenciei o morticínio dos animais; testemunhei a derrubada da floresta; assisti a escravização e a morte indígena e vi a sua substituição pelos africanos, que logo se tornaram meus amigos na alegria e na dor. Alegria?! Era quando se pegavam minhas grimpa-sapés, começavam uma fogueira e no clarão das labaredas, juntavam-se em círculo e ali tocavam tambores, dançavam e cantavam com júbilo. Dor?! Era quando o canto alegre dava lugar a triste ladainha, as danças eram substituídas pelas contorções da tortura, os tambores eram trocados pelo estalar do chicote… muitos deles morreram: guardei-os todos, tornando-me sepulcro dos martirizados.
Assim, o progresso humano atropelou a natureza, por vezes a própria humanidade. Mas eu sobrevivi! Testemunhei tantas coisas mais, que só uma epopeia daria conta: fui ponto de encosto dos tropeiros, fiz sombra e companhia para João de Maria, acolhi a Coluna Prestes e os alimentei…
… e quantas mais coisas ainda verei?! Hoje, o que vejo é uma casinha humilde defronte, e um homenzinho magro, que na contramão ao mundo civilizado, passa o dia plantando árvores no chão, poesias no papel e utopias na cabeça dos homens.
Créditos na imagem: Piet Mondrian – Study for Blue Apple Tree Series (1908)
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Jeferson do Nascimento Machado
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