Humano-Natureza

Antes de começar este ensaio, é importante ressaltar que o presente texto tem por objetivo principal lidar com a conceitualização de não-humano e algumas de suas complexidades com referências orais e escritas acerca do tema. Neste movimento, o intuito mais importante é aproximar aprendizados sobre o ecossistema, onde esses ensinamentos perpassam diretamente no núcleo das experiências indígenas.

Vale ressaltar que a ideia de não-humano para diferentes povos originários deste território que chamamos de Brasil tem em seu centro do saber diferentes significados. Como estes conceitos são vastamente debatidos na antropologia, biologia, etc. ficaremos aqui com a diferenciação dos conceitos humano e não-humano apenas de forma metodológica, isso não quer dizer que os povos aqui citados fazem tal distinção. Todavia, evitaremos cair na visão historiográfica moderna que quando não objetifica ao extremo tais sujeitos de sua própria história, fazem a narrativa do salvador colonizador. Esta armadilha gera um afastamento e, consequentemente, uma invenção radical de povos marginalizados pelo colonialismo ocidental.

Entender os movimentos de corpo e espírito a partir de indígenas, como uma monocultura de saberes, é um dos principais erros de leitura, tanto para uma leitura alfabética hegemônica quanto para uma leitura mais complexa e simbólica. Passando por isso, o povo Kisêdjê, cujo um dos territórios é no alto Xingu, situado no Estado do Mato Grosso, é influenciado por uma cosmologia da audição e de canto muito presente. Desenvolvem práticas de plantio de frutas como pequi, mangaba e outras formas de cuidado da terra, a fim de recuperar os impactos destrutivos causados pelo desmatamento praticado em seus territórios. Em 2015, esse mesmo povo do ouvir e plantar escreveu uma carta para a então chefe de estado Dilma Rousseff, no intuito de alertar as grandes instituições do que estava acontecendo e do que poderia acontecer quando ataca-se os seres não-humanos existentes na natureza. Neste momento a carta foi destinada contra a aprovação da PEC 215,[1]

os brancos estão provocando os espíritos da natureza, estão destruindo todas as florestas e natureza. E os espíritos não estão gostando disso, e já começaram a se vingar. Nós indígenas sabemos disso há muito tempo, mas só agora os cientistas de vocês estão descobrindo essa verdade, chamando de mudanças.climáticas (AIK, Carta para Dilma Rousseff , 2015).

 

Nossa estrutura atual da ecologia necessita de uma reformulação filosófica que se distancie da visão reducionista dos discursos atuais. A ecologia e a história se enfraquecem ao colocar o homem no centro das relações, ao hierarquizar os seres, na dualidade que separa o homem da natureza e na remoção ideológica do espírito e da divindade de cada ser natural, ou seja, a radical diminuição de uma compossibilidade. Se faz necessário uma abordagem da ecologia em uma estrutura a qual se permita a aproximação do humano com outros seres e dessas outras vidas ao centro de seu protagonismo. Uma das maiores problemáticas atuais para nossa sobrevivência e permanência nesta terra de forma diversificada, é este atrito e suas consequências entre humanos e não-humanos. A dificuldade de se conviver com o diferente, principalmente ao corpo estranho que não seja o humano, provoca uma comunicação superficial com o outro gerando impactos extremamente danosos ao planeta. Para isso, propomos o saber oriundo de povos e tradições dos que aqui habitavam antes da invasão nas Américas, buscando uma ecosofia[2]. Estas movimentações será nossa estrela guia, o astro intelectual deste pequeno e humilde ensaio, na busca de fomentar o fortalecimento dessa espinhosa discussão.

Isabelle Stengers, filósofa da ciência, em No tempo das catástrofes (2004), problematiza o conceito de progresso desde a modernidade até os dias atuais. Stengers propõe uma radical mudança nas ciências naturais e humanas, ao mostrar a correlação do capitalismo e consequentemente a destruição de paisagens, com o progresso científico, tecnológico maquinário e suas ramificações. A partir disso a filósofa nos chama a atenção para um viver de aproximação com as experiências da vida e não uma existência buscando sempre o avanço, ou seja, uma renúncia do modo de vida ansioso, distanciando-se do corpo fast food, do corpo capitalista. A busca então se dá na tentativa de uma reaproximação do momento histórico em que éramos menos ansiosos, quando cozinhávamos por mais tempo os alimentos e o que poderiam ser as experiências da vida como um todo, seja na arte ou no cotidiano.

Já que é preciso potencializar outras formas de se estar no mundo, será que é possível fazer tal dança, com os passos do capitalismo? A ideia do aproximar para Stengers não é a busca da forma nostálgica do passado, como se fosse possível repetir exatamente o que povos, culturas e seres ao longo de séculos nos ensinaram para uma convivência minimamente harmônica com outras vidas, mas sim tentativas de continuar buscando o que Ailton Krenak vem a chamar de “A vida é selvagem” (2020). Nesta obra, assim como Stengers, Krenak propõe a entender que o ser humano é a própria natureza e não algo separado, principalmente os povos da floresta, os indígenas. Nessa conjugação, não existe o verbo estar na floresta e sim o ser a floresta. Nossa biosfera é sagrada, não temos outro lugar para morar. Como as plantas que transformam a luz solar em energia orgânica junto às bactérias que produzem o ar rico em oxigênio que respiramos, os seres humanos também precisam ser fonte de vida para diversos outros seres vivos.

É preciso focar nessa formação do corpo humano enquanto uma comunidade de outras vidas de forma sistêmica, não só dentro dos laboratórios tradicionais, mas na prática do que é a vida, do que pode vir a ser e do que é. Um dos desafios é ter consciência de que dentro da vida existe um potencial de maravilhamento pela experiência do viver. Para tal ato criativo Stengers e Krenak nos estimulam a aceitar as diferenças e rasgarmos o laço com progresso de forma molecular e rizomática..

Diversos povos indígenas exercem uma relação com o viver diferente do modo de vida ocidental capitalista, cujo contato com a natureza acontece em um movimento de conversação. Não se conversa apenas com a boca, não se escuta apenas com os ouvidos ou se enxerga apenas com os olhos, são outras maneiras de se relacionar com o ecossistema. Um saber ramificado de quem está falando, reconhecendo outros sujeitos históricos da biosfera. Admitir, respeitar as diferenças e semelhanças com outros seres é como uma relação de amizade gostosa de muitos anos, quando o espírito também fala e a intimidade é entendida independente se por comunicações complexas ou não, um exercício natural de escuta. Porém, se torna mais difícil participar desta intimidade quando não se reconhece o outro, sem saber o que é esse outro corpo, quando não se respeita os limites dessa outra vida. A diferença dessa comparação é que a natureza enquanto esse emaranhado de seres, nos dá tudo que precisamos, vestimentas, alimentos, prazeres etc. Podemos dizer que exercer essa prática e ter esta compreensão espacial acende um sentimento invisível íntimo e orgânico, como o cheiro gostoso causado pela conexão da água de chuva com o solo, liberando bactérias que provocam o maravilhoso aroma de terra molhada.

Neste samba-reggae[3] com a natureza, os caminhos se encontram com muitas figuras, dentre elas sujeitos não humanos, como já dito antes. Vale então destacar o povo Apurinã, situado no norte do Acre. Dotados de misticidade e ensinamentos para com a natureza e a natureza para com seu povo, ou seja, são a personificação de que dentro de um mesmo corpo existem outros corpos. E um de seus principais detentores do saber ancestral é o xamã Katãwyry Apurinã, ele nos conta um relato de experiência potencializadora do encontro de seres humanos com seres não humanos:

Meu bisavô Maruky, sentava no terreiro da aldeia à noite e chamava seus netos para mostrar e falar da importância das estrelas para o mundo e também para os Apurinã, ele pedia que nós focássemos nosso olhar numa estrela que estava mais distante das outras no céu, ali todos seguiam suas orientações observando bem a estrela indicada, e por meio do katukano, meu bisavô puxava a estrela e botava em sua mão, o brilho dela era tão ofuscante que não conseguíamos olhar fixamente para ela. Minutos depois, ele soprava devolvendo-a para o seu lugar novamente (APURINÃ, 2014, p. 07).

 

No relato acima podemos observar um ecossistema de afeto relacionando família. Ancestralidade (bisavô), céu, seres que nele habitam (astros) e crianças, formando um conjunto de arranjo de vidas diferentes, porém conectadas com a experiência do humano-natureza de uma configuração vivificada da experiência. Se partimos do pressuposto que gastar energia e tempo ao ler certo livro é de alguma maneira buscar conhecimento, aquelas crianças que contemplavam o parente encostar a estrela, fizeram um ato simbólico e não fictício de meditação e de conhecimento do espaço. Desta forma, a criança, ao prolongar seu toque a um ser distante, houve sim um desejo de trazer para perto, ser parte daquilo e consequentemente conseguindo entendê-lo de algum jeito, tornando-se empática para com um ser que agora consegue compreender, se deixando ser afetada, aproximando seu olhar ao brilho da estrela, como um macaco que ao observar a casca de uma fruta e a agudeza de uma ponta de pedra, consegue desvendar o mistério da abertura do coco. Esse relato além de servir como uma certa pedagogia ambiental para as crianças, também mostra que a vida está em todo lugar, nem mesmo o céu escapa a vida.

 

Outra realidade existiu, existe e existirá.

Ailton Krenak nos chama a atenção como seus ancestrais já o alertavam sobre a ação predatória humana com o meio ambiente e como o seu povo já possuía tecnologias de perceber as consequências dos ataques:

Não entenderam os alertas que nossos antigos sempre deram, sobre pisar com cuidado na Terra, este imenso jardim da criação, onde tudo está interligado, desde a mais elevada montanha ao menor organismo que medra nos líquens e caules das pequenas ervas do campo. Muito antes dos complexos sistemas de medição e monitoramento dos brancos darem o sinal de perigo, nossos avós já mostravam como nossas caças iam se afastando das aldeias, e muitas de nossas plantas medicinais desapareciam de seus hábitats, como ocorreu na nossa região do Médio Rio Doce, onde vive o povo Krenak. (KRENAK, 2018, p. 21).

 

Quando nos deparamos com o tempo presente, passa-se um momento no capitalismo tardio onde há críticas ao sistema, porém, não basta criticar alinhando-se ao modelo mercadológico de lidar com a natureza. É necessário então, que esta crítica seja feita fora dos moldes do sistema que deseja criticar, ou seja, alinhada ao pensamento da diversidade, da coexistência. Essa problemática consiste em o saber ocidental, dito científico verdadeiro, ambulatorial e distante do interculturalismo, ter mais prestígio dentro de diversas instituições de conhecimento e de poderes políticos, do que em comparação aos saberes tradicionais, como o do avô no parágrafo acima e de Krenak ao evidenciar que seu povo já possuía tecnologias de alertas antes mesmo da ciência hegemônica. Tais ensinamentos não se encaixam no maquinário da ciência predominante.

Para Félix Guattari, a problemática de como lidar com os transtornos ambientais contemporâneos gira em torno do conflito que há entre subjetificação e objetificação,  sobre como a abordagem objetificante torna-se danosa nas esferas da sociedade e usa como exemplo a economia. Guattari informa que, ao pensar a ação humana como objetos econômicos, as ações acabam sendo levadas a uma forma de imanência, no sentido em que não é possível pensar o diferente pois não há mudança na produção intelectual, dessa forma impedindo a ação de uma ruptura. O comportamento social nesse âmbito capitalista sem perspectivas de mudanças, é também responsável pela catástrofe humana e consequentemente ecológica:

Economistas no mundo afirmam que existe uma objetividade dos objetos econômicos, que há uma necessidade, que o fazem porque não podem fazer de outro modo. Porque não há outros esquemas possíveis, não há mutação, não há bifurcação possível. Embora se trate precisamente de reintroduzir um retorno à imanência, um retorno à caosmose. Sim, há um certo funcionamento da economia mundial que conduz à catástrofe espantosa para 80% da população, à uma poluição e à devastação ecológica monstruosa. Mas há outras possibilidades, uma outra economia é possível. (GUATTARI, 1992, p. 16).

 

O pensamento capitalista contemporâneo, é por si só afastado da diversidade ambiental, prejudicando os ensinamentos livres de que o ecossistema e seus seres podem passar. Como aprender com os pássaros se florestas perto de nossas casas estão sendo violentadas pela mineração? Como aprender com as águas se nossas nascentes estão morrendo pelo desmatamento e novamente pela mineração? Como aprender com as estrelas se o excesso de iluminação artificial ofusca o brilho dos astros? Estas perguntas evidenciam mais uma vez o humano e seus impérios predatórios no centro de tudo. Ter uma relação humano-natureza aproximada, abraçada e indistinta é perceber também que enchentes causadas pelas ditas mudanças climáticas que ferem milhares de pessoas e vidas todos os anos, não é somente uma negligência humana, mas uma ação ativa da natureza como se de fato ela atacasse de volta os ataques que ela própria vem sofrendo.

Trazendo as palavras de Davi Kopenawa, para guiar esta reflexão, ele diz: “Esse termo, “mudanças climáticas”, para mim é outra coisa. Eu chamo mesmo de “vingança da Terra”, de “vingança do mundo”.[4]  Com esse aprendizado de Kopenawa não sejamos ingênuos ao ponto de acreditar que toda catástrofe ambiental é causada somente pela ação humana, como se a terra fosse algo inanimado. Isso é mais uma vez colocar o ser humano no protagonismo do planeta.

A importância de reconhecer a natureza como consciente de suas ações é um dos caminhos para interromper a guerra ecológica existente. Desmatar uma floresta com tantos organismos, na sua biodiversidade, em detrimento de uma monocultura do cultivo de soja por exemplo, não pode vir a ser algo banalizado no intelecto popular e nem institucional. Outros contatos com a realidade ambiental existem e é possível sim serem espalhados. Guardiões da floresta (diversos povos indígenas) são guardiões também porque exercem em seu âmago esta relação com o ecossistema, indistinta. Sem essa rizomática comunicação com a biosfera, estamos cavando nossa ausência nesse planeta, e, o pior, perdendo as maravilhosas possibilidades de experiências que a natureza oferece, em troca busca-se cada vez mais experiências plastificadas, artificiais, borrachudas e sem temperos orgânicos cognitivos saudáveis. Se faz justo e necessário sair da ilusão que seres humanos são o centro da terra, o ecossistema é um organismo vivo e interligado.

Continuaremos a fazer congressos nacionais e internacionais sem ocorrer grandes alterações a fim de reverter a guinada da “mudança climática” até quando? As universidades brasileiras não indígenas vão assumir a participação indígena e de suas intelectualidades como principal fonte de conhecimento quando? O modelo de desenvolvimento feito pelos grandes países e corporações precisa mudar e para isso precisamos colocar os povos indígenas como protagonistas desse movimento. Não basta apenas cortar o dente de um lobo para acabar com sua voracidade, da mesma forma é o modelo econômico atual, não basta diminuir a emissão de dióxido de carbono, é preciso mudar toda a cadeia de produção. O saber originário tem que ser urgentemente reconhecido e usado de forma objetiva para uma construção a fim de aliviar os impactos causados na natureza, dando autonomia, acessos financeiros e de formação para esses povos. Dialogar com sujeitos indígenas é entender essas complexidades nesse nível. Qualquer outra ação que não aborda e inclua esses elementos terá sido mera diplomacia.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

APURINÃ, Francisco. O mundo xamânico dos Apurinã: Um desafio de interpretações. Série Antropologia, v. 458, Brasília: DAN/UnB, 2017.

_________________. Um olhar sobre o cosmos a partir da perspectiva indígena e as consequências da fricção entre os humanos e os não humanos. Emblemas, v. 17, n. 01, 2020.

CARTA do povo Kisêdjê em repúdio à PEC 215. Combate Racismo Ambiental. Disponível em: <https://acervo.racismoambiental.net.br/2015/11/02/carta-do-povo-kisedje-em-repudio-a-pec-215/>. 2015.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 21. Ed. Campinas: Papirus, 2011.

KRENAK, Ailton. Um outro nome para mudanças climáticas: “Tudo o que fere a Terra fere aos Filhos da Terra”. In: LIMA, Artema; MENDES, Mel. Mudanças Climáticas e a Percepção Indigena, 2. Ed. Cuiabá: Operação Amazonia Nativa – OPAN, 2018. p. 21-23.

_______________. A vida é Selvagem. Cadernos SELVAGEM. Rio de Janeiro, 2020.

SANTOS, A. dos. FÉLIX GUATTARI: ENTREVISTA PARA TV GREGA (1992). Revista Polis E Psique, 8(2), 7–23. <https://doi.org/10.22456/2238-152X.82198>. 2018.

STENGERS, Isabelle. No Tempo das Catástrofes. comércio Eloisa Araújo. São Paulo: Cosac Naif, 2015.

 

 

 


NOTAS:

[1] Bandeira da bancada ruralista, a PEC 215 prevê a transferência do poder executivo para o legislativo na competência de regularização das terras Indígenas, Quilombolas e Unidades de conservação.

[2] O conceito de ecosofia se deu pelo filósofo francês Félix Guattari, quando propôs a discussão entre filosofia e natureza, evidenciando a existência da comunicação entre sujeitos dentro do ecossistema, ou seja que humanos fazem parte do mesmo biossistema comunicativo que a natureza.

[3] Samba-Reggae é um estilo musical multicultural criado em Salvador-Bahia por Neguinho do samba, um dos fundadores do bloco afro Olodum. O gênero musical tem em sua estrutura influências de África, Jamaica e Brasil. É a conexão entre diversos tipos de instrumentos de diferentes correntes culturais, um ritmo orgânico da vida orquestrado por ancestrais.

[4] Esta fala de Kopenawa foi uma entrevista concedida para a revista do Instituto Humanitas Unisinos (ihu). Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/624204-para-mim-o-termo-mudanca-climatica-significa-vinganca-da-terra-entrevista-com-davi-kopenawa>.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Denilson Baniwa, Aquela gente que se transforma em Catitu, acrílica sobre tela, 2018.

 

 

 

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