Kassandra

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Mariana, 15 de março de 19: Acabei de voltar do ICHS. O Marcelo, meu orientador, marcou várias reuniões com os seus orientandos e a nossa ficou combinada para às 17hs30. Foi bom conversar com ele e retomar minhas atividades aqui em Mariana, até porque ele identificou uma mudança na ênfase da pesquisa sobre o Caracaço depois que eu lhe contei sobre a minha experiência com as testemunhas, as memórias que eu escutei, as vivências que eu tive a partir do encontro com elas, o que pude descobrir sobre aqueles dias de ruptura histórica em meu país há 30 anos… Foi um momento na minha vida recente que me marcou e gerou muitas mudanças… E como eu estou no que eu faço, tanto a minha escrita quanto as minhas preocupações teóricas ficaram perpassadas por aquelas experiências.

Eu falei para o Marcelo que daquele momento em diante meu compromisso de pesquisa com o Caracaço seria maior. Não apenas por minha teimosia na luta contra o apagamento daquele episódio histórico no meu país, mas pelo compromisso com as memórias daqueles atores anônimos e daquelas vítimas que ainda hoje mantém-se invisíveis e enterradas e que, com cada testemunho, reviveram em mim. O Marcelo compreendeu tão bem a minha “angústia existencial”, que me fez uma magnífica proposta para encaminhar a minha qualificação de doutorado. Tendo em vista a mudança, ele pediu para eu escrever pelo menos um parágrafo naquela noite. Eu sorri e respondi para ele:

–Hoje eu não vou escrever esse parágrafo não, Marcelo. Eu marquei com o Fávaro e a Anna Mônica para irmos para casa da Kassandra. É seu aniversário. Neste momento acaba a minha jornada de trabalho! (Risos.) Mas eu prometo começar escrever amanhã cedo, tá bom?

Saí de lá bem animada e, aliás, contente de ter visto a Ana Paula, que ganhou uma vaga de doutorado com bolsa na pós em História aqui na UFOP!

Seria bom ir para o aniversário da Kassandra. Após uma semana de minha chegada em Mariana, eu ainda não tinha muita vontade de sair na rua e me encontrar com o pessoal daqui. Na verdade, nestes dias eu tenho sentido um pouco de receio de sair e não conseguir ficar em sintonia com as pessoas.

Apenas ontem pela noite foi que eu saí para o Jardim, a praça central, para matar saudades do Gabriel e da Dayanne. Sentia muita falta deles e dos meus outrxs amigxs, mas com eles eu me senti muito confortável de bater um papo e drenar esse acúmulo de emoções com as quais cheguei no Brasil. A gente marcou para se encontrar às 20hs. Faltando dez minutinhos para o encontro, eu botei os sapatos, peguei a minha bolsa e saí. Nossa! É agradável caminhar na rua pela noite sozinha. Essa é uma das coisas de Mariana das quais eu sentia uma falta enorme! Nas cidades grandes e agitadas é mais difícil para uma mulher andar pela rua sem medo de ser assediada, mas aqui em Mariana eu fico livre dessas trevas.

Pessoas bebendo e jogando sinuca por trás das janelas, as luzes nos postes, os carros circulando na rua, o Varejão aberto, as pessoas caminhando, a vida no Jardim se assomando depois da Praça da Sé: cores, luzes, pessoas, risos, música! A noite em Mariana tem vida. Na Venezuela de hoje, a vida noturna acaba às 21hs.

No Jardim, o Gabriel e a Dayanne me esperavam lá na frente do negócio dos espetinhos. Dei um abraço bem apertado neles, fomos beber umas cervejas e batemos um papo bem gostoso. É bacana poder compartilhar a cerveja com xs amigxs, né?

A Ana Mônica e o Matheus foram me buscar na frente do “esnuque” para irmos à festa do aniversário da Kassandra. Nessa hora estava chovendo, então eu tive que trocar as minhas sandálias por umas botas e pegar o guarda-chuva para não me molhar no trajeto. Eu não conhecia a Kassandra e também não conhecia a galera que estava lá, por isso eu me senti um pouco estranha no começo. Mas aí rapidinho eu me adaptei e bati papo com umas meninas que estavam cozinhando uns pratos muito gostosos. Falamos da gastronomia venezuelana, das técnicas latino-americanas para o processamento da farinha de milho e, finalmente, também da situação no meu país.

Enquanto conversava foi inevitável me lembrar do meu cotidiano nos últimos meses na Venezuela e, foi inevitável, aliás, me sentir um pouco culpada por estar naquela festa. Havia de tudo! Churrasco, cogumelos, patés, cuscuz marroquino, um prato angolano que a Ana Mônica preparou, vinho, cerveja, enfim… Lembrei-me da despedida com os meus amigos na véspera da minha volta para o Brasil. Lá tínhamos muito pouca  bebida e comida para compartilhar, mas tínhamos o mais importante: a vontade de nos acompanhar, fazer uma homenagem a nossa amizade e nos presentear com um momento para estarmos juntos.

Eu não conseguia deixar de comparar os cenários e me sentir um pouco magoada. No entanto, e para além do que sobrava numa e faltava na outra, as duas reuniões compartilhavam uma coisa: ambas foram momentos de encontro e homenagem entre amigos, momentos para oferecer o que se tem e desfrutá-lo nesse ritual coletivo. Então, a diferença entre uma e outra foi só conjuntural, não de natureza nem de espírito. Fiquei tranquila e fui dançar com a galera.

Foi bom voltar para Mariana!

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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