Vez ou outra tenho vontade de sair gritando
Gritando o que eu quero fazer, quando e sem por quê
Tenho vontade de sair gritando que eu não sou obrigada a ouvir de novo esta piada sobre a escravidão
Que escravidão não tem e nunca teve graça
Que rir de assassinato e de tortura é de um sadismo absurdo
Tenho vontade de gritar: “racista”!
Tenho vontade de sair gritando que este corpo é meu
Gritando que não podem passar mais a mão, a menos que eu permita
Gritando que não podem mais violentar
Tenho vontade de gritar: “estuprador”!
Tenho vontade de sair gritando e dizendo que esta voz me pertence
que é alta e que não me engasga mais
Tenho vontade de gritar com esta mesma voz que tantas vezes foi engolida pelo choro
Tenho vontade de gritar: “silenciador”!
Tenho vontade de sair gritando que me sinto nua
Tenho vontade de dizer que mesmo vestida dos pés à cabeça ainda me sinto nua
quando me vejo na boca e me escuto no olhar de um fingidor
E que fingir que ainda não entendeu é de uma falta de caráter sem tamanho
Tenho vontade de gritar: “hipócrita”!
Vez ou outra tenho vontade de sair gritando
Sair chorando alto
Sair enfiando a mão
Arrancando o nó
Ou quem sabe, apenas sair deste corpo no qual estou
Sair deste corpo de preta e de mulher
Sair sem o compromisso e hora marcada pra voltar
Sair, e não me preocupar mais com estes malditos fantasmas da escravidão
Com estas mulheres estupradas e abusadas que vivem aqui
Sair, sem ter que pedir desculpas, sem ter que me culpar pelo o que não sou
Sem me desculpar pelo que não consegui fazer
Sair, sem me preocupar com a roupa que vou usar
Sair, e não usar roupa alguma
já que nua sempre estou
Sair desse corpo sem pensar em como voltar em segurança
Quero temer, uma só vez, o assaltante e não o estuprador
Quero gritar, uma só vez, sem medo de ser calada
Mas eu sei que não vou!
Sei que não importa o quanto eu leia
Não importa o quanto eu saiba
Não importa o quanto os números cresçam sempre e cada vez mais
Eu sei que gritar eu não vou!
Eu não consigo gritar!
Sei que vou apenas escrever uma poesia
Pensar em um título pra tese
E dormir uma vez mais
Torcendo pra acordar ainda viva
Neste mesmo corpo de mulher
Nesta mesma carcaça de preta
Com essa mesma voz mansa
E com estes mesmos fantasmas amanhã
Créditos na imagem: Divulgação. Foto: Júlio César de Gouvêa
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