Giorgio Agamben escreve o texto “O que é o contemporâneo?” a partir de uma aula inaugural ministrada no curso de Filosofia Teorética na Faculdade de Arte e Design de Veneza. No curso propõe o questionamento “De quem e do que somos contemporâneos? O que significa ser contemporâneo?” e surpreende com a profundidade ao desenvolvê-lo. Através do manejo de metáfora e poesia indica a capacidade de cada um ser contemporâneo, bem como as condições para o feito e as possibilidades de apreensão da contemporaneidade.
Logo no início do capítulo traz Nietzsche através da afirmação de Roland Barthes que “o contemporâneo é intempestivo” (AGAMBEN, 2009, p.58). Ele o é, pois a própria condição da consideração em sua natureza é intempestiva. Ao buscar os defeitos de sua cultura histórica, ao procurar e criticar aquilo que parece nato com um gesto de desconexão, a consciência é atinada para o estado da contemporaneidade, para nós mesmos.
Ser contemporâneo significa suspender o topos temporal e tentar compreender o que está fora e dentro de si. Para Agamben a contemporaneidade é uma relação singular com o tempo, nela consta um movimento de aproximação e afastamento, sendo que os que estão completamente imersos no seu próprio tempo não podem ser considerados contemporâneos, por que não conseguem vê-lo. Em outras palavras, pessoas que estão plenamente aderidas a sua época e não realizam uma interpretação crítica, não produzem um estranhamento do que é visto no cotidiano da política e da vida social não podem ser consideradas contemporâneas, isso por que o contemporâneo é justamente o posicionamento crítico que aponta as feridas de uma época e submetem-se a suturá-las.
Para elucidar a questão faz referência a Osip Mandel’štam, poeta do modernismo russo. No poema “O Século” é apresentada a relação entre o poeta e seu tempo. Segue um trecho:
“Meu século, minha fera, quem poderá
Olhar-te dentro dos olhos
E soldar com o seu sangue
As vértebras de dois séculos?” (AGAMBEN, 2009, p. 60)
A fera, alusão de uma época, aproxima em direção ao sujeito e o engalfinha por completo. Sendo necessário coragem para identificar a existência de uma cisão temporal, tarefa destinada ao poeta, que ao mesmo tempo que expõe a fratura no dorso (temporalidade), entre os dois séculos, também é sua sutura.
Fitar nos olhos do tempo fera também é manter fixo o olhar sobre o seu tempo para além das glórias, do que há de melhor, de suas luzes. É enxergar o escuro produzido pela luz, sendo que para aqueles que experimentam a contemporaneidade, todos os tempos são obscuros. Enxergar a escuridão como pontua Agamben, é uma atividade ativa que envolve neutralizar a luz e ver as trevas. Assim para podermos identificar o que há de mais desprezível ou os perigos das novidades e milagres que surgem na atualidade, é necessário o esforço e determinação, pois o que há de pior não se apresenta gratuitamente, muitas vezes é ofuscado e encoberto pelo que há de mais sedutor.
Cindir, dissociar, separar, enxergar, se afastar e aproximar são palavras chaves e ações necessárias para ir além de sua época e do automatismo. Para sermos contemporâneos é necessário percorrer o tempo e nele apreender aquilo que é não-vivido no vivido. Uma viagem atemporal guiada por kairós voando em ventos dessincronizados, caminhando por um tempo não linear. Kairós palavra apresentada por Agamben tem origem grega e representa o tempo, mas, diferente do titã Chronos que a passos lentos e largos caminha por um tempo sequencial, quantitativo, cronológico e linear, Kairós surpreende com um momento indeterminado, especial, qualitativo, um tempo divino e não linear.
Importante destacar que esse movimento não deve ser confundido com nostalgia ou com devaneios utópicos e saudosistas. O homem contemporâneo para Agamben sabe o seu lugar no tempo e reconhece a necessidade de nele residir. O exercício de dissociação em questão trata-se de enxergar um ponto em especial no tempo e retornar, um retorno que sobretudo não “cessa de existir”, porque uma origem procurada no passado não pode ser alcançada. Portanto não é nostalgia, mas “um caminhar que não é apenas uma marcha, mas um passo suspenso” (AGAMBEN, 2009, p.19), é olhar para trás e ver o não-vivido no vivido.
Enxergar o não-vivido e dissociar o tempo cronológico, significa em parte perceber em eventos e fenômenos da atualidade, elementos do passado. É lançar o olhar para a organização política, pensar estruturas práticas sociais do trabalho, dispositivos jurídicos e midiáticos, para assim descamar suas contradições em um exercício de arqueologia. É perceber diferentes dimensões conceituais temporais presentes no discurso, como por exemplos as diferenças entre os ideais de liberdade da segunda metade do século XVIII com a ideia de liberdade neoliberal que coloca em risco a democracia, e apresenta em sua forma renovada uma liberdade que aumenta as fronteiras da sociedade civil e que dita aquilo que é, e não é humano.
Assim a contemporaneidade referida é uma articulação na relação do indivíduo com o tempo, e o contemporâneo é por natureza um sujeito intempestivo, inconformado com aquilo que há de doentio em sua época. A pessoa contemporânea busca promover práticas de justiça e reparação, não confunde a ânsia do indivíduo singular com o histórico coletivo. Vai contra setores conservadores que estrangulados por um passado ilusório lutam por sua hegemonia ameaçada. A insatisfação exposta é o impulso que desencadeia a transformação, que tira o ser humano do estado de adormecimento e aceitação e dá um uso prático ao passado. Pode-se dizer que a contemporaneidade não é um estatuto fixo no tempo, não se trata de uma ação ou um estado ordinário, vai além, a contemporaneidade é e reside no vácuo entre o inatual e o atual.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 17-25, p. 55-73.
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Muito bem escrito, Vitor. Obrigada pela sua disponibilidade em ser contemporâneo.
É extremamente bela a sua forma de expressão e é muito claro para mim aquilo que eu li.
Cumprimentos,
Vera Santana