Dificilmente se escuta nos cursos de história a palavra “mercado”. Quando proferida, a palavra remete a empreendedorismo, e, como consequência naturalizada nos corredores das humanas, a precarização do trabalho. Comumente, em outras graduações, a palavra é muito mais habitual. Discussões sobre quais áreas estão em alta, qual a pretensão salarial, como é possível se destacar, qual diferencial oferecer em seu produto ou serviço são questões levantadas na maioria dos cursos de graduação. Por que na graduação em história é diferente?

Desde seu início no século XIX, a história propôs-se a formar um discurso científico sobre o passado. Fortemente vinculada aos Estados-nação europeus, a história deles se originou enquanto imagem nacional. Certamente, muitas coisas mudaram desde então, mas uma questão fundamental não: a forte ligação entre o fazer história e o Estado, e isso também economicamente. Por conta das regras das agências de fomento, a principal renda dos pesquisadores é apenas suas bolsas de pesquisas, infelizmente cada vez mais raras e escassas. Por outro lado, além do campo da pesquisa acadêmica, a imensa maioria dos historiadores atua na educação básica, principalmente na educação pública. Espremidos entre essas duas categorias do fazer histórico, os historiadores se veem confrontados com novas justificativas para suas atuações, como diversos autores tem tentado mostrar.

E algo é fundamental de ser ressaltado: o mercado de trabalho dos historiadores, em sua imensa maioria, é a docência no ensino básico. Para a outra parcela, a academia é não apenas o espaço de formação intelectual a nível superior: é também seu ponto de chegada futura. Nós nos formamos na academia para continuarmos na academia, com professores que possuem como experiência a pesquisa histórica e o fazer histórico-científico. Não seria demais afirmar, nesse sentido, que nossa experiência profissional é pautada sobretudo pela pesquisa acadêmica, e também pelo ensino básico, principalmente a partir dos recentes mestrados profissionais. E não falo isso em tom de demérito nenhum. Muito pelo contrário. Tenho absoluta certeza da qualidade da historiografia brasileira e de nossa pesquisa, da enorme dedicação que uma pesquisa nos emana, o grande engajamento, principalmente o da história pública, em produzir novas circulações do conhecimento histórico. O que gostaria de salientar é a singularidade do ensino superior em história em relação a outros cursos.

Um professor de ensino superior em administração, na maioria dos casos, trilhou diversos caminhos até se tornar professor universitário. Um professor de engenharia, na maioria dos casos, trabalhou por muitos anos enquanto engenheiro, se dedicando posteriormente ao ensino universitário. Poderíamos falar o mesmo para inúmeros cursos: professor de odontologia: dentista; professor de direito: advogado; professor de jornalismo: jornalista. A diferença do campo histórico, aqui, é que somos pautados principalmente pela trajetória acadêmica, pois a academia é muitas vezes nosso mercado de trabalho, assim como nossa possibilidade de ascensão profissional. Isso faz com que nosso campo de atuação seja extremamente limitado. Apesar das poucas iniciativas em arquivos e locais de memória, a maioria de nós se dedica ao ensino básico, com baixos salários e concursos municipais e estaduais muito concorridos. É muito triste perceber a precária realidade da docência brasileira, principalmente no Rio Grande do Sul, que tem o menor piso salarial da categoria em nível nacional. Muito embora devamos lutar por mais bolsas de pesquisa, mais editais de pesquisa, maior valorização do conhecimento científico, nós também devemos lutar por melhores condições de trabalho, e isso significa também ampliar nosso leque de atuação profissional.

Tenho plena consciência da absoluta genialidade de muitos colegas que tive ao longo da graduação e do mestrado, e fico muito triste em ver muitos deles não conseguindo emprego, ou, ainda, muitos frustrados com o mercado profissional para nossa área. Com um cenário de cortes imensos das agências de fomento, penso que não podemos limitar nossos futuros profissionais apenas à CAPES ou ao CNPq, ou a concursos públicos que giram em torno de dois mil reais mensais. Aliás, isso é inclusive um problema, pois não é raro que nossas duas principais áreas de atuação se confrontem. A maioria das escolas privadas não contratam professores com doutorado, pois têm de pagar salários mais altos, o que não compensa. Nos vemos espremidos por entre nossos dois principais mercados, sem ter para onde ir com a história, muitas vezes trabalhando em empregos secundários que não fazem jus à nossa formação. Com o tempo, descobrimos que as pessoas não querem apenas amar seus empregos, mas sim serem recompensadas dignamente em relação às suas atuações, e isso atualmente os historiadores, sofrendo crescentes desprestígios pela parcela reacionária de nossa sociedade, não são.

Recentemente, descobri que o significado psíquico da palavra “desânimo” é o resultado de um alto esforço e um baixo resultado. E acredito que isso se aplica perfeitamente à realidade dos historiadores atualmente no país. Nós naturalizamos o desânimo em relação aos baixos salários, o que nos faz lidar com inúmeras frustrações, principalmente pelo fato da nossa profissão não possuir um respaldo de mercado que proporcione uma autonomia profissional.

Enquanto nos confrontamos com inúmeras concorrências internas de bolsas escassas, o que acaba gerando um clima de competitividade nos corpos discentes, nós afastamos a discussão a respeito do mercado. Acredito que esse, na verdade, é também um dos sintomas de nossa própria precarização, reproduzido discursivamente por nós mesmos. Retomando a questão formulada por Pedro Telles da Silveira (2020, p. 6), como “escapar desses mesmos impasses e restituir o espaço de uma autonomia e felicidade possíveis para historiadoras e historiadores confrontados com a necessidade de pagar suas contas e o desejo de mobilizar seu saber”?

Infelizmente, quando tocamos em questões tangentes ao mercado e à iniciativa privada, pensamos apenas em lucro, expropriação da mais-valia e exploração. Mas isso é totalizar uma experiência diversa, que nem sempre faz jus a essa leitura. Precisamos abandonar a romantização do pessimismo e do mal-estar historiográfico e pensar em soluções propositivas para nossos problemas profissionais. E, para isso, é necessário não mais opor história e mercado, mercado e ética, cidadania e iniciativa privada. É uma questão não apenas científica, mas principalmente econômica. Infelizmente muitos historiadores se veem frustrados profissionalmente com a incapacidade de transformar seu conhecimento em trabalho lucrativo. Acredito que a historiografia alcançou sua falta de reconhecimento também pelo seu esgotamento enquanto categoria discursiva que deve ser, necessariamente, pública, pois muitos acreditam que uma “história privada” seria antiética e imoral.

Como profissionais especialistas no tempo, acredito que fazer uma leitura do tempo profissional da história atualmente é uma tarefa, se não desgostosa, ao menos difícil, pois precária e muitas vezes triste. Falar na profissionalização dos historiadores e historiadoras, nossa mais recente conquista, também significa nos confrontar com qual é o profissional formado pelos cursos de história. Por que a “iniciativa privada”, o “empreendedorismo” e a “inovação” são tão execrados em nossos meios? Penso que não propor alternativas em relação a essas questões é, mais uma vez, continuar na imobilidade e acreditar que história se faz apenas com pesquisa. Mas seria a história apenas isso?

A alta carga de leitura, o amplo conhecimento da realidade social passada, uma série de debates teóricos a respeito da narrativa histórica são grandes atributos que nós temos, e que infelizmente muitas vezes não são aproveitados por nós profissionalmente, pois, à parte a educação básica, raramente possuímos outro mercado. Recentemente, em um curso de roteiro audiovisual que estou realizando, escuto estupefato à última frase de Jorge Furtado na live de lançamento do curso, ofertado pela plataforma B_arco. Após responder questões do público, esse grande roteirista brasileiro se despediu, dizendo: “é isso então, pessoal. Se cuidem. E vamos contar histórias”.

“Contar histórias?”, pensei. “Bem, isso nós podemos fazer!”. De maneira semelhante, Marcelo Téo se questionou sobre essa mesma questão, em texto recente, criticando a maneira pela qual os historiadores enxergam conteúdos do passado produzidos por outros profissionais, permanecendo “uma oposição entre o conhecimento acadêmico e o conteúdo, supostamente prostituído pela ‘preocupação mundana’ com a circulação de grande porte” (TÉO, 2018, p. 368). Por que, então, nós, historiadores, não nos empenhamos em produzir materiais de amplo alcance, propondo narrativas audiovisuais que chamem a atenção do público? Um pouco de marketing aqui seria fundamental, e acredito que a história pública com certeza terá de lidar com essas problemáticas. Enquanto apenas criticamos Leandro Karnal, deixamos de aprender questões fundamentais com ele. Apesar das discordâncias, temos de reconhecer que Karnal, enquanto historiador, soube atuar em diversas plataformas online que lhe deram uma enorme projeção nacional, lhe rendendo uma grande presença na mídia e uma posição de destaque enquanto comentarista.

E digo isso pois acredito que a história, assim como as ciências humanas, não devem ser desassociadas do mercado. Não podemos mais assumir apenas a postura de “crítica vigilante do conteúdo produzido pelo e para o mercado” (TÉO, 2018, p. 369-370), além de um discurso básico e ultrapassado. Enquanto isso, continuamos fechados em nossa bolha historiográfica, sendo precarizados, e com inserções profissionais muitíssimo limitadas. Vejo com tristeza muitos colegas, plenamente qualificados, com ótimas dedicações à pós-graduação, se verem frustrados em seus destinos quando terminarem o mestrado, muitos abandonando o meio histórico por sua falta de estabilidade financeira. E estou falando de profissionais com um conhecimento quase enciclopédico, com saberes historiográficos avançados, que realizaram boas graduações e pós-graduações.

Retornando à questão inicialmente levantada, acredito que, muito embora eu considere trágico ter de afirmar essa obviedade, o mercado não pode ser nosso inimigo. Nós temos plena capacidade de propor narrativas baseadas na alteridade, consultorias históricas, produções audiovisuais sobre o passado, comentaristas na mídia e muitas outras questões ainda a ser pensadas. Recentemente, a história pública trouxe à tona algumas dessas questões, como a demanda pela nossa profissionalização e nossa maior inserção no mercado de trabalho. É mister que proponhamos essas discussões durante a graduação dos alunos para conquistarmos posições dignas e boas inserções profissionais, sob a pena de, mais uma vez, afastarmos a possibilidade de propormos respostas criativas em meio ao próprio tempo em que vivemos. A disciplina histórica não pode continuar sendo economicamente anacrônica em nosso próprio tempo profissional.

 

 

 


Referências

SILVEIRA, Pedro Telles da. O historiador com CNPJ: depressão, mercado de trabalho e história pública. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 30, e0204, maio/ago. 2020, p. 1-28.

TÉO, Marcelo. Desequilíbrio de histórias parte I: um problema do campo das humanidades (?). In: Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, jan./mar. 2018, pp. 358‐380.

 

 

 


Créditos na imagem: reprodução.

 

 

 


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