Em tempos sombrios nos acometem angústias e vertigens perturbadoras. Causa impacto desconcertante vislumbrarmos as raízes ocultas que sustentavam a normalidade aparentemente tranquila. Contudo, em momentos de grandes abalos podemos ter o privilégio de perceber o que teimava manter-se submerso e ofuscado no cotidiano repetitivo e banal. Cabe tirar o melhor proveito desses momentos de crise e transição. Com esse intuito, nos aventuramos nesses tempos de pandemia a vasculhar o tema do “mal à brasileira”. Talvez nos ajude a tecer os fios subjacentes escondidos sob àquela aparente normalidade sacralizada na realidade prosaica. Em momentos de crise e abalos profundos, podemos ter a chance de encontrar continentes de significados que o olhar hipnotizado pelo dia-a-dia normatizado dificultava perceber.
O presente texto pretende ser uma breve contribuição ao estudo do imaginário abordando tema concernente à Literatura do mal, a partir do aprofundamento da reflexão sobre as articulações entre os significantes amor, morte e sonho na poética do artista carioca Dante Milano (1899-1991). Nosso foco recai sobre a história cultural do significante (LACAN, 1988) ‘magia negra’ sobressalente na obra literária e na vida do poeta em tela. O tema central, que parece reconstituir a fonte original do trajeto mítico percorrido por Milano, revela o percurso em busca do amor através da experiência encarnada no mito do feminino – suporte para a travessia do mal e da morte na existência prosaica –; tema presente desde a clássica poesia de Dante Alighieri, passando pelo poeta francês Charles Baudelaire, na aurora da modernidade.
Esse trabalho de escavação no imaginário amoroso do poeta partiu da descoberta em pesquisa do tombamento (IPHAN/1938) do Museu da Magia da Polícia Civil/RJ (CORRÊA, 2009). Milano dirigiu esse museu por mais de vinte anos, experiência que deixou marcas indeléveis em sua poética. Embora seja considerado um dos cinco melhores poetas modernistas, ainda é pouco conhecido do grande público. Sua poesia e prosa tem aproximações com o anti-lirismo sinistro e macabro, e certo fantasmagorismoonírico, instaurando singularidades importantes, destacando-se ao ponto de configurar um tipo de modernista à margem do programa poético cultuado pelos modernistas consagrados.
A pesquisa sobre a travessia mítica na estética de Milano traz ao debate uma possibilidade interpretativa ao recompor os elos entre três obras poéticas distantes no tempo. Através da reflexão sobre a estética de Alighieri, Baudelaire e Milano, trabalhamos sobre a função dos significantes do feminino – relacionados aos temas do amor, do sonho, da morte e do mal – no processo de suas criações literárias. Nossa atenção recaiu inicialmente sobre as variações do mito da musa, na análise da travessia lírica pelos infortúnios da existência prosaica[1]. Admitindo um jogo estrutural de imagens dialéticas atravessando o legado poético da modernidade observamos que nele o feminino tanto pode representar o bem como o mal. O mito de Beatriz na Divina Comédia serve como ponto de partida, já que esse tema mítico retorna transfigurado nas obras de Baudelaire e Milano. Tal estudo sugere um trabalho de elaboração mítica profunda atravessando a vida e obra dos poetas em foco, identificando a gênese de um modelo estrutural próprio da subjetividade moderna, que julgamos recorrente na formação subjetiva do criador literário. Afinal, como escreveu Baudelaire no texto Sobre a Modernidade: “O homem acaba por se assemelhar àquilo que gostaria de ser” (1996, p. 9).
Destarte, recolhemos uma citação de Milano que no texto citado lembra uma frase do poeta romano Catullus: “Amo e odeio ao mesmo tempo / Como pode ser? (perguntas) / Duas cousas tão opostas/Ao mesmo tempo tão juntas / Como pode ser ignoro […]”. Diversos versos são lembrados no decorrer desse texto milaniano, sintetizando o processo artístico, na trajetória da travessia mítica do mal, encontrando em Baudelaire o herói mefistofélico, confirmando a modernidade do tema: “O mal é praticado sem esforço, naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre o produto de uma arte” (1996, p. 62).
Considerando pertinentes essas interpretações simbólicas do imaginário e da literatura do mal, da magia e da feitiçaria, podemos dizer que talvez sejam contribuições importantes apara a análise do jogo dialético do investimento desejante nas figuras do mal e do bem, na atração pelo feminino. O imaginário literário moderno carrega heranças interessantes que merecem a atenção dos analistas no sentido de realizar escavações/escutas clínicas necessárias à psicologia das profundezas. Compreendendo que o tema do mal (BIRMAN, 2009) invoca uma transdisciplinaridade crescente, na direção da unidade do campo epistêmico – e considerando que a interpretação clínica do ‘mal à brasileira’ (BIRMAN, 1997), não prescinde de uma ancoragem no universal; ao menos no imaginário moderno ocidental – acreditamos que o diálogo com a Psicanálise é mais do que necessário, para levarmos à frente o aprofundamento da reflexão acerca das articulações entre amor, ódio e ignorância.
A partir de uma longa pesquisa sobre o Museu da Magia e a poética do mal na obra do poeta, foi possível perscrutar “a história cultural do significante” (LACAN, 1988), ou melhor, de significantes que se inscreveram como traços do processo sociocultural encenando configurações do mal na modernidade e suas metamorfoses no atual estágio do capitalismo. Nessa linha, considerando a série de características do background sociocultural modernista, destacamos da coletânea Distâncias de Milano, os poemas: O Desmemoriado, no qual as angústias do transtorno das transformações da paisagem urbana são explícitas; Passagem do Poema, no qual a poesia é um refúgio. Da coletânea Terra de Ninguém, destacamos: A Ponte, no qual o “fim do mundo”, e o “fim dos homens”, é o extremo de um sentimento atordoado; Vozes Abafadas, no qual encontramos as imagens de “homens caídos”, que da dor não tem palavras para exprimir. Há ainda, nessa coletânea, com título significativo, Terra de Ninguém, o poema Absolvição e Rumores, em que se destaca uma aflição que se aproxima do transe místico e religioso (emerge a figura do Pajé e dos Tambores). Por fim, resplandece o poema Salmo Perdido, que merece ser transcrito integralmente, selando a sugestão interpretativa (MILANO, 2004, p. 60; grifos nossos):
Creio num deus moderno, Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e, não, de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem, Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga. A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais. Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais. As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.
Esse poema sintetiza o drama psicocultural (“trama subjetiva da cultura”) que frisamos aqui. Hipótese que se encontra diretamente com a sugestão de enquadramento no regime (ou polaridade) noturno; como estrutura Gilbert Durand. Percebemos com facilidade que o trajeto subjetivo do poeta tipifica bem a estrutura sintética (ou dramática), pois encontramos: 1. A coincidência ‘oppositorum’ e sitematização; 2. Dialética dos antagonistas, dramatização; 3. Historização; 4. Progressismo parcial (ciclo) ou total (DURAND, 2001, p. 443). Diversos elementos imagéticos e imaginários nos sugerem tal tipificação. É o que podemos constatar em passagens eloqüentes… Milano, quando escreve “O mundo não é mais a paisagem antiga, a paisagem sagrada”, observamos o fundo da angústia de testemunhar o “fim do mundo” e o “fim dos homens” tradicionais, num espetáculo atordoante e desequilibrante do ‘caos desintegrador’: “[…] o mundo não nos reconhece mais”. De modo desavisado, poder-se-ia ficar tentado em repetir a fórmula vulgar em que o ‘mal’ figuraria, então, como homólogo a imagem das transformações do capitalismo nascente, resolvendo nosso dilema na equação simplória: Mal = Capitalismo. Mas, não é possível reduzir e simplificar as coisas desse modo; como bem demonstrou Marshal Berman (1986).
Veremos a seguir que o ‘mal’, na poesia de Milano, é, na verdade, representado pela impotência daquele homem ainda pré-moderno; uma testemunha atormentada por aquelas transformações históricas e econômicas em abalos psico-morais profundos[2]. É o homem antigo, tradicional, clássico, que está sucumbindo; é esse ser impotente que não se vê mais preparado para a nova vida; nova vida e novo mundo agora engendrado pelas máquinas: o deus moderno. Um mundo que se desumaniza e que diminui o homem, o coisifica. No poema Noite, da coletânea Distâncias, demonstra esse processo de individuação do mal: “É de mim que nasce o mal, / Todas as coisas são puras”[3].
Ao recolher nesses versos, em trilhas e pistas, pudemos enfim compreender parte importante da trajetória biográfica desse artista e entender como seu nome ligou-se definitivamente a história da literatura brasileira, do Museu da Polícia Civil e da Coleção de Magia do IPHAN. Uma vida literária sui generis ligada a uma coleção museológica heteróclita – museu ainda hoje encoberto sob o manto do ‘confessional’ e do secreto – que não pode ser compreendida, no seu significado cultural, sem que se entenda sua ligação com a vida e a obra de Milano.
Nossa colaboração baseia-se em pesquisas críticas sobre os excessos da museologização (CORRÊA, 2009), nas fixações identitárias como sintomas do laço social que implicam na petrificação da cena da memória e os riscos da perda da criatividade (JEUDY, 1990). Tais reflexões ganham sentido analítico quando se dá destaque para o problema do espaço intersubjetivo na atualidade, isto é, considerando que as dominantes da formação subjetiva trabalhavam no sentido da manutenção do ideário moderno (FREUD, 1969), atualmente em crise (BIRMAN, 2010).
Nesse contexto dramático supermoderno, apontamos a emergência de novas representações, especialmente referidas aos signos do mal (BADIOU, 1995), numa sociedade em que o novo necessariamente, e mesmo paradoxalmente, não se constitui em promessas emancipatórias ou desalienantes; pelo contrário, novas formas de servidão e assujeitamento anunciam-se poderosas (FOUCAULT, 2000). Submersos num processo de desumanização sem precedentes o mal emerge como sintoma de uma exasperação: sinal da crise profunda do projeto humano.
Considerando a poética de Dante Milano como reflexo desse cenário subjetivo recolhemos os significantes do processo de arruinamento e desintegração na obra literária do poeta carioca (MILANO, 2004). Trata-se de uma contribuição para a escuta das representações imaginárias do mal na sociedade brasileira contemporânea. Escuta que se coaduna aos testemunhos da contemporaneidade sob o impacto da pandemia. Impacto que nos remete aquele arruinamento e desintegração do mundo, até então concebido como perene, mas que atualmente percebemos desmoronar. A poética de Dante Milano, reunindo os signos do fim de um mundo pré-moderno, antes da ascensão dos modernismos do século XX, pode nos ajudar a enfrentar nossas aflições presentes: “Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais”.
REFERÊNCIAS
BADIOU, Alain. Ética. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995
BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Rio de Janeiro: N. Fronteira, 1985.
___. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986..
BIRMAN, P (Org.). O mal à brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, 1997.
BIRMAN, J. Cadernos sobre o mal. Rio de Janeiro: C. Brasileira, 2010.
CORRÊA, Alexandre F. Museu mefistofélico. São Luís: EDUFMA, 2009.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
HUXLEY, Aldous. Visionários e precursores. Rio de Janeiro: Vecchi, 1942.
JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro: Forense, 1990
___. A sociedade transbordante. Lisboa: Edições Século XXI Ltda., 1995.
LACAN, J. O Seminário: Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
MILANO, D. Dante Milano. Rio de Janeiro: ABL, 2004.
MODESTO, A. L. A Banalização da vida em Dr. Fausto… Revista Caminhos, Goiânia, v. 5, n. 2, p. 461-478, jul./dez. 2007.
SARTRE, J.P. Baudelaire. B. Aires: Losada, 1947.
NOTAS
* Agradecimentos à FAPEMA o apoio à pesquisa Dante Milano: o modernista marginal, no estágio de pós-doutorado no PPGCS/UERJ (2010).
[1] Tema do mito da musa foi trabalhado no texto A EXPERIÊNCIA DO AMOR COMO APROXIMAÇÃO DO CRIME, DA LOUCURA E DA MORTE, apresentado no IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, Curitiba (2010), na MESA “O Amor entre o Mal, o Ódio e o Masoquismo”.
[2] Destaca-se recentemente a publicação o livro, Cadernos sobre o mal, de Joel Birman, no qual se encontra uma concepção do ‘mal’ compartilhada nesse artigo. Assim, em resposta as transformações socioculturais pelas quais passam os indivíduos e grupos, observa-se que “os valores éticos que são fundantes da experiência social quando destruídos [ou abalados], deixam a todos literalmente desorientados, desamparados em face ao Mal”, isto é, “perdem os seus pontos de sustentação, e suas coordenadas éticas caem por terra. Assim, temos o verso inteiro do poema Noite: As estrelas não são fictícias, são existentes,/Mas parecem fictícias…/Todos os sonhos são verdadeiros,/Mas parecem mover- se num plano irreal./É de mim que nasce o mal,/Todas as coisas são puras./Sou como um morto andando à toa./Oh, esse pensamento não vem de mim, vem do alto./Tive de pensá-lo porque se fez presente/Como o abismo ao suicida./Desejo transcendê-lo/E transformar o mal imaginário/Num bem presente e invisível (MILANO, 2004: 49; grifos nossos).
[3] Esse ponto do ‘mal em sí’ é iluminado por Ana Lúcia Modesto, que na sua conclusão ao texto A banalização da Vida ou o Mal segundo Thomas Mann, escreveu: “[…] na visão de Thomas Mann [na obra Dr. Fausto] (1994), o Mal está no próprio homem, [é] o que difere a obra [de Mann] de outras versões do pacto fáustico, especialmente a de Goethe” (MODESTO, 2007, p. 474).
Créditos na imagem: A Morte de Sardanápalo, 1827, óleo sobre tela, 392 x 496 cm, Eugène Delacroix, Museu do Louvre, Paris.
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Grande! Obrigado por jogar luz à obra deste grande poeta, que, no entanto, passa desconhecido das “massas”… poesia em tempos de fascismo é remédio!