O humanismo parece um traço óbvio e insistente, já que somos humanos e desse horizonte (transcendental) não existe fuga, muito menos redenção, ao menos é assim que a história é contada. Estaríamos presos em uma eterna malha interpretativa, subordinando tudo aos nossos olhos curiosos, como se o humano não fosse apenas uma espécie como outra qualquer, mas a própria possibilidade de sentido (a única possibilidade). Já o resto, aquilo que sobra da equação ontológica, de cadeiras até pássaros no céu, passando por carros, prédios, cães e gatos, é reduzido a uma simples carcaça de matéria sem forma, vagando por um mundo insignificante, apenas governado por Newton e suas leis mecânicas e frias. Como bem lembrou o filósofo Graham Harman (2017), ressoando o “Jamais Fomos Modernos” de Bruno Latour, esse modelo clássico de pensar apresenta uma ontologia dividida em duas partes: 50% reservada apenas aos humanos e 50% reservada a todo o resto. Ao humano foi dado o privilégio não apenas de possuir uma ontologia toda sua, o que já é uma conquista enorme, e uma vaidade fora do comum, como também um privilégio muito maior: definir os demais espaços ontológicos, tendo como referência seus próprios critérios. Até em religiões como o cristianismo, traços humanistas aparecem o tempo todo. O humano não é apenas apresentado como se fosse uma criatura qualquer, um simples organismo produzido por mãos divinas, mas algo de especial, muito mais nobre. Adão foi criado no sexto dia, coroando a criação, assim como recebeu o privilégio de nomear os animais ao seu redor. Seja falando sobre cultura, linguagem, razão ou alma, tudo acaba se reduzindo a uma única vaidade, como diria Freud, a um único traço que nos separa da natureza e dos demais animais, o que podemos chamar de dualismo. Apesar de interessante esse percurso dualista, essa aposta em repartir o mundo em dois, garantindo ao mesmo tempo uma certa sensação de conforto e conveniência ao humano, isso é tudo o que podemos oferecer? Estamos presos em um horizonte transcendental inescapável, acorrentados dentro de uma atmosfera humana, sem nunca conseguir escapar? Segundo Massumi, em seu “What the animals can teach us about politics?” (O que os animais podem nos ensinar sobre política?), essa narrativa pode ter melhores contornos, inclusive mais convenientes aos novos tempos.

Para Massumi, o objetivo não é a busca por uma política que pensa sobre os animais, ao forçar a natureza dentro de um repertório humano qualquer, como aquele jurídico, por exemplo, mas uma política que brote do próprio fluxo da animalidade, movimento que lembra Badiou e sua inestética. Em outras palavras, o animal não deve ser considerado como um simples objeto de estudo dentro de alguma abordagem teórica, mas ao contrário. O ponto principal não é se a política nos ensina sobre os animais, o que já acontece em muitas áreas, como na antropologia, sociologia, etc, mas o que os animais, no próprio modo como vivem e organizam suas experiências, nos ensinam sobre a política, quais sãos os pontos de aproximação entre os mundos? Essa simples pergunta já coloca em risco qualquer fronteira insistente e pretensiosa entre os dois reinos (humano e animal), observando muito mais continuidades do que divergências. Massumi defende aquilo que Manuel Delanda, e autores como Graham Harman, chamaram de ontologia plana, um espaço indiferenciado de relações, em que o humano não desempenha nenhum papel de destaque, sendo apenas um instante dentro de uma moldura muito mais complexa e criativa, nada mais do que uma linha de força misturada a tantas outras linhas (INGOLD, 2011).

 

Animais, criatividade e mundo vital

 

No livro “Discurso sobre a Origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, Rousseau descreve o humano como uma criatura especial, única, apresentando uma característica que chamou de perfectibilidade. Segundo o autor, os humanos são os únicos capazes de ir além, de mudar padrões, de reconstruir fronteiras, ou seja, o humano seria o único capaz de criar, enquanto os animais, ao contrário, estariam presos em uma sequência mecânica de encontros, o que chamou de instinto. O exemplo dado por Rousseau é clássico, envolvendo nossos felinos domésticos. O gato é uma criatura fofa, alegre, mas incapaz de transbordar, de ir além, incapaz de redefinir seus padrões, como acontece com sua própria alimentação. Enquanto o humano apresenta uma plasticidade incrível, o gato estaria condenado, pela natureza, a manter o mesmo percurso, não importa as circunstâncias. Marx, em seu livro “O Capital”, também apresenta o humano com essa característica criativa, enquanto a aranha, ao contrário, nada mais seria do que uma máquina que reproduz as mesmas teias de sempre, sendo incapaz de ir além. Em outras palavras, segundo esses dois autores a natureza é sinônimo de rigidez, de instinto. O humano, ao contrário, seria o espaço da plasticidade, do criativo… da HISTÓRIA. Até mesmo hoje as ciências sociais, de uma forma geral, apresentam um medo profundo de colocar os pés no campo biológico, justamente porque associam o reino natural a algo rígido e conservador. Existe, portanto, uma fronteira clara entre NATUREZA e HISTÓRIA, um limite que não deve ser cruzado, caso contrário corremos sérios riscos.

Massumi sugere um outro retrato, uma outra moldura muito mais ousada, principalmente ao seguir os passos dos autores vitalistas. No vitalismo, ou filosofia da vida, figuras como Espinosa, Nietzsche, Deleuze, Bergson, e muitos outros, entendem a realidade não baseada em alguma estrutura dual, presa em algum tipo de fronteira insistente, mas muito pelo contrário. O mundo existe enquanto um monismo, ou seja, a realidade inteira sendo governada por um mesmo fluxo de vida, não importa se estamos falando de humanos ou animais. Esse princípio vital é criativo, dinâmico, disperso, sendo definido basicamente como um movimento, um fluxo sem qualquer identidade fixa, essência, ou teleologia, mas apenas uma cadeia incrível de diferenças (relações). Isso significa que ser “criativo” não é uma propriedade de alguém, ou de um grupo, mas uma característica do próprio mundo, o que nos leva direto a um tipo interessante de ontologia. Como o próprio Massumi afirma, existe uma “lição espinosista” para ser aprendida (MASSUMI, 2014, p. 18), um compromisso vital que deve ser firmado. Essa filosofia do processo, outro nome dado ao vitalismo, recentemente invadiu as fronteiras das ciências humanas e sociais, implodindo a forma como usamos nossa linguagem e experimentamos o mundo ao redor, quase como se a “morte do homem” em Foucault não fosse apenas uma expressão enigmática nas “palavras e as coisas”, mas uma profecia que foi finalmente concretizada.

Para Massumi, o instinto é um traço inevitável, presente em qualquer organismo vivo, sem dúvida, inclusive dentro de um modelo evolucionário, embora ele tenha uma característica muito mais flexível, não sendo uma carcaça transcendental rígida, muito menos um tipo de estrutura internalizada. Seguindo os conselhos de Bergson e sua “evolução criadora”, Massumi afirma que se o instinto fosse algo rígido, se fosse apenas uma grade fixa no corpo do animal, isso dificultaria a adaptação de qualquer espécie. A criatividade, portanto, não é o oposto do instintivo (natural), como imaginavam autores como Rousseau e Marx, mas o seu complemento inevitável. A espécie, na tentativa de alcançar uma adaptação, precisa ser flexível o bastante para redefinir circunstâncias quase sempre inéditas e imprevisíveis. Essa é, inclusive, uma outra característica do vitalismo: a aposta em um mundo que excede, transborda, ultrapassando qualquer tipo de arranjo, critério ou matriz, ao mesmo tempo que força o indivíduo a reorganizar categorias e padrões. Esse indivíduo nada mais é do que uma extensão do mundo, um prolongamento do modo como essa mesma realidade o afeta, o transforma, sendo uma rede complexa de afecções. Em outras palavras, o próprio dualismo entre interno x externo, subjetivo x objetivo, não faz sentido. Como diria Deleuze (1991) em seu livro “A dobra”, o meu “eu”, a minha identidade, não é uma substância invariável que atravessa as contingências, mas acaba sendo um ponto de inflexão, o instante em que as linhas de força convergem, produzindo como efeito a multiplicidade que chamamos de vida. Em outras palavras, a identidade é um breve momento, bem provisório, no interior de um fluxo de diferenças, de relações que se desdobram em um ritmo imprevisível, quase como se o “eu”, “a estrutura”, “a sociedade”, fossem simples miragens produzidas pelo devir das coisas, quase como uma ilusão de ótica, o que em filosofia chamam de propriedades emergentes.

Segundo Massumi, a brincadeira, principalmente entre os animais, deixa transparecer essa característica criativa da natureza, postura essa também compartilhada pelo antropólogo e linguista Gregory Bateson e pela filósofa Donna Haraway. Esse gesto lúdico “[…] é um gesto vital” (MASSUMI, 2014, p. 8), um traço criativo que os animais compartilham com a realidade como um todo. A vida, portanto, é avaliada não por um critério epistemológico, se verdadeiro ou falso, mas estético, e até pragmático, envolvendo a capacidade de criar, afetar e transformar.

Ao contrário de uma leitura tradicional do darwinismo, Massumi sugere algo além da pura sobrevivência e da adaptação como critérios. Ele propõe algo mais dinâmico, criativo, o que vai chamar de metalinguagem, conceito emprestado de Bateson. Ao agir dentro de uma metalinguagem, o animal não se encontra trancafiado em um presente eterno, apenas respondendo aos estímulos que brotam do mundo, mas consegue também interpretar e agir de uma maneira criativa e cênica (performática) diante do que acontece. O simples critério da sobrevivência é muito insuficiente para dar conta da percepção do animal, tese que Donna Haraway não apenas concorda, como foi uma das idealizadoras. Ao invés da pergunta clássica “os animais se adaptam (reagem, lutam)?”, por que não perguntar se os animais brincam, criam, amam? É preciso, portanto, fugir da abordagem heideggeriana sobre a animalidade, aquela que insiste em enxergar cães, gatos, macacos e papagaios como pobres de mundo. É preciso reduzir um pouco a pretensão humanista que ainda ronda nossos cursos de humanas e sociais, a nossa preciosa crença de que somos a medida de todas as coisas, a ponta do processo evolutivo. Massumi, em seu livro What the animals can teach us about politics? (O que os animais podem nos ensinar sobre política?), nos oferece um pequeno, mas importante, incentivo nessa jornada despretensiosa.

 

 

 


REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. São Paulo, Ed. Papirus. 1991.

HARAWAY, Donna. When Species Meet. Minneapolis, Ed. Minnesota Press. 2008.

HARMAN, Graham. Immaterialism: Objects and Social Theory. Cambridge, Ed. Polity Press, 2017.

INGOLD, Tim. Being Alive: Essays on movement, knowledge, and description. Abingdon, Ed. Routledge, 2011.

MASSUMI, Brian. What the animals can teach us about politics? United Stares, Ed. Duke University Press, 2014.

 

 

 


Créditos na imagem:Hunting and Fishing, Cat and Ichneumon – Ancient Egypt (c.1422 – c.1411 BC).

 

 

 

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