É certamente difícil recuperar, só pelo trabalho mental, as notícias e informações que recebemos sobre as sequelas que se cravam na economia agora que o mundo tem um objeto de preocupação simultânea e comum. Na verdade, em certo patamar, é a própria economia esse objeto de preocupação comum – não só para quem a entende como “ciência” de cálculos e abstrações, de fórmulas que determinam como nosso tempo e nossos gastos têm de ser organizados, mas também em seu sentido mais primordial, daquela preocupação referente aos bens da casa (oikos), da administração das riquezas que permitem a uma certa unidade – a familiar – sobreviver e contribuir para o fortalecimento de outra unidade, maior, a comunidade. Agora, levar o pão alcançou seu paradoxo máximo: pode significar levar a morte para casa.
O movimento que leva à preocupação imediata com a própria casa não é algo que possa ser simplesmente refutado – não é uma questão de lógica; no capitalismo, entretanto, força-se uma lógica que é tanto mais violenta porque se quer natural (“lógica” que, por sua total incompatibilidade com a solidariedade, destrói muito mais lares do que os possibilita). A violência da ideologia neoliberal impõe a cada indivíduo a competição como modo de relação imediata com as alteridades. Esse modo de encaixe das responsabilidades individuais depende de algo a ser ocultado para que tudo funcione bem: nada nos é assegurado, no capitalismo, senão porque o estado – como mediador – pratica a violência de usurpação original em todo instante de sua existência, e que é isso que garante privilégios. A expropriação do que é comum prossegue sendo o motor do capitalismo.
Não há nada que façamos que independa completamente do conjunto da coletividade que nos envolve; se a segurança é uma das razões para vivermos em sociedade, não há ganho individual que prescinda de certa legitimação coletiva. E há uma proporção que cada vez mais tem definido expectativas a respeito da segurança: quanto maior o medo de perder privilégios, mais se vê a distribuição de fardas e armas como função primeira e legítima do Estado, como repressão armada contra-ataques à propriedade privada. O que se exige, então, não é nada lógico, quer-se o estado violento, mas se requer toda a liberdade individual acima de toda necessidade do coletivo. Caso contrário, a desobediência a ordens públicas aparece como sensata – posso, por exemplo, abrir minha loja de roupas íntimas mesmo com lockdown decretado porque, se garante o meu pão, é essencial.
Mais uma vez, como refutar a necessidade de sustentar a casa? Se há tempos o estado deixou de fornecer essa segurança, como culpar alguém por querer-se à frente de todo mundo? Mas nunca é questão de culpas individuais. Acredito que eu mesmo, em outros pensamentos que expressei, caí em cima de muita gente e de suas ações durante a pandemia tendo como suporte para isso algumas concepções moralizantes – conscientemente ou não. Também não posso me culpar por isso, seria apenas duplicar a distância para o que interessa. Quando, em toda análise da realidade, subsiste um explícito desejo a respeito de certas configurações (em meu caso, sociais e políticas), é relativamente impercetível o passo que se dá em direção a algum dever-ser; do mesmo modo, quando se deve levar o pão para casa, não é um deslize “natural” que toda atividade particular seja considerada como essencial? Não é “essencial” a liberdade de levar para casa o pão como resultado de um trabalho “honesto”?
Claro, toda lei e toda linguagem que impõe regras, limites, tende a ser tomada como uma vontade exterior aos indivíduos e em certa medida violenta – assim, um termo como “essencial”, quando usado para delimitar as atividades sociais que devem permanecer funcionando durante o extremo (até o momento) da pandemia, é imediatamente objeto de um cabo de guerra que se instaura para definir o que, das necessidades, é realmente necessário. Para quem se crê essencial, a saúde pública não é questão de segurança. Assim como ocorre quando uma fake news captura alguém e consegue se reproduzir: as paixões que moldam a recepção da notícia são transportadas para a realidade ela própria, e a moderação que acontece, totalmente autocentrada, serve de base para argumentos que deveriam ter valor objetivo.
Assim, tem sido fácil ceder a fake news e difícil submeter-se a decretos que impõem o lockdown, por exemplo, já que são as paixões particulares que têm sido utilizadas como argumento nesses momentos. Meu trabalho é essencial porque alimenta pessoas (da minha casa) – como discutir quando o medo de perder o emprego tem avançado também sobre os mais estabelecidos trabalhos? Em outra faixa, como não culpar indivíduos pela resistência ao lockdown e discernir, na medida do possível, responsabilidades de agentes – nos mais variados setores – que têm contribuído para o engrandecimento dos perigos e, consequentemente, do medo?
Procuramos culpados porque não somos pessoas “educadas” democraticamente – somos pessoas educadas a acreditar que o mercado é o lugar da democracia e que governos são democráticos se se ajustam a essa difusa ideia de liberdade cuja condição é, não menos, esse mercado. Não somos pessoas educadas a exigir que os conflitos fundamentais da sociedade sejam explicitados cotidianamente pela linguagem, acostumamo-nos com as armas. O trabalho, no interior dessa habitual violência, igualmente é submetido essa difusa ideia de liberdade – cada vez mais, responsabilidade e culpa se misturam e, se não há pão em casa, que os indivíduos carreguem, então, seus pesares. A pandemia aprofunda a solidão como requisito de sucesso e somos pessoas deseducadas a pensar o trabalho de outra maneira – como mostrou István Mészáros (A educação para além do capital), nas sociedades a educação, como tudo o que é essencial à vida delas, está intimamente vinculada ao destino do trabalho.
Créditos na imagem: Getty Images stock photo.
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Daniel Santos da Silva
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