Tudo parecia sólido até pouco tempo atrás, como se a certeza do amanhã fosse uma garantia óbvia, um sonho concreto. É curioso como o cotidiano carrega esse traço de ilusão de ótica, esse sentimento de que tudo ao nosso redor funciona muito bem, o tempo todo. Quando algum problema brota do chão, é sempre visto como algo externo, pontual, quase um inimigo que coloniza nossa harmonia intocada. Seguindo um percurso um pouco fenomenológico, essa confiança extrema de que existe um solo firme sob nossos pés, essa fé intuitiva de que tudo permanece no lugar, recebeu o nome de atitude natural, ou seja, a certeza pré-reflexiva de que existe lá fora um mundo sólido apenas aguardando minha inocente participação. Apesar dessa ingenuidade, e de toda fé envolvida, ainda assim nada impede que esse mesmo mundo nos invada, trazendo consigo alguns instantes de ruptura, muitas vezes frustrações dispersas ou angústias impossíveis de nomear. Quando isso acontece, mesmo que por um breve momento, é possível sentir um pouco o cheiro do aroma instável que escorre pelas brechas daquilo que chamam de SOCIEDADE. Embora tenha um certo papel pragmático, esse substantivo não ajuda nem um pouco, principalmente porque oferece um retrato congelado e linear das coisas, como se SOCIEDADE fosse algum organismo vivo que flutua sobre nossas cabeças. Mas, por outro lado, o que percebemos bem, ao menos quando se olha com calma, é a existência de um vácuo atravessando cada centímetro do nosso cotidiano, uma lacuna que persiste em cada palavra dita, em cada gesto feito.
É quase irônico que em um mundo tão barulhento, tão cheio de opiniões, crenças e discursos, todos tenham se curvado diante de uma única palavra: coronavirus. Por um breve instante, ainda que depois cada um siga por um caminho diferente, todos foram tomados por um mesmo silêncio, por uma única sensação indefinida, confusa e frustrante. Ainda que por algumas horas, ou até mesmo segundos, experimentamos um pouco de uma ética universal, uma ética que conecta não formas de linguagem, mas modalidades de corpo, quase como uma espécie de versão monista do vitalismo de Espinosa. Apesar disso, esse instante de silêncio não durou muito, sendo substituído logo em seguida por toneladas de interpretações, o que teóricos da virada linguística poderiam facilmente chamar de malabarismo verbal.
Numa tentativa de preencher o buraco deixado pelo vírus, várias abordagens colonizaram a linguagem em busca de um pouco de sombra e água fresca, um espaço confortável e familiar: 1) A religião afirmando que tudo é um castigo ou teste divino. 2) As ciências sociais acreditando que é um sinal de uma crise no capitalismo ou um indício do fracasso de nossas instituições políticas. 3) A filosofia seguindo por abordagens existenciais, temperadas com algumas gotas fenomenológicas. E, por fim, mas não menos importante, 4) o senso comum com suas teorias conspiratórias, carregadas de traços paranoicos. Apesar das diferentes interpretações, e até mesmo da criatividade envolvida em cada uma delas, algo se mantém: uma certa matriz transcendentalista de fundo (seja humana ou divina). Em outras palavras, existe sempre o desejo de nomear e, principalmente, converter o sentimento de uma angústia dispersa em algo conhecido e condensado, além de previsível, quase como o capitão Ahab em Moby-Dick, ao transformar a baleia em um ponto de convergência de suas próprias frustrações. Todos querem que o excesso da pandemia entre numa cadeia linear de significantes, transformando o acaso em necessidade, o caos em ordem. O vírus se torna, portanto, apenas mais um prolongamento de um pano de fundo previsível de ideias, sendo nada mais do que um pretexto. Nas ciências sociais, a pandemia acaba se tornando um objeto de estudo como outro qualquer, incorporado em uma esteira familiar de temas expectativas: desigualdade de gênero, classe, raça, além de debates políticos e econômicos. Esse movimento que transforma o inédito em algo conhecido, que transforma o choque em palavra, não ocorre de forma solta, muito menos arbitrária, mas apenas acontece por conta do mais importante transcendental criado pelo Humano: O Humano. A tragédia, ao passar por essa estrutura, se torna um simples problema de gestão, um tipo de falha que envolve o comportamento de certos homens e mulheres. A própria ideia de agencia se resume também aos humanos e ao que podem ou não fazer. Esse campo previsível torna a pandemia não apenas algo capaz de ser nomeado, mas também previsto. Ao estar dentro do campo transcendentalista, principalmente definido pelas fronteiras de um certo humanismo de fundo, as variáveis se apresentam de forma clara, podendo ser controladas, assim como os inimigos podem ser descritos com facilidade. Ao invés de uma rede complexa de relações, temos causas (e culpados) bem definidos. Ao invés de uma genealogia, temos uma centrologia. Ao invés de uma diplomacia latouriana, num fluxo de múltiplas trocas, incertezas e possibilidades, saímos numa busca nostálgica por algum tipo de humanismo qualquer. Em outras palavras, apostamos na ideia de que a tragédia da pandemia é um problema “social” e, portanto, facilmente resolvido se a pessoa certa, no momento certo, e do jeito certo, aparecer no horizonte. A tragédia, por esse motivo, é vista como um problema de gestão humana, nada mais do que uma falha decisória, ou mesmo ética. Não é a toa que o populismo cresce mais e mais em momentos de crise, principalmente agora. A crença de que algum humano é capaz de aliviar o peso do sofrimento, parece uma constante nos dias atuais. Se pessoas sofrem, morrem ou adoecem, provavelmente alguém fez algo de errado, alguém não usou a razão como deveria, em uma abordagem epistemológica, ou, o que é mais comum ainda, talvez não tenha sido ético o bastante. Não importa o argumento levantado, a premissa é sempre a mesma, sempre um humanismo de fundo, fazendo do humano não apenas aquela criatura capaz de produzir tudo de maravilhoso, mas também tudo de grotesco. É uma espécie de humanismo às avessas, uma versão meio pessimista, mas ainda assim um humanismo, ou seja, a crença de que somos tão poderosos, mas tão poderosos, que o destino sempre está em nossas mãos, não importa se as consequências são boas ou ruins.
O vírus lacaniano nas Ciências Sociais
Na psicanálise lacaniana, a Coisa é um conceito interessante, sendo um objeto que deixa escapar traços de um real de fundo, ou seja, traz consigo rastros de algo que transborda e silencia (KAY, 2003), não importa se é um cachorro, uma mesa, um notebook, ou mesmo um vírus. A Coisa deixa escorrer o cheiro ácido do inominável beckettiano, daquilo que se encontra na própria fronteira da significação. Em outras palavras, ela ameaça qualquer estrutura transcendental, qualquer tipo de órgão sem corpo, como diria Slavoj Žižek (2016) invertendo o arranjo deleuziano do corpo sem órgão. “The Thing [is] the pure substance of enjoyment resisting symbolization[1]” (ŽIŽEK, 1992, p. 8), sendo um tipo de objeto qualquer, mas com um “surplus”, uma espécie de liquido que transborda de sua aparente e sólida identidade. Esse líquido Real não tem nome, cor, cheiro, nem mesmo contorno, sendo apenas aquilo que se encontra no limite, na borda, quase como se fosse aquele resto que o modelo kantiano deixou escapar, sua coisa em si, o que Jane Bennet (2010) chamou de absoluto. Ao contrário de outras áreas, na psicanálise, ou mesmo na Teoria Social Alternativa (T.S.A), o objetivo não é substituir uma interpretação por outra, muito menos um transcendental por outro, como é de se esperar de abordagens que se dizem críticas, mas sim ir além, implodindo a própria estrutura interpretativa, zombando muitas vezes da própria linguagem articulada (o estilo bem humorado nos ensaios de Latour, ou o sarcasmo dos aforismos nietzschianos, não são um exemplo de um tipo de linguagem que zomba de si mesma, descentrando sua consistência interna?). O compromisso da psicanálise, ou mesmo do vitalismo na T.S.A, com sua crítica à metafísica da presença ou da própria ontoteologia, é algo mais simples do que parece, nada de outro planeta: é preciso fazer um “furo na linguagem” (BADIOU, 2003), ao menos naquela comum, transcendentalista, sendo necessário ir além dela mesma, em especial quando falha, quando quebra, quando deixa escapar o cheiro da Coisa de fundo. Essa quebra de uma linguagem transcendental pode parecer meio assustadora, ou no mínimo estranha, principalmente porque o transcendentalismo desempenha um papel pragmático importante, sendo não apenas uma condição de possibilidade do conhecimento, em um campo epistemológico, mas também uma condição de existência da própria prática. Diante disso, “por que criticar algo que funciona tão bem?”, pergunta você, curioso. E esse é justamente o problema do transcendentalismo, em especial o humanista… ele funciona tão bem, mas tão bem, que nada escapa, nada surpreende, nada transborda. Em termos lacanianos, isso significa que o outro perde sua autonomia e se torna apenas uma extensão de uma expectativa qualquer, seja ela da ordem do simbólico, ou mesmo em um nível imaginário nas fronteiras do próprio EU. Em termos vitalistas, esses transcendentais colonizam as possibilidades de sentido, não apenas definindo seus contornos, mas privando outras entidades ou objetos (HARMAN, 2011). Ao ter essa estrutura quebrada, por mais inconveniente que pareça, uma multiplicidade de novos atores aparece no horizonte, além de milhares de novas alternativas de sentido.
Quando o transcendentalismo racha, quando ele perde sua consistência, o que sobra é uma realidade que possui autonomia própria, não mais se submetendo a uma estrutura simbólica ou imaginaria do humano: o outro simplesmente nos invade, nos trasborda. Ao contrário de outras abordagens clássicas nas ciências humanas, na T.S.A o mundo deixa de ser apenas uma extensão de uma certa expectativa, e começa a se afirmar por conta própria. Não seria o Coronavírus aquilo que resiste a qualquer esforço imaginário ou simbólico, sendo uma espécie de excesso que nos frustra, ao mesmo tempo que nos lança em um campo inédito de possibilidades? Claro que se você é um sociólogo clássico, o Coronavírus não tem nada a ensinar, já que se torna apenas um objeto enquadrado em uma matriz previsível de significação, principalmente aquela que reduz o vírus a processos de decisões humanas e nada além. Por outro lado, se você segue um percurso alternativo, e nem um pouco transcendentalista, o vírus não se apresenta como uma identidade fixa incorporada em um transcendental qualquer, muito menos humano, sendo muito mais um elemento autônomo e com um ritmo próprio, o que na T.S.A ganha vários nomes: híbrido (LATOUR, 1994), coisa cabeluda (LATOUR, 1979), plasma (LATOUR, 1994), mais-valia de vida (MASSUMI, 2014), lógica da imanência (BRYANT, 2011), corpo sem orgãos (DELEUZE, 1987), Coisa (KAY, 2003), A mancha (ŽIŽEK, 1992), malha (INGOLD, 2012), fluidos (MOL and LAW, 1994), o objeto dançarino (HARAWAY, 2008), objeto real (HARMAN, 2011), matéria vibrante (BENNET, 2010).
Talvez esse silêncio, esse vácuo deixado pelo vírus, acabe sendo mais significativo do que as milhares de tentativas de preenchimento, por mais bem elaboradas que elas pareçam, ao menos à primeira vista. Não estamos falando de um simples problema, mas de uma pandemia jamais vista até então… uma pandemia que não apenas interrompeu os planos do “capitalista porco”, mas também do “crítico do capitalista porco”… uma pandemia que fechou mercados, assim como igrejas e universidades… uma pandemia que afeta bastante os pobres, embora ninguém esteja seguro.
Se nem mesmo uma pandemia desse ordem conseguiu comprometer as muralhas de nossa própria linguagem, e do tecido simbólico em seus bastidores, acaba sendo irônico falar de debates ou qualquer forma de reflexão, como se fosse simples assim. Se nem mesmo o extremo do possível, nas fronteiras do próprio caos, não nos afeta em um nível mais profundo, apenas servindo como um elemento que reforça o que sempre existiu, e o que sempre pensamos, a própria ideia de reflexão se torna um sonho distante, muitas vezes uma piada. Na psicanálise, esse elemento extremo que supostamente alteraria os rumos de tudo, mas que acaba apenas reforçando seus contornos iniciais, é chamado de ponto de basta (ŽIŽEK, 2006). Ou seja, ao invés da pandemia ser um caso extremo que coloca nossa linguagem contra parede, nos forçando a repensar o próprio núcleo interno e frágil de suas cadeias de significantes, o que temos é o completo oposto. A pandemia se torna mais um objeto, um simples pretexto dentro de uma série de interpretações de bolso, sem nenhuma novidade. Claro que essa cartada transcendentalista tem seu charme e sua função pragmática, já que mantem a pandemia dentro de limites convenientes, dentro de um espaço previsível envolvendo decisões humanas.
Lamento desapontar a expectativa transcendentalista o Teórico Social clássico, mas o Coronavírus é algo fora do comum, um evento, no sentido dado por Badiou, ou um encontro radical, como imaginava Espinosa. Ainda que seja previsível encaixar o inédito nas fronteiras do familiar, daquilo que já conhecemos, muitas vezes o silêncio pode valer mais. No fundo, bem lá fundo, onde o subterrâneo da subjetividade encontra seu ponto de partida, todos sabem que alguma coisa nessa história toda escapa, transborda, alguma coisa que nos pega de surpresa e nos deixa sem voz, sem chão. A Teoria Social Alternativa (T.S.A) consegue interpretar melhor a pandemia do Covid-19 justamente porque recusa a interpretação, ao menos aquela transcendentalista, ou seja, recusando o desejo desesperado por uma saída comum, previsível e confortável. Ela nos força a encarar o campo inominável do imprevisível, muito antes de recorrer a fórmulas prontas e disponíveis, apenas aguardando o momento que nossa ansiedade encontra uma saída conveniente.
Talvez seja a hora certa de repensar muita coisa, mas não apenas práticas ou certos assuntos, mas talvez repensar a própria estrutura da nossa linguagem e a forma pretensiosa como nos direcionamos ao mundo e a nós mesmos. Embora existam várias tentativas de interpretação no universo da teoria social, todos deslizam sobre uma fina camada de gelo, tentando fugir do horizonte doloroso e áspero de um Real que não apenas compromete a conveniência da nossa linguagem, mas zomba de toda a sua pretensão. A Teoria Social Alternativa consegue interpretar o Coronavírus porque não interpreta, porque encara o silêncio deixado pelo peso das circunstâncias, assim como sua autonomia, sem aquele desejo paranoico ou transcendentalista. A T.S.A nos lembra da importância desse silêncio, desse choque inicial, desse sentimento de que algo é maior do que pensava, ainda que logo em seguida outras abordagens apareçam e preencham a lacuna. Ao invés de trabalhar com a linguagem, e com seus limites epistemológicos, ela se preocupa com uma ontologia além do humanismo de sempre, uma que se abre para novas possibilidades de sentido, incluindo novos atores em jogo.
REFERÊNCIAS
BENNET, Jane. Vibrant Matter: A Political Ecology of Things. Durham: Duke University 2010.
BADIOU, Alain. On Beckett. California: Stanford University Press, 2003, p. XXIII.
BRYANT, Levi R. The Democracy of Objects. Michigan: Open Humanities Press, 2011.
DELEUZE, Gilles. A thousand Plateaus: capitalism and schizophrenia. University of Minnesota Press: London, 1987.
HARMAN, Graham. The Quadruple Object. Winchester: Zero Books, 2011.
HARAWAY, Donna. When Species Meet. Minneapolis: Minnesota Press, 2008.
INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012.
KAY, Sarah. Žižek: A Critical Introduction. Cambridge: Polity Press, 2003.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
__________. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Editora Relumé Dumará, 1979.
MASSUMI, Brian. What the animals can teach us about politics. US: Duke University Press, 2014.
__________. Enjoy your Symptom. UK: Routledge, 1992.
__________. Para ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
__________.Organs Without Bodies: Deleuze and consequences. UK: Routledge, 2016.
NOTAS
[1] “A coisa é a pura substância de gozo que resiste a simbolização” (Tradução Minha)
Imagem: Reprodução/Internet
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