Os currículos ocultos dos ministros bolsonaristas

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Em 16 de maio de 2000, Britney Spears laçou seu segundo álbum com a música Oops!.. I did it again [Oops!.. eu fiz de novo]. 20 anos após o lançamento do álbum da estadunidense, o sucesso juvenil, símbolo da cultura de massas, tem tudo para ser a trilha sonora do Governo de Jair Bolsonaro[1], que em 19 meses de mandato acumula vários problemas e controvérsias envolvendo os seus ministros, com graves erros em seus currículos.

Abrahan Weintraub foi anunciado pelo Presidente Jair Bolsonaro como Doutor, no dia 08 de abril de 2019. Todavia, o sucessor de Vélez Rodrigues no Ministério da Educação não possui tal titulação. Posteriormente foi identificado que Weintraub praticou o chamado autoplágio, isto é, ele submeteu o mesmo artigo escrito por ele para duas revistas acadêmicas distintas e as duas publicaram, sem saber, o mesmo texto. Ao proceder dessa forma, o professor de Ciências Contábeis da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) não respeitou a característica de ineditismo exigida pelas revistas acadêmicas, praticando assim, uma irregularidade.

Damares Alves, atual Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou que era Mestre em Educação. O Jornal Folha de São Paulo, publicado em 31 de janeiro de 2019, tratou da suposta formação acadêmica da Ministra em artigo intitulado “Sem diploma, Damares já se apresentou como mestre em educação e direito”. Na página do jornal, na internet, há um vídeo gravado em 2013, em que a atual Ministra fala em alto e bom som: “sou advogada, mestre em educação também, sou mestre em direito constitucional e direito da família e eu trabalho há 14 anos no Congresso Nacional como assessora jurídica da frente parlamentar evangélica e da frente parlamentar da família e apoio a vida”.

Sobre Ricardo Salles, em fevereiro de 2019, o site The Intercept Brasil divulgou que o Ministro do Meio Ambiente não possuía o título de Mestre em Direito pela Universidade de Yale (Estados Unidos) como havia sido divulgado. Isso levou o Nexo Jornal a publicar uma nota corretiva na matéria publicada em seu site em 10 de dezembro de 2018:

 

A primeira versão deste texto afirmava que Ricardo Salles era mestre em direito público pela Universidade de Yale, a partir de uma breve biografia publicada em 2012 em um artigo de opinião assinado pelo ministro no jornal Folha de S. Paulo. No dia 23 de fevereiro de 2019, o site The Intercept Brasil publicou uma reportagem questionando o currículo de Salles. No dia seguinte, o ministro admitiu, no Twitter, que o dado enviado naquele ano de 2012 à Folha estava equivocado. A Universidade de Yale também disse ao Nexo, posteriormente, que nunca teve Salles como aluno. A informação foi corrigida às 12h13 de 25 de fevereiro de 2019.

 

Ricardo Vélez Rodrigues, primeiro Ministro de Educação nomeado por Bolsonaro não passou incólume às controvérsias curriculares. Segundo a jornalista Clara Cerioni, da Revista Exame, em matéria de 20 de maio de 2020, intitulada “Os Ministros do Governo Bolsonaro que mentiram no Currículo”, o colombiano naturalizado brasileiro apresentou no seu currículo 22 informações inconsistentes, entre elas:

 

(…) esquecer de acrescentar coautores de seus textos, como por exemplo ter criado como de sua autoria única o livro “Formação e Perspectiva da Social-Democracia”.

 

A dubiedade e a imprecisão no currículo de Vélez eram tantas que da forma como ele apresentou a sua produção intelectual, desrespeitando as normas técnicas e acadêmicas, induzia os leitores a entender que ele escreveu um livro em coautoria com Alexis de Tocqueville, pensador francês que viveu entre 1805 e 1859. Isso sem falar nas suas várias declarações polêmicas, como: “1964 não foi Golpe”, “Universidade para todos não existe” e que devemos “Voltar a valorizar a educação moral e cívica”.

No final do mês de junho do ano corrente, a lista de ministros com problemas curriculares ganhou mais um membro. O personagem da vez foi o suposto militar da reserva da Marinha[2], Carlos Alberto Decotteli.  Até uma semana antes de aceitar o cargo de Ministro da Educação, substituindo Abraham Weintraub, Decotteli era reconhecido entre a ala militar do Governo que o indicou, como um homem de sólida formação acadêmica. Acreditava-se que ele possuía Mestrado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Doutorado pela Universidad Nacional de Rosario (Argentina) e Pós-Doutorado pela Universidade Wuppertal (Alemanha). Uma semana depois de aceitar o cargo pairaram sobre ele várias suspeitas: plágio na Dissertação de Mestrado; não conclusão do Doutorado, visto que a tese que apresentou foi reprovada; Pós-Doutorado negado pela Universidade de Wuppertal, que declarou que ele não obteve nenhum título pela instituição.

Vale ressaltar que no caso Carlos Decotteli há um aspecto racial, mesmo tacitamente, que pode ter tido um peso a mais na decisão do Governo em voltar atrás em sua nomeação. Isto porque outros ministros de Bolsonaro, todos brancos, procederam de forma similar, mentiram em relação às suas formações profissionais, e não perderam seus respectivos postos ministeriais.

Diante dos dados expostos, percebe-se que entre os requisitos necessários para ser ministro no Governo Bolsonaro, inventar títulos universitários e fantasiar produções acadêmicas é o mais recorrente. O que suscita o questionamento: como entender o desejo reiterado por títulos acadêmicos e científicos entre apoiadores de um governo negacionista da ciência e anti-intelectual, que notadamente desfere ataques à universidade brasileira?

A universidade contemporânea é o espaço privilegiado do debate científico e isso é fruto de um longo processo que, no Ocidente, vem desde os séculos XI e XII, quando as primeiras instituições de ensino superior foram criadas. Inicialmente elas eram completamente diferentes das atuais universidades, pois foram criadas e mantidas por reis, entidades religiosas ou grupos de ofício. Centradas na manutenção e reafirmação do que já se conhecia, a universidade, nesse período, era o local da tradição, da hierarquia e de um saber quase sempre ilustrativo.[3]

A concepção de universidade nos moldes como conhecemos hoje só começou a ser delineada no início do século XIX,[4] quando os irmãos Humboldt, sobretudo, Wilhelm von Humboldt, assumiu a Direção da Seção de Culto e Educação do Ministério do Interior da Prússia. Wilhelm von Humboldt lançou as bases de uma universidade centrada na pesquisa. Assim, em 1810, foi criada a Universidade de Berlim (Universität zu Berlin) que rapidamente passou a gozar de uma situação favorável ao desenvolvimento das suas atividades de forma independente. Nessa linha, registre-se que “o Estado deveria fornecer apoio financeiro à universidade ao mesmo tempo em que aceitaria a independência de pesquisa e ensino em relação aos fins práticos imediatos”.[5] Daí em diante, universidade passou a ser “livre” para buscar por meio da investigação científica explicação racional da realidade humana, passando, gradativamente, a não mais aceitar verdades inquestionáveis ou ideias aprioristicamente lastreadas na escolástica.

O método embasado na investigação científica ensinado em Berlim logo apresentou resultados e diversas universidades, nos mais diferentes países, passaram a lançar mão dessa nova proposta, estabelecendo, dessa maneira, a “universidade de pesquisa”. A partir daí, tem-se o marco inicial da universidade como nós a entendemos hoje: centrada na “indissociabilidade entre ensino e pesquisa, liberdade de cátedra e defesa da pesquisa básica desinteressada”.[6]

Passados mais de 200 anos da implementação desse padrão universitário, tem-se uma comunidade científica nacional estruturada e em constantes trocas e parcerias internacionais. Mesmo com línguas e culturas diferentes as práticas científicas são, em grande medida, as mesmas em diferentes partes do mundo, o que permite o contato e a permuta intelectual entre os pesquisadores. Respeitar esses protocolos é fundamental tanto no que diz respeito às práticas científicas quanto às ações políticas que possibilitam a efetivação delas.

Falar a verdade, referenciar a obra de um pesquisador dentro das normas técnicas e atribuir corretamente a autoria de um livro é uma postura basilar na academia. Quando os membros da comunidade científica nacional e internacional percebem que essas boas ações não são respeitadas, colocam tudo que já foi feito na pesquisa sob suspeição. Visto que falar a verdade é algo reconhecido como premissa nas regras do jogo acadêmico. A pesquisa e a trajetória de um pesquisador que não respeite esses procedimentos não é digna de credibilidade científica nem pelos pares e nem pela sociedade de modo geral.

Bolsonaro e seus ministros apresentam uma versão supostamente científica do Governo ao afirmarem que todas as suas escolhas são técnicas. Contudo, não poupam esforços para diuturnamente desrespeitarem a comunidade científica nacional, afirmando, por exemplo, que a universidade brasileira não produz pesquisa e é o espaço da “balbúrdia”. Uma antinomia se estabelece aí: ao mesmo tempo em que parecem desprezar a academia, a ciência, seus protocolos e suas titulações, buscam se legitimar por um discurso pretensamente técnico e científico[7], fantasiando e desejando possuir títulos acadêmicos e reconhecimento científico. Ao mentirem em seus currículos, eles desejam mostrar que possuem credibilidade para efetivar suas ações, que desfrutam do respeito e da confiança que a ciência construiu ao longo de séculos. Entretanto, suas ações e suas mentiras só mostram o que esse governo baseado no autoritarismo radical[8] quer ter, mas nuca terá!

 

 

 


NOTAS

[1] Sugerimos aqui uma volta ao passado mais recente, diferente da volta a 1964 desejada pelo Presidente, pois esse retorno ao final do século XX é   mais condizente com esse fenômeno de massa que Bolsonaro se tornou.  Bastante representativo do atual governo é a parte da música diz: You see my problem is this / I’m dreaming away / Wishing that heroes, they truly exist / I cry, watching the days / Can’t you see I’m a fool? /In so many ways. Tradução: Você vê que meu problema é este / eu estou sonhando / Desejando que os heróis realmente existam / eu choro, observando os dias / você não vê que eu sou um(a) tolo(a)? / De muitas maneiras. Tradução do autor.

[2]  Na reportagem “Decotelli também exagerou seu currículo milita”, a jornalista Thais Oyama, colunista do UOL, afirma que  “Na verdade, Decotelli pertence à categoria da reserva de Segunda Classe da Marinha — é um “RM2”. Isso significa que ingressou sem concurso na Força para prestar lá um serviço militar temporário (no caso do ministro, um período bastante curto). Ao contrário dos militares de carreira, os temporários não passam pelas escolas de formação de oficiais e vão para a reserva sem remuneração….” In:  https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/06/30/decotelli-tambem-exagerou-seu-curriculo-militar.htm?cmpid=copiaecola Consulta realizada em 04/07/200

[3] Obre ao assunto ver: De RIDDER-SYMOENS, Hilde. A History of the University in EuropeVolume 2, Universities in Early Modern Europe (1500-1800). Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

[4] Mesmo sendo indiscutivelmente inovadora a universidade criada no início do século XIX lastreada na pesquisa temos que reconhecer que ela só foi possível pela existência de experiencias previas como a Universidade de Halle fundada em 1694 e a universidade de Göttingen funda em 1734. Sobre o assunto ver: HOWARD, Thomas Alberto. Protestant Theology and the Making of the Modern German University. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 102-135.

[5] TERRA, Ricardo Ribeiro. Humboldt e a formação do modelo de universidade e pesquisa alemã. In: Cadernos de Filosofia Alemã | v. 24; n. 1. p. 139.

[6] Ibid, p.134

[7] Bastante significativo desse apreço anticientífico foi a indicação e a atual gestão do presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, Benedito Guimarães Aguiar Neto que segundo o site G1, afirmou que  “O novo presidente [Aguiar Neto] é defensor do criacionismo, teoria que se baseia na fé na criação divina, ou seja, que Deus criou a vida. Antes de assumir a Capes, Aguiar foi reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. À frente da universidade, ele promoveu eventos para defender a teoria. A comunidade científica refuta o criacionismo”. In: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/01/30/novo-presidente-da-capes-diz-que-vai-priorizar-solucoes-de-problemas-nacionais-em-sua-gestao.g. Consulta realizada em 04/07/2020.   Mais recentemente, a Capes, presidida por Aguiar Neto, apresentou a possibilidade de reduzir áreas na pós-graduação brasileira. Tudo isso sem diálogo com a comunidade acadêmica, sem um debate amplo com a sociedade e em plena pandemia de covid19. Ver: https://congressoemfoco.uol.com.br/educacao/em-meio-a-pandemia-capes-avalia-reduzir-areas-na-pos-graduacao/  Consulta realizada em 04/07/200

[8] GOMES, Angela de Castro et DEVOTO, Fernando J. Le gouvernement Bolsonaro: ni fascisme ni populisme, autoritarisme radical. In: Passés Futurs – Revue – Numéro 7. Disponível em: https://www.politika.io/fr/notice/gouvernement-bolsonaro-fascisme-populisme-autoritarisme-radical  Consulta realizada  em 04/07/200.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Vasconcelos

Organizador do livro História das Ciências: saberes e práticas em análise publicado pela editora Intermeios. Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Mestres pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciência e da Saúde da Fiocruz – Fiocruz/RJ. Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e professor de História da Universidade Estadual de Goiás – UEG.

 

SOBRE OS CURADORES

Aryana Costa

Profa. da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Atua nas áreas de História do Ensino de História e Formação de professores.

Eduardo Vasconcelos

Organizador do livro História das Ciências: saberes e práticas em análise publicado pela editora Intermeios. Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Mestres pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciência e da Saúde da Fiocruz – Fiocruz/RJ. Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e professor de História da Universidade Estadual de Goiás – UEG.


João Maurício G. Neto

Prof. da Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Atua nas áreas de História Moderna e Contemporânea.

Sônia Meneses

Profa. Universidade Regional do Cariri - URCA. Atua na área de História do tempo Presente, História Pública, Teoria da História. Ensino de História, História das Mídias.

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