“Só através da prática do pensamento histórico [filosófico,

literário] é que se aprende a pensar historicamente“.

– R. G. Collingwood.

 

Em tempos de crise política e pandemia, tem-se atribuído à história duas funções gerais, qual seja, mestra da vida e justiceira. As redes sociais estão abarrotadas com essas evocações que desenham uma definição para história que há muito os historiadores vêm tentando desmantelar (Koseleck, 2006; Catroga, 2006). Cabe salientar, que há uma diferença entre pensar as práticas historiográficas em sua relação com a sociedade (os usos da história) e a aquilo que supomos ser de foro reflexivo conceitual; uma teorização sobre natureza da história.

Fica claro, que se por um lado pensar a história é um exercício que corresponde às motivações presentes na maneira como é possível representar a vida, por outro, há também a necessidade de refletir sobre as estruturas internas da ciência histórica. Portanto, de uma teorização que se ancore nas especificidades da produção de um tipo de conhecimento científico sobre o saber-fazer, saber-conhecer, saber-sentir.

Estes conhecimentos são promotores de formas específicas de leitura, experimentação e produção de sentido. Sendo o primeiro saber-fazer, relacionado diretamente à experiência prática acerca de determinada atividade, i.e. relatar a experiência histórica como uma série de fatos orgânicos que exigem uma seleção plena do que é possível ser narrado. Em outras palavras, é a capacidade de desenvolver uma narrativa explicativa que permite o uso de instrumentos necessários a prática historiográfica. No entanto, é exigido mais que uma mera seleção de fatos; esses sujeitos devem estar dispostos a realizar tarefas mentais e intelectuais.

O saber-conhecer, por sua vez, está relacionado à capacidade cognitiva de refletir, descobrir e construir conhecimento a partir do ato de compreender, que por sua vez não é definitivo. Configurando-se como um exercício contínuo de observação, experimentação e apreensão do mundo da vida. Esta capacidade teria como foco a ideia de como permitir e gerar o pensamento enquanto epistemologia, ou seja, ele seria centrado no raciocínio lógico, na compreensão, na dedução e na memória; nos processos cognitivos que permitiriam o desenvolvimento efetivo do conhecimento histórico mas também despertar a vontade de conhecer.

O saber-sentir, é a mais peculiar dessas especificidades; primeiro por ter sido colocado como lugar da irracionalidade, como ação descontrolada, como modo de gestos sem moderação. E segundo por nos permitir atentar para a condição mesma de elaboração do conjunto de sentimentos, relações e valores que estão implícitos na expressão de “sinais sociais”, capturados nos gestos e palavras em momentos históricos.

Dito isso, podemos dizer que pensar a história exige mais que apenas coleta de dados para inserir em uma narrativa controlada, preestabelecida e que produza algum sentido naqueles que fazem e naqueles leem. Pensá-la é desejar saber tudo, é, portanto, “deseja conhecer-se a si mesmo” (COLLINGWOOD, 1981. p.257). E pensar a história como observador enclausurado é sem dúvida, um exercício de autocompreensão, que movimenta emoções e que revogam, de certa maneira, alguns pressupostos metodológicos. Essa condição contemporânea não é uma experiência estranha a intelectuais que experimentaram a situação de isolamento ou recolhimento forçado. Devemos dizer que não estamos comparando nossa situação de lockdown, devido à COVID-19, como se fosse exatamente a mesma experiência de Marc Bloch, Antonio Gramsci, Paulo Freire, Emir Sader, para citar entre os encarcerados e exilados. Pensamos que o sentimento de solidão é o elemento de compartilhamento entre nós e essas figuras históricas.

Edgar Allan Poe descreveu com certa precisão essa vivência em seu The Man of the Crowd (1840), no qual um indivíduo cercado por muitas pessoas percebe-se sozinho, solitário. Como alguém que reside em apartamento, percebemos que é a máxima da solidão, estar cercado de pessoas e ainda assim estar só. Não me refiro a situação de estar sozinho para pensar, como é comum nas Humanidades, nossos companheiros são os livros, as fontes, os arquivos, os documentos. Não é disso que estamos falando, isso é solitude.

Nos referimos aquele momento em que ao se perceber como sujeito no interior da história em movimento, se pega pensando sobre os limites do homem em sociedade. Se por um lado a emergência de uma pandemia, desacreditada por representantes do governo, assusta pela inexperiência de como lidar com um inimigo invisível, por outro, não sabemos como lidar com nós mesmos. As incertezas, as angústias, as memórias em ebulição, renovação e fermentação, nos obrigam a pensar sobre a natureza mesma da história. Estou certo, bem como R. G. Collingwood, de que ela, a história, não é divertimento, mas um ato de autorreferência que deve ser entendida como em duas vias, para si e para o mundo. Ao representar a vida em história escrita, inscreve-se nas páginas, inscreve-se no mundo, dá-se a conhecer, dá-se ao julgamento. E nesse momento em que se reconhece, se autoflagela e se regozija em um sujeito que pensa, que é, e que sente. O autoconhecimento aparece, portanto, como dinamizador das relações que nos cercam, não apenas como estímulo, mas como dinamizador das condições de ser e de sentir a partir dessa irradiação da subjetividade.

Nesse sentido, a história nem é mestra da vida, embora seu caráter pedagógico deva ser levado em consideração, nem é justiceira, pois ela mesma não se interessa em ser justiceira ou tomar partidos, não está interessada em ditar o que é legítimo ou autêntico. Mas ao nos relacionarmos com ela com foro a autocompreensão, estabelecemos o que ela pode dizer sobre nossos interesses e intrigas. É certo que se sua experiência é de um membro da classe trabalhadora sua representação do mundo tem essa coloração, com ressalva ao conceito de consciência de classe, que nem sempre tem adesão. O vivido se tornou abstrato em detrimento de uma existência para salvação do homem mediante sua negação escatológica. Se a história tem algo a nos ensinar é atentar para as condições de possibilidade de existir.

 

 

 


Referências

CATROGA, F. Ainda será a História a Mestra da Vida? Estudos Ibero-Americanos, v. 32, n. 2, 17 nov. 2006.

COLLINGWOOD, R. G. A idéia de história. Portugal: Editorial Presença, 1981.

KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Revisão da tradução de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUCRio, 2006.

NUSSBAUM, Martha Craven. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. Tradução de Susana de Castro, revisão da tradução Malu Rangel. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2013.

PROCHASSON, Christophe. Emoções e política: primeiras aproximações. Varia hist., Belo Horizonte, v. 21, n. 34, p. 305-324, July 2005.

ROSENWEIN, B. H., História das emoções: problemas e métodos. SP: Letra e Voz, 2011 [2010].

 

 

 


Créditos na imagem: Hotel Room, 1931 by Edward Hopper.
https://www.edwardhopper.net/hotel-room.jsp

 

 

 

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