Para xs alunxs com os quais muito aprendi na UFVJM e para Júlia.

 

Primeiramente, é importante começar este texto fazendo a ressalva de que, de forma alguma, falo como um especialista na questão relativa à performatividade de gênero. O desejo de escrever sobre o tema vem da minha experiência como docente no curso de História e Bacharelado em Humanidades da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), que durou cerca de dois anos, tendo sido encerrada no primeiro semestre de 2020. O debate sobre a performatividade de gênero teve lugar assegurado nos cursos de Teoria e Metodologia da História II e Intérpretes contemporâneos do Brasil ministrados por mim, o que tornou possível aprender mais sobre a questão a partir do diálogo com xs alunxs. Lembro aqui especialmente das intensas discussões em sala de aula no curso de Teoria a partir dos textos de Maria da Glória de Oliveira (2018), Joan Scott (2012) e Djamila Ribeiro (2016),[1] assim como dos excelentes seminários apresentados pelxs alunxs sobre Paul Preciado (2014) e Judith Buttler (2003). Já no curso de Intérpretes contemporâneos do Brasil, xs alunxs trouxeram para a sala de aula de forma muito inspiradora a discussão das obras de Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus e Djamila Ribeiro. Para além dos momentos em sala de aula, ressalto também a importância formativa das conversas pelos corredores, cantinas da Universidade e ruas de Diamantina com xs alunxs e outrxs professorxs do curso de História com os quais compartilhei momentos fraternos. A saudade assalta em meio à quarentena. Ademais, a reflexão proposta é fruto dos diálogos constantes e proveitosos com a minha companheira, Júlia, que certamente tem mais experiência de leitura no que diz respeito a esse repertório do que eu. Considerando a importância formativa de todas essas interlocuções, vou me arriscar.

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Em tempos de radicalização da polarização política, parece incontornável a reflexão a respeito do campo de experiências associadas ao conceito de identidade e como a limitação relativa à sua percepção essencialista corrobora contemporaneamente para a consolidação da pós-verdade. Nesse sentido, as discussões contemporâneas sobre gênero e sexualidade são imprescindíveis, pois a resistência à assimilação da performatividade de gênero e a redução da sexualidade ao biológico, representada pelo órgão genital, são fatores determinantes para nos aproximarmos das expectativas ilusórias de conforto narcísico. A resistência ao tensionamento de uma compreensão de identidade naturalizada, fechada em si mesma, se apresenta como uma negação à complexidade da realidade e à possibilidade de diferenciação, sendo tais fatores estruturantes para a disseminação e o consumo da pós-verdade.

Contemporaneamente, professores e pesquisadores, especialmente os dedicados às humanidades, estão vivendo em uma sinuca de bico. Ao passo que é fundamental desconstruir as concepções de verdade universal e incondicionada legada pelos discursos religiosos, desdobradas pelos Iluminismos, nacionalismos e pelos cientificismos promotores da eugenia, vivemos em um contexto de negação radical da ciência. Na era da pós-verdade, tornou-se viável acreditar-se no que se quer, especialmente naquilo que não confronta as próprias verdades pessoais de ordem moral (Cf. KLEINBERG, 2019). Desse modo, as informações válidas passam a ser aquelas que nutrem os preconceitos individuais do consumidor, ou seja, não tensionam o eu narcisista, percepção decisiva para a emergência de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que em grande medida são caricaturas dos preconceitos vigentes em meio aos seus eleitores. Assim sendo, generaliza-se a percepção de que pouco importa se as informações que se recebe no WhatsApp são verdadeiras ou falsas, desde que elas reiterem a minha visão de mundo (Cf. ARAUJO & PEREIRA, 2020).

Partindo desse triste cenário, parece palpável que há uma conexão intrínseca entre a concepção de verdade moral, universal e incondicionada, disseminada pelas religiões, e o fenômeno contemporâneo da pós-verdade. De fato, a pós-verdade se tornou possível pelas condições contemporâneas de distribuição massiva de informações manipuladas pelos interesses políticos escusos de corporações e governantes, no entanto, a base de sua sustentação também diz respeito à crença em uma concepção de verdade universal e incondicionada, tão interiorizada e incorporada que sequer precisa ter correspondência no mundo exterior. Não é à toa que ambos os políticos mencionados são apoiados massivamente em meio a grupos religiosos caracterizados pelo dogmatismo, especialmente por denominações evangélicas, sobremaneira, mas não somente, as neopentecostais.

Joan Scott aponta como a divisão binária e essencialista das concepções de gênero e sexualidade se tornaram mais avassaladoras com o processo de modernização e formação das nações ocidentais, sendo decisivo para tanto a associação das concepções de estabilidade e civilização ao investimento falocêntrico do poder político. A historiadora afirma na palestra Gender, Politics, and Phsychoanalisis, proferida na Universidade de Chicago em 2017, que:

 

A teoria de gênero, se de fato é uma teoria, não nega a diferença sexual. No entanto, a historiciza, considerando que o gênero consiste de articulações históricas, dividindo o masculino e o feminino, com o objetivo de resolver a indeterminação associada com a diferença sexual ao direcionar a fantasia para alguma finalidade política ou social. A contestação dessas articulações suscita não apenas a insistência inflexível sobre a sua imutabilidade, mas uma intensificação do policiamento das normas regulatórias (SCOTT, 2017).[2]

 

A partir de Joan Scott podemos aprofundar o entendimento de que o vocabulário político moderno e as nossas instituições são estruturadas por uma compreensão binária de gênero e sexualidade, que por serem concebidas como verdades imutáveis, relegam corpos e comportamentos não redutíveis a essa ordem como contingências a serem marginalizadas. Ora, é fundamental ressaltar que para Scott a modernidade intensificou o policiamento violento relativo à concepção binária de gênero e sexualidade. Dessa forma, em tempos de pós-verdade e descrédito da autoridade da ciência e dos professores, torna-se fundamental reforçar que a idealização compensatória de valores iluministas, empiristas, cientificistas e modernistas não resolvem as questões ético-políticas a serem enfrentadas no que tange ao binarismo de gênero naturalizado.

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Inevitavelmente, sou assombrado pela memória de pessoas dizerem que não tem preconceito de gênero, uma vez que, por exemplo, já almoçaram com um colega da empresa ou fizeram um trabalho de faculdade com alguém que não se definia como heterossexual. Enfim, exemplos genéricos que doem aos ouvidos, mas que se ouve por aí todos os dias nas filas de banco, nos transportes coletivos e nos almoços de família. Em contrapartida a esse gesto de “tolerância”, reiteram mecanicamente e de forma acrítica os preconceitos que tornaram possível a aceitação massiva do impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff, o assassinato e a banalização da morte de Marielle Franco e as calúnias decisivas para o autoexilamento de Jean Wyllys. Preconceitos que, para além do campo discursivo da verdade religiosa universal e incondicionada, se disseminam nas teias digitais da pós-verdade. Desse modo, não importa o que se diga sobre Dilma, Marielle e Jean, independentemente do que seja, o que aparecer no WhatsApp a esse respeito será verdade. Os méritos deles enquanto políticxs, que, a meu ver, são muitos e não cabe a mim aqui enumerar, sequer são cogitados a serem levados em consideração. Nas teias da pós-verdade, a associação imagética produz respostas interpretativas e ódios instantaneamente. Os memes são provas incontestes de envolvimento com corrupção, tráfico, “kit gay” e “mamadeira de piroca”. Sem direito a qualquer defesa, são caluniados e tachados respectivamente como terrorista, traficante e abusador.

O conceito de tolerância, tão reivindicado em meio aos filósofos iluministas, diz respeito à garantia de liberdade religiosa no âmbito privado, considerada pelos pensadores do século XVIII como o motor do progresso que pretensamente separava o presente de “civilização” do “bárbaro” passado medieval e das sangrentas guerras de religião dos séculos XVI e XVII (POCOCK, 1999; RAMOS, 2019). Entretanto, justamente por limitar a liberdade à esfera privada visando a hegemonia do poder absoluto no espaço público, com o intuito de favorecer a consolidação do Estado (KOSELLECK, 1999), a “tolerância” em questão não é a solução para nós contemporaneamente, faz parte do problema. Desse modo, chamo a atenção para o fato de que quando a performance e afetos reprimidos e marginalizados historicamente ganham publicidade e clamam pelo direito aos próprios corpos e vozes, a tolerância transforma-se rapidamente em intolerância, violência simbólica e física, impulsionada de forma inaudita através das redes sociais.

 A tolerância, princípio iluminista amplamente difundido no século XVIII, por se configurar perante a valorização da privacidade, funciona de forma totalmente diferente do acolhimento à vulnerabilidade, à hospitalidade incondicional, à alteridade absoluta, possibilidades de convivência social e política que se reafirmam teoricamente através dos estudos contemporâneos sobre gênero, da desconstrução, dos estudos pós-coloniais e decoloniais, capazes de evidenciar a impossibilidade do estabelecimento de verdades incondicionadas e universais (BUTTLER, 2003; PRECIADO, 2014; OLIVEIRA, 2018, 2019; RIBEIRO, 2016; MBEMBE, 2017; DERRIDA, 1994; RAMOS, 2018). Com efeito, a interlocução com esse horizonte teórico potencializa a reiteração na prática cotidiana da desconstrução dos papéis de gênero organizados pelas predicações falocêntricas, tidos como inexoráveis e eternos.

Está aberta a possibilidade àqueles que ainda não reviram os seus conceitos e não começaram o seu processo de reeducação o iniciarem o mais rápido possível. Processo de reeducação complexo e repleto de assombramentos. Não estamos no âmbito da revelação religiosa, responsável por predicar o nascimento de um novo “eu”, liberto do passado. Ora, o que se apresenta é a oportunidade cotidiana de assumir uma outra postura ante a alteridade. Aceitar a nossa condição assombrada de sujeitos fraturados implica que o desejo do outro nunca será o espelhamento dos meus e que até mesmo com relação aos meus desejos é impossível ter uma consciência plena, percepção arredia a qualquer possibilidade normatizadora e universalista reconfortantes (RAMOS, 2020). Ante à incomensurabilidade dos desejos, o gesto da “hospitalidade sem restrições” e “alteridade absoluta” é urgente (DERRIDA, 1994, 2007). Imediatamente me vem à memória a fala de Derrida: “Mas quem pretenderá ser justo poupando-se da angústia?” (DERRIDA, 2007: 39). Não existe exercício de alteridade sem a angústia provocada pela imprevisibilidade performada pela diferença.

Estamos chegando inevitavelmente em uma encruzilhada na qual se torna imprescindível a abertura para que as dores do outro sejam ouvidas, acolhidas, performadas e o espaço para a diferenciação tenha dignidade pública. A outra alternativa parece ser a calamidade social, o aprofundamento da violência cotidiana nos enfrentamentos inevitáveis que já acontecem e tendem a radicalizar com a escalada dos fascismos em suas variações bolsonarista e neopentecostal. A “tolerância” iluminista andou de mãos dadas com uma concepção de história que, no limite, era assombrada pela possibilidade iminente da decadência, ou seja, o repertório iluminista sempre foi cético e atormentado pela possibilidade do retorno das guerras de religião. A tolerância iluminista mascara o trauma da violência desenfreada das guerras civis que Bolsonaro, Malafaia e Edir Macedo querem reatualizar. Desse modo, como ressalta Maria da Glória de Oliveira, trata-se de uma demanda premente a tarefa simultânea de “levar a sério as promessas dos direitos universais à dignidade humana e, ao mesmo tempo, desafiar esses mesmos princípios universalistas que produzem amplas exclusões” (OLIVEIRA, 2019: 68).

Chegamos em uma situação em que a tolerância iluminista – constituída em consonância com o escravismo, disseminação de diversas formas de racismo, binarismo de gênero e opressão dos trabalhadores – não é mais capaz de organizar e explicar a realidade. Meus votos é que venhamos assumir a hospitalidade incondicional como um princípio articulador de historicidades democratizantes, fundamentais para a coexistência coletiva e organização política, o que implica na rejeição da possibilidade reiterada de prometer ao vulnerável a tão limitada tolerância e impor de forma avassaladora a precariedade mais extrema. Isso é se de fato for possível um diálogo com os “iluministas” de hoje. Talvez estejamos sendo mais assombrados pelos espectros de fanatismo das guerras de religião dos séculos XVI e XVII do que eu queira acreditar.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BUTTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

ARAUJO, Valdei & PEREIRA, Mateus. Cloroquina ou Tubaína. In.: Jornalistas Livres, 21 de maio de 2010.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

_____. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2007.

MBEMBE, Achille. Critique of Black Reason. Durham: Duke University Press, 2017.

KLEINBERG, Ethan. Pandering to the Timid: The Truth about Post-Truth. Theory Revolt: Wild on Collective, 2019.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999.

OLIVEIRA, Maria da Glória de. A história disciplinada e seus outros: reflexões sobre as (in)utilidades de uma categoria. AVILA, Arthur; NICOLAZZI, Fernado; TURIN, Rodrigo. A História (In)disciplinada:  Teoria, ensino e difusão de conhecimento histórico. Vitória: Editora Milfontes, 2019.

_____. Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais à história da historiografia, História da Historiografia, v. 11, p. 104-140, 2018.

POCOCK, J. G. A. Barbarism and Religion: Narratives of Civil Government. Cambridge University Press, 1999.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. Políticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.

RAMOS, André da Silva. Machado de Assis e a experiência da história: climas e espectralidade. Tese (Tese em História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2018.

_____. Por menos gurus e mais analistas, HH Magazine: Humanidades em Rede, publicado no dia 20 de maio de 2020.

_____. Robert Southey e a experiência da história: conceitos, linguagens, narrativas e metáforas cosmopolitas. 1. ed. Vitória/Mariana: Milfontes/SBTHH, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro para um novo marco civilizatório, SUR 24, v. 13, n. 24, 2016, pp. 99-104.

SCOTT, Joan. Gender, Politics, and Psychoanalysis. Lecture delivered at Chicago University, 2017. [Acessado pela última vez no dia 27 de maio de 2020: [https://neubauercollegium.uchicago.edu/directors_lecture/2017_18_directors_lectures/joan_scott/]

_____. Usos e abusos do gênero, Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, dez. 2012, pp. 327-351.

 

 

 


NOTAS

[1] A escolha de vários textos utilizados foi inspirada no programa do curso de Teoria e Metodologia da História II ministrado pela professora Maria da Glória de Oliveira na UFRRJ, disponibilizado no site academia.edu.

[2] Trecho transcrito e traduzido por mim. A palestra pode ser acessada no link que seque: https://neubauercollegium.uchicago.edu/directors_lecture/2017_18_directors_lectures/joan_scott/

 

 

 


Créditos na imagem: Ensaio. “Call Me Heena”, da fotógrafa Shahria Sharmin. Acessar em: http://shahriasharmin.com/call-me-heena-new/

 

 

 

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