As mais importantes cidades do mundo ficaram irreconhecíveis: ruas vazias, silêncio, ausência de poluição. O clima de apreensão e medo tomou conta, apesar de muitos não acreditarem no poder destrutivo do vírus e nem na ciência. Confinamento obrigatório de semanas, meses. “Fique em casa” transformou-se em um mantra planetário. Caixões sendo transportados como se fossem quaisquer outras cargas. Milhões de rostos de diferentes etnias cobertos com as mesmas máscaras protetoras. Milhões de crianças e jovens sem escola.
Economias paradas, empresas fechadas, milhões de trabalhadores desempregados. Mudança de hábitos: sem apertos de mãos, beijos e abraços. Lavar as mãos passou a ser compulsivo. Fronteiras fechadas, aeroportos vazios, controle sanitário como nuca antes visto, xenofobia, nacionalismo. Países brigando por equipamentos de saúde, enquanto médicos e cientistas lutam para salvar vidas e manter as pessoas em casa. Alguns poucos líderes políticos negam a ciência e pedem o retorno imediato à normalidade. Uma profusão de notícias falsas e curas milagrosas, chamada de infodemia, dificulta o combate ao verdadeiro inimigo, invisível.
Em anos, décadas, séculos, essas imagens serão referência e ponto de partida para quem quiser pesquisar e entender o que a humanidade viveu neste início de 2020. Para além da tragédia e do sofrimento causado pelas mortes, temos o privilégio de presenciar o começo de um novo momento histórico, como argumentaram o historiador israelense Yuval Harari, o sociólogo italiano Domenico de Masi, o filósofo camaronês Achille Mbembe, o professor de Relações internacionais Oliver Stunkel, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, o ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger? Começa, afinal, o século XXI?
Se sim ou se não, ainda não sabemos. É uma tarefa para os historiadores de hoje e de amanhã. Dessa infinidade de aspectos relacionados à pandemia da Covid-19, o que nós, historiadores, poderemos transformar em pesquisa e conhecimento?
Na definição clássica de Marc Bloch (2001), História é tudo que se relaciona com o homem ao longo do tempo. Para Carr (1982), a História é um processo constante de interação entre o historiador e os fatos, o presente e o passado. A partir de campos já estabelecidos na historiografia, o objetivo deste artigo é apontar temas, objetos, enfoques, possíveis fontes de investigação sobre a pandemia.
A forma fragmentada que adotamos neste artigo segue o que José D’assunção Barros define como uma característica da historiografia moderna. A ciência histórica, de forma “cada vez mais explícita e auto referenciada”, vê a si mesma “como um campo fragmentado, compartimentado, partilhado em uma grande gama de subespecialidades e atravessado por muitas e muitas tendências (BARROS, 2004, p. 18).”
Em contraste com essa fragmentação, o coronavírus expôs a imagem da outrora imaginada aldeia global de McLuhan, onde “nenhum homem, nenhum país é uma ilha” (DE MASI, 2020). A partir dessa premissa, é possível que a pandemia nos leve a um novo momento na teoria do conhecimento histórico? A ideia de uma só humanidade, um só planeta, onde relações sociais, políticas, econômicas, culturais e ambientais dizem respeito a cada um e a todos nós (DE MAIS, 2020), levará a uma virada na forma como pensamos, produzimos e divulgamos a História?
A “História em migalhas” – caracterizada pela diversidade de objetos e pela valorização das diferenças culturais (CARDOSO, 1997, p.3) –, cederá lugar a uma História de caráter mais total ou totalizante, universal, em que não há distinção entre econômico, social e cultural (LE GOFF, 2005, p. 35-36), como defendia a primeira geração dos Annales? Esta é outra questão fundamental sobre a qual os historiadores terão que se debruçar. A intenção é iniciar um debate.
A base documental deste trabalho tem um caráter plural: são artigos de opinião, editoriais, reportagens, entrevistas, pesquisas de opinião, artigos científicos. Os autores são brasileiros e estrangeiros, das mais diferentes áreas, como História, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Economia, Ciência Política. O que os une é fazerem referência à pandemia causada pelo novo coronavírus. Todos foram escritos, produzidos e publicados em março e abril de 2020.
Boa parte dessas fontes documentais, no entanto, trata de possibilidade e previsão, do futuro, e não do passado. A História, ao contrário, une os mortos aos vivos, desenrolando a bobina no sentido inverso das sequências, do presente do historiador para o passado que se quer investigar (BLOCH, 2001). A historiografia da Covid-19 está por sei feita, começa a ser feita, e este artigo é uma espécie de pré-projeto. Não se trata de um guia, mais um conjunto provisório de caminhos, indícios e vestígios que os historiadores poderão seguir dentro de alguns meses, anos, décadas e séculos.
Ciência e saúde
Tomando como ponto de partida domínios já estabelecidos, o campo mais óbvio a ser explorado é a História das Ciências e da Saúde. A pandemia apresenta problemas e questões novas: o vírus é novo, não há vacina e nem cura. O nível de isolamento social, em centenas de países e para bilhões de pessoas, é inédito na história.
Há e haverá, portanto, uma série de perguntas a serem respondidas pelos historiadores. Cueto (2020) lembra que as epidemias estão inseridas na longa duração: são cíclicas e sempre expõem a nossa vulnerabilidade. Essa crise é muito mais aguda, segundo Cueto, em função de políticas neoliberais adotadas desde a década de 1980, da destruição ambiental e da negação do direito à saúde para milhões de pessoas. São algumas pistas a serem seguidas.
Mas que outras nuances poderão ser investigadas? Na perspectiva da longa duração, o caminho está aberto, por exemplo, para uma história comparada com a peste bubônica, a gripe espanhola, gripe aviária, H1N1 e outras epidemias (CLETO, 2020; OCAÑA, 2020).
São muitas perguntas a serem respondidas: Que papel desempenharam cientistas e autoridades de saúde? Quais os graus de infecção e letalidade da Covid-19? Como a doença impactou profissionais e sistemas de saúde? Quais foram os principais debates científicos em meio à pandemia? Quais terão sido as divergências entre líderes políticos, cientistas e autoridades de saúde? Como a população se comportou diante do isolamento? Que nível de crença na ciência foi observado, aqui e em outros países?
Pesquisas de opinião divulgadas durante a pandemia certamente ajudarão a compor a base documental de futuras investigações e a responder a muitas dessas dúvidas. Segundo uma série de pesquisas Datafolha, publicadas em março e abril de 2020, quase a totalidade dos brasileiros adultos que possuía celular (99%) tomou conhecimento da doença causada pelo coronavírus. E três em cada quatro (76%) brasileiros avaliavam (primeira semana de abril) que o distanciamento social era importante naquele momento.
Ainda no guarda-chuva da História das Ciências e da Saúde, o que poderá ser dito das curas milagrosas, remédios caseiros, promessas de tratamentos imediatos oferecidos como panaceia, enquanto dezenas de milhares morriam? São aspectos já vivenciados na pandemia da gripe espanhola (ALBUQUERQUE, 2020), que podem ser comparados.
Crise política
Nesta pandemia, ciência, saúde e política mostram-se aspectos da vida ainda mais inseparáveis. Por isso mesmo são tão amplas as possibilidades de pesquisa na História Política.
Se a opção for delimitar o estudo ao que ocorreu no Brasil, alguns pontos serão inescapáveis. Aqui, além da crise sanitária e econômica (comum aos países afetados pela doença), tivemos de enfrentar uma crise política.
A negação da gravidade da pandemia pelo presidente da República, a insistência em reduzir o isolamento social, a defesa do uso de medicamento sem eficácia científica comprovada, atitudes e declarações anticientíficas e contrárias às recomendações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, ampliaram a crise política preexistente (MENDES, 2020; SIDARTA, 2020).
Ficamos isolados no mundo, ao lado dos líderes da Nicarágua, da Bielorrússia e do Turcomenistão, também negacionistas, como explica artigo da revista The Economist.
Pesquisas de opinião dão suporte estatístico e ajudam a dimensionar o tamanho da crise política. No Datafolha divulgado em 3 de abril, por exemplo, a avaliação negativa do desempenho do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia de coronavírus subira seis pontos percentuais. Seguia na contramão do que pensavam os brasileiros sobre o Ministério da Saúde. Como não discutir e investigar o embate público entre o presidente da República e o ministro da Saúde, demito em plena pandemia?
Outra alternativa é usar fontes visuais, como os vídeos dos “panelaços” que ocorreram durante os pronunciamentos oficiais do presidente. Qual o conteúdo e a repercussão desses discursos? Será interessante ainda explorar o humor político em tempos de pandemia, por meio da análise de charges e “memes” difundidos pelas redes sociais.
Ainda pensando em Brasil, a polarização do debate sobre isolamento social e proteção à saúde e às vidas, de um lado, e abertura da economia, de outro, marcou a pandemia. Parte expressiva dessa polêmica ocorreu pelas redes sociais, como mostraram os monitoramentos feitos pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas. Como e até que ponto essa discussão influenciou a tomada de decisões pelo presidente da República, parlamentares, governadores, ministros de Estado?
Aprofundando ainda mais a análise, como se comportaram, durante a pandemia, os grupos ideológicos que marcaram a polarização do cenário político nacional desde as eleições de 2018? Pesquisa divulgada no início de abril indicava que parte dos seguidores do presidente da República, à direita do espectro político, não trocaram o “medo da morte” e o isolamento social pelo apoio a Bolsonaro (PEREIRA, 2020). A queda de apoio ao presidente agravou a crise política?
A correspondente do jornal Folha de São Paulo para a América Latina, Sylvia Colombo, mostrou em uma série de reportagens como os governos e presidentes de Brasil e Argentina trataram a crise sanitária. Caminho aberto, portanto, para uma história política comparada sobre a reação dos dois líderes. Que consequências as ações de cada um tiveram, para a popularidade, os rumos do governo, os processos eleitorais?
Sob o argumento de combater o vírus e usando a tecnologia, países adotaram políticas de vigilância inéditas na história. Na China, o monitoramento de smartphones, câmeras de reconhecimento facial e a medição de temperatura permitiram às autoridades identificar pessoas infectadas, quem teve contato com elas, e assim controlar o movimento/isolamento dos cidadãos (HARARI, 2020). Na Hungria, em função do estado de emergência, o primeiro-ministro Viktor Orbán conseguiu aprovação do Parlamento para governar com base em decretos, por tempo indeterminado.
As necessidades sanitárias exigidas pela pandemia terão gerado menos democracia e crescimento de regimes autoritários? Ou, em sentido oposto, permitiram mais transparência pública?
Geopolítica
No plano da História das Relações Internacionais, há indícios de que a pandemia é um divisor de águas em direção a um mundo pós-Ocidental. O que se vislumbra é a China como potência hegemônica no lugar dos Estados Unidos (STUNKEL, 2020). Que indícios são esses? Por exemplo, a decisão de Pequim de “aumentar a produção de máscaras e ventiladores em meio à pandemia” é “prova da ambição chinesa de preencher o vácuo de poder global deixado por Washington” (STUNKEL, 2020).
Ao contrário da crise financeira de 2008 e da epidemia do ebola, em 2014, desta vez os Estados Unidos abdicaram do papel de liderança global que vêm exercendo desde o fim da Segunda Guerra Mundial (HARARI, 2020). No momento em que concluía este artigo, o presidente Donald Trump anunciou a suspensão da ajuda financeira à Organização Mundial da Saúde, fortalecendo ainda mais essa hipótese.
E o Brasil, alinhado política e ideologicamente aos Estados Unidos, mas economicamente dependente da China, como foi atingido pela nova dinâmica da política externa e nas relações comerciais? Como o Ministério de Relações Exteriores agiu durante a pandemia?
Os que estudarem esse momento pelo viés da diplomacia terão obrigatoriamente de discutir se e como os insultos contra os chineses proferidos pelo filho do presidente e deputado federal, Eduardo Bolsonaro, e pelo ministro da Educação afetaram a nossa relação com a China. Enquanto eles repisavam a teoria da conspiração do “vírus chinês”, os Estados Unidos enviavam aviões cargueiros para trazer da China “máscaras, ventiladores e demais insumos médicos necessários ao enfrentamento da pandemia do Covid-19” (KALOUT, 2020).
Para Kissinger (2020), “os líderes estão lidando com a crise em uma base amplamente nacional”, diante de um vírus que não reconhece fronteiras. O que gera outros questionamentos. O mundo terá caminhado em direção ao nacionalismo, ao fechamento das economias e das fronteiras, ou daqui a 10, 50, 100 anos vamos estudar uma nova “visão colaborativa global” (KISSINGER, 2020), um “espírito de cooperação e confiança global” (YUVAL, 2020), nascido da pandemia? A China terá se tornado hegemônica, mas assentada em um modelo de soft power (STUNKEL, 2020)?
Importantes também serão os estudos sobre a União Europeia. Como o bloco, modelo mais bem-sucedido de cooperação internacional ao longo de décadas, terá saído desta crise? Conseguiu conciliar visões divergentes – que opunham países fortemente afetados pela pandemia, como Itália, Espanha e França à Alemanha –, sobre a melhor forma de manter o bloco em pé e recuperar a economia (MASS; SCHOL, 2020)? Ou a pandemia intensificou conflitos internos que já abalavam a integração, como a crise financeira de 2008, e mais recentemente a dos refugiados e o Brexit?
Grande Depressão
Na trilha da História, há alguns que vão seguir o inevitável caminho da economia. Para muitos analistas, a convulsão política e econômica gerada pelo novo coronavírus poderá ser sentida por gerações (KISSINGER, 2020). Será confirmada a previsão de que viveremos a pior crise do capitalismo dos últimos 100? O Fundo Monetário internacional (FMI) classificou como “a pior crise econômica desde a Grande Depressão” de 1929.
Outros tantos a chamaram de economia de guerra. Líderes políticos e economistas liberais defenderam um novo Plano Marshall para recuperar economias devastadas, evitar a falência de empresas, garantir milhões de empregos, salvar bancos, manter o sistema capitalista funcionando. Somente nos Estados Unidos, no período de três semanas de pandemia, entre março e abril, cerca de 16 milhões de trabalhadores solicitaram o seguro-desemprego. A resposta veio com a aprovação de 2 trilhões de dólares, considerado o maior plano de resgate econômico da história do país.
Nesse cenário de terra arrasada, o debate que se estabeleceu foi sobre a necessidade de intervenção do Estado na economia. Para a professora Ângela Alonso (2020), em tempos de pandemia, “nenhum governo pode se dar ao luxo de ser liberal”.
Em editorial do dia 3 de abril, o jornal britânico Financial Times defendeu o estabelecimento de um novo contrato social em benefício de todos. Prega a urgência de reformas radicais, que invertam o modelo de política econômica das últimas quatro décadas, com papel mais ativo dos governos. Os serviços públicos deverão ser tratados, nas palavras do FT, como investimento, o mercado de trabalho deve ter mais garantias, e medidas vistas até então como “excêntricas”, como renda básica e impostos sobre a riqueza, terão que integrar políticas públicas pós-pandemia.
Assistiremos ao surgimento de um novo Estado de Bem-Estar Social, um neokeynesianismo? Na perspectiva da longa duração, é mais uma crise do capitalismo, demonstrando novamente a capacidade de adaptação e renovação do sistema? Que semelhanças e diferenças pode-se estabelecer com a crise de 1929 ou o pós-Segunda Guerra Mundial?
A cidade, a casa e a rua
Na História Urbana e do Cotidiano, como não investigar a transformação repentina na paisagem das grandes cidades do Brasil e do mundo? Quais as condições de confinamento, segundo as cidades, bairros, classes sociais? Em que situação os pobres, moradores das periferias e das favelas enfrentaram a pandemia? Novamente, as pesquisas feitas durante a crise são referências importantes sobre caminhos a seguir.
Estudo do Data Favela/Instituto Locomotiva, feito em 269 favelas de todos os estados e divulgado em abril, ajuda a entender o que já se sabia sobre a desigualdade social no Brasil e que a pandemia escancarou. Segundo a pesquisa, 80% dos entrevistados afirmaram que a renda caiu. Seis a cada 10 pessoas disseram não ter dinheiro para ficar mais de uma semana sem trabalhar. Reportagem do jornal Folha de São Paulo, de 5 de abril, traduz o drama desses números: “Crianças acostumadas com até cinco refeições por dia na escola — hoje paralisadas devido à quarentena — têm dietas pobres que podem se resumir a arroz puro.” O que ocorreu com essas famílias durante e após a pandemia?
E com os ambulantes e trabalhadores informais das ruas, esquinas e calçadas? Como eles sobreviveram à hibernação da economia? Que atividades foram mais afetadas? E os que viviam nas ruas, para onde foram, o que fizeram, qual o percentual de infecções e mortes nessa população? Como a pandemia afetou a atividade de prostitutas, artistas de rua, motoristas de aplicativo? O que foi feito, afinal, das almas encantadoras das ruas?
Para além do espaço público, parte importante do cotidiano está reservada à vida privada. Com o isolamento social, a casa ganhou novas dimensões. Que mudanças houve na rotina, nos horários, na divisão das tarefas domésticas, levando em conta diferentes grupos e classes sociais? Que conflitos familiares foram exacerbados pela convivência forçada? Como crianças e idosos foram afetados pela nova dinâmica? Como era e como ficou a situação econômica da família? Que papeis homens e mulheres exerceram, em casa, durante o confinamento? Como conciliaram trabalho e casa?
De Mais (2020) responde a algumas dessas perguntas e pode ser ponto de partida para quem optar por pesquisar a História Vida Privada na pandemia. Ele lembra que a sociedade industrial, marcada pela divisão do trabalho e dos espaços, nos acostumou a passar a maior parte do tempo com chefes e colegas de serviço. O vírus, ao contrário, nos trouxe de volta para casa, fomos levados a convivências forçadas, agradáveis para uns e opressora para outros. Para o sociólogo italiano, alguns conseguiram transformar o momento depressivo em ócio criativo, aliando estudo, trabalho, leitura, entretenimento. Essa tendência se confirmará após a fase mais aguda da doença? Há muitas lacunas a serem preenchidas.
Infodemia
Tão perigosa quanto o vírus, a infodemia é uma marca da crise sanitária. O alerta sobre o excesso de informações e notícias falsas, teorias da conspiração, curas milagrosas e negacionismo científico partiu da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse, talvez, seja o tema mais visível para pesquisar, no campo da História da Comunicação, da Imprensa, das Humanidades Digitais.
De onde surgiu, quem produziu, como foi difundida, qual a recepção e o impactos da desinformação? No Brasil, o que já se sabe, por meio de pesquisas, é que as redes sociais foram o principal meio de difusão de boatos, teorias infundadas, remédios sem eficácia comprovada. E políticos foram a origem de parte significativa dessas notícias falsas.
Um estudo da agência de checagem Aos Fatos revelou que, de 1.500 postagens publicadas no twitter sobre o novo coronavírus, entre fevereiro e abril, cerca de 10% eram fake news. As mentiras foram disseminadas por 22 senadores e deputados federais, entre eles um médico. Os temas mais abordados foram: o questionamento das medidas de isolamento, a propaganda da cloroquina como cura para a infecção pelo novo coronavírus, e a comparação equivocada da Covid-19 com a gripe.
As notícias falsas não são novidade na História e nem nas crises sanitárias. Elas também circularam durante a epidemia de gripe espanhola no Brasil, em 1918, e durante a peste negra, que assolou a Europa entre os séculos XIV e XVII (ALBUQUERQUE, 2020). Está aberta, portanto, a possibilidade de mais um estudo comparado, tendo como objeto a falsificação da realidade em diferentes pandemias.
Por outro lado, a infodemia nas redes sociais pode ter levado parte da população a retomar a confiança em veículos de comunicação tradicionais e no jornalismo profissional. Como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão trataram a pandemia? Qual o papel e a relevância desses meios de comunicação tradicionais nessa crise sanitária? Como traduziram temas científicos e de saúde tão complexos para a população?
Mathias Alencastro (2020) afirma que “no Brasil e no mundo, a pandemia ressuscitou a televisão.” Redes de TV como Globo, CNN e BBC aumentaram a audiência e, segundo Alencastro, os canais voltaram a ser formadores de opinião pública, com papel relevante durante a pandemia. Aqui, pode-se pensar em análises de conteúdo, de audiência, de recepção, comparação com outras crises sanitárias recentes, como a do H1N1 e a do HIV, entre emissoras de diferentes países. Como essas emissoras cobriram outras pandemias? Elas recorreram a reportagens de cunho histórico e a historiadores para ajudar a explicar a historicidade das doenças?
Conclusões
Por que a quantidade de perguntas, neste artigo, é muito maior que o número de respostas? Recorro a Marc Bloch, para quem o ofício de historiador requer, entre outras habilidades, inquirir exaustivamente os documentos, fazê-los falar. Se mal conhecemos o vírus, se os documentos e vestígios da era da pandemia ainda estão sendo forjados, como avançar para o futuro, que não é objeto da história?
“Todo mundo que diz que sabe o que vai acontecer está equivocado”, alerta a historiadora Lilia Schwarcz (2020). Mbembe (2020) segue raciocínio semelhante: “A humanidade está em jogo. O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida.”
Apesar de estarmos vivenciando a pandemia e por isso mesmo a dificuldade de estabelecer o distanciamento necessário para a análise histórica, Schwarcz (2020) ressalta que há um mundo antes do coronavírus e outro pós-pandemia. Para ela, é uma “temporalidade diferente”, na qual a vida que levávamos já não existe mais. Não conseguimos sequer planejar dias ou meses à frente. Essa temporalidade é vivida de formas variadas, se você é idoso, criança, pobre, negro, mulher, se vive no Brasil, na Alemanha, na China ou nos Estados Unidos.
Ao traduzirmos o que diz Lilia Schwarcz para o conceito de história-problema (LE GOFF, 2005, p. 44-46), é perfeitamente defensável a hipótese de que a pandemia nos apresenta novas relações sociais, econômicas, culturais e temporais. Para o fazer historiográfico, são novos temas, problemas, objetos de estudo, na relação dinâmica e indissociável entre presente e passado. Obviamente eles estão em construção e são os historiadores quem deve buscá-los e encontrá-los.
As possibilidades de pesquisas sobre a pandemia do coronavírus, portanto, estão abertas. A intenção deste artigo é apontar caminhos para uma historiografia da Covid-19. Outros domínios, que ficaram de fora desta análise ou foram apenas tangenciados, a exemplo da História Ambiental, das Mentalidades, do Trabalho, das Religiões, das Mulheres, das Crianças, da Educação, do Corpo, podem ser combinados com múltiplas abordagens e dimensões.
José D’Assunção Barros (2004, p. 18) compara a historiografia atual com um oceano “povoado por inúmeras ilhas, cada qual com a sua flora e a sua fauna particular”. A metáfora biológica não poderia ser mais apropriada para o momento. O vírus nos mostrou que as fronteiras que criamos são tão artificiais e imaginárias quanto a forma compartimentada segundo a qual pensamos e escrevemos o passado.
Isso não nos permite afirmar, no entanto, se haverá ou não uma revolução na história da humanidade, e muito menos na historiografia, em direção a um modelo menos fragmentado. Mas se a História continuar a ser feita como hoje, sem dúvida pode-se reivindicar um novo domínio ou campo, o da História da Covid-19.
REFERÊNCIAS
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