Chegado o Bicentenário da Independência, gostaria de retomar a análise de uma obra sobre a qual já tive a oportunidade de falar outras vezes, em contextos diferentes. Sessão do Conselho de Estado que decidiu a Independência, da pintora, desenhista e professora brasileira Georgina de Albuquerque (1885-1962), é uma obra que, assim como tantas outras, remete às celebrações em torno da Independência do Brasil e que vêm sendo, por este mesmo motivo, objetos de pesquisa e discussões em todo o País. O que ocorre é que, à medida em que nos aproximamos cada vez mais dos 200 anos da Independência, soma-se o momento de grandes tensões sociopolíticas, tornando necessária a reflexão acerca do uso público de símbolos e imagens do passado que, como trará Santiago Júnior (2019, p. 432), surge como um agenciamento disputado em diversos campos culturais; este agenciamento, não por acaso, está estreitamente ligado às relações de poder na sociedade.

O alarde está, justamente, na alta frequência com que estes elementos simbólicos vêm sendo distorcidos em favor de uma ou outra visão, quase sempre distante da ideia de progresso, cidadania e democracia para todos. Para o caso do uso de imagens, sobretudo imagens ou obras que tratem de episódios históricos, o cuidado inclui o estudo amplo de simbologias e recursos iconográficos, além de noções ligadas à construção de discursos curatoriais ou de mediação, por exemplo. Estes cuidados têm a ver principalmente no modo como se apresenta ao público a imagem; Valdei Lopes (2017, p. 213) aponta a necessidade do historiador de atuar enquanto curador, isto é, participar na “comunicação, circulação e democratização do direito à história”. Este aspecto de estudo dos discursos e práticas curatoriais se aplica tanto ao contexto de produção e circulação da obra estudada, quanto à contemporaneidade e as formas como a mesma imagem precisa chegar ao público, levando-se em consideração a pesquisa historiográfica.

Georgina de Albuquerque, artista plástica nascida em Taubaté (SP), tem em Sessão do Conselho de Estado o momento em que sua trajetória profissional alçou um novo nível, de maior prestígio e consolidação. A obra, produzida ao longo de 1921 e início de 1922, exigiu de Georgina alto empenho em pesquisas no Arquivo Nacional e no Museu Histórico Nacional. A prática da pesquisa em museus e arquivos era comum aos artistas que se dedicavam à pintura histórica, uma vez que a narrativa imagética deveria ser construída com máxima fidelidade aos relatos encontrados nas fontes analisadas. Ainda sob a função didática e moralizante, a pintura histórica ocupava o centro das atenções e aspirações entre estudantes de arte, público e crítica, e seus critérios de avaliação tendiam a ser mais rigorosos – o ou a artista deveria ter na ponta da língua a resposta para eventuais questionamentos acerca dos símbolos utilizados, e a veracidade residia nas fontes, mesmo que sem o uso de uma leitura crítica. Para as mulheres, o gênero pintura histórica representava um desafio duplo: como inserir-se num meio onde o conhecimento da anatomia humana, restrito aos homens, desempenhava papel central para a pintura? E, para além disto, como adaptar-se às rígidas exigências e avaliações feitas por professores, público e crítica?

Ana Paula Simioni (2002) pontua que poucas mulheres se mantiveram neste desafio; por pressões internas ou externas. A própria Georgina de Albuquerque relatou em entrevista a Angyone Costa que muitas de suas colegas, embora extremamente talentosas, ainda não se encontravam preparadas para as avaliações rigorosas; por vezes, o fator gênero se inseria nestas avaliações, como nos casos em que a crítica quase não se ocupava da ala feminina nos salões, dedicando maior tempo aos homens. Georgina, no entanto, representa a parcela de artistas que seguiu apostando em sua autonomia intelectual e artística. Sessão do Conselho de Estado traz em sua composição aspectos que evidenciam esta intenção por parte da artista, além de dialogar com as questões sociopolíticas que tomavam corpo na sociedade brasileira.

O ano de 1922, para o campo artístico representava, ao mesmo tempo, a emergência de toda uma nova perspectiva de se fazer e pensar a arte, com a Semana de Arte Moderna, e a reafirmação de cânones e já estabelecidos, com as Exposições de Arte Retrospectiva e Arte Contemporânea, ambas realizadas na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), como parte da Exposição Universal do Centenário da Independência. As celebrações do centenário giravam em torno de uma ideia de um Brasil moderno e europeizado, no sentido de que as culturas afro e originárias logo seriam “civilizadas”. Assim, a cultura europeia representava o progresso, a modernização e, nestas celebrações, a garantia de validação das produções brasileiras frente aos países europeus. A partir deste discurso, toma lugar a elogiada Exposição de Arte Retrospectiva, com obras de artistas como Victor Meirelles e Pedro Américo, e a Exposição de Arte Contemporânea, que dividiu opiniões por se tratar, justamente, de artistas, técnicas e narrativas mais distantes daquelas apresentadas na divisão dos grandes mestres, embora também buscassem reafirmar ideários gloriosos a respeito da História do Brasil. É aqui, na seção de Arte Contemporânea, que Georgina apresentará pela primeira vez ao público a obra Sessão do Conselho de Estado, que também dividirá opiniões por mesclar elementos inéditos às narrativas em torno da Independência com outros já bastante explorados pela pintura histórica.

Começando pelos apontamentos icnográficos, a presença da técnica impressionista, pela qual Georgina se tornaria bastante conhecida e prestigiada, é um primeiro ineditismo da obra; o uso da luz é feito através da predominância de tons quentes, sugerindo acolhimento e movimento. As pinceladas mais dispersas ao fundo reforçam que as figuras humanas são o centro da narrativa, sendo mais trabalhadas em seus detalhes. Além disto, trata-se de um cenário interior, uma sala, e não de um ambiente ao ar livre – predominante nas obras impressionistas, uma vez que o estilo buscava aproveitar a luz natural. Assim, a composição de Georgina traz especificidade de ter sua luminosidade e sombras trabalhadas de modo diferenciado da pintura plein air. A única figura feminina apresentada é D. Leopoldina, e a posição de seu corpo indica ainda um lugar de poder dentro da cena. Próximos à princesa encontram-se outras personalidades de grande relevância ao episódio da Independência, como José Bonifácio.

Aqui podemos listar mais alguns pontos inéditos, já pontuados por Simioni e outras pesquisadoras: Sessão do Conselho de Estado representa uma cena diplomática, e não uma cena de batalha, perspectiva tão comum a este episódio na História da Arte no Brasil. Considerando-se os recursos simbólicos e iconográficos empregados pela artista, a figura de maior autoridade e, portanto, de heroísmo é a da princesa Leopoldina, única mulher na sessão. Este aspecto, inclusive, seria um dos questionamentos feitos pela crítica no sentido de que as figuras masculinas, sobretudo José Bonifácio, deveria ter sido representado com maior autoridade. A escolha de Georgina pela composição da tela, entretanto, não se deu ao acaso; ligadas às suas pesquisas em arquivos situam-se as movimentações feministas que começavam a ganhar coro no Brasil. Assim, é possível, tal como já apontado por outras historiadoras e sociólogas, que tenha havido também a identificação entre a artista e a representada; Dona Leopoldina era conhecida por ter recebido importante formação política, científica e artística, aplicando-as à sua participação no governo. A questão da autonomia e da intelectualidade permite a ligação entre a princesa, Georgina e as mulheres que então iniciavam um importante movimento de valorização desta autonomia e independência.

É importante ressaltar que, embora neste mesmo ano tenhamos a publicação do catálogo da Exposição Universal – o Livro de Ouro do Centenário da Independência, analisado no último texto desta coluna e que traz a tentativa frustrada de afirmação de diversos cânones e preconceitos, a presença de Georgina e de sua obra na Exposição de Arte Contemporânea ensaia o que Anita Malfatti e Tarsila do Amaral também já buscavam através de suas atuações: a afirmação da autonomia e emancipação profissional das artistas brasileiras. Sessão do Conselho de Estado ganhou a principal premiação oferecida na Exposição, uma aquisição pública por parte do governo. O critério central para a escolha era o de que a obra deveria ser a que melhor representasse o momento da Independência e as comemorações do Centenário. A escolha pela obra de Georgina, ainda que acompanhada de conceitos e ideários que se focavam em um passado glorioso não existente e em aspirações elitistas para o futuro, foi importante para maior visibilidade não apenas da obra e da narrativa imagética proposta, onde a figura feminina é a figura na qual reside a atuação principal, como também da visibilidade da própria artista. O período que se segue após 1922 é repleto de grandes feitos na trajetória Georgina de Albuquerque, entre premiações, cargos de grande relevância e representações do Brasil no exterior.

Como conclusão, podemos trazer em pauta a dualidade da obra quando levamos em conta a sua narrativa e o seu contexto de produção. Embora estejamos falando de uma imagem que, superficialmente, afirma ideais e cânones um tanto quanto semelhantes aos de outras pinturas históricas da Independência, fazendo uso da presença de elementos e figuras conhecidas por sua participação na mesma, trata-se de uma obra que, quando trabalhada com a devida atenção aos aspectos historiográficos, possibilita uma série de novos questionamentos e discussões. O uso do passado, neste caso, necessita e deve ser explorado sob chaves de leitura que permitam esta identificação de pormenores que representam uma grande mudança na construção discursiva das pinturas históricas no Brasil, bem como uma parte importante das novas formas de atuação sobre as quais as artistas e estudantes de arte tomariam frente após 1922, tanto pela dita arte acadêmica quanto pela arte moderna.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Livro de Ouro Commemorativo do Centenário da independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro – 1822 a 1922/23. Rio de Janeiro: Almanak Lambaert. [livro] Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/bndigital0447/bndigital0447.html#page/1/mode/1up

LOPES, Valdei Araújo. O Direito à História: o(a) historiador(a) como curador(a) de uma experiência histórica socialmente distribuída. In: GUIMARÃES, Géssica; BRUNO, Leonardo; PEREZ, Rodrigo (orgs.). Conversas sobre o Brasil: ensaios de crítica histórica. Rio de Janeiro: Autografia, 2017. p. 191-216.

SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. A virada e a imagem: História teórica do pictorial/iconic/visual turn e suas implicações para as humanidades. Anais Do Museu Paulista, São Paulo, v. 27, p. 1-51, 2019.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Entre convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 2002, vol. 17, nº50. P. 143-185.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Georgina de Albuquerque – o impressionismo e suas derivações. Templo Cultural Delfos, junho/2013. Acesso em 28 de agosto de 2022.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “307”][/authorbox]