Torto Arado é uma expressão já na boca da muda Belonísia. Já é um sonho dela, uma ideia em que ela pensava sobre o som do Arado. Ela lembrava e sonhava com esse arado que era meio torto, era do seu pai trabalhando na terra de outras pessoas, trabalho de agregado que, atualizando a escravidão, formou a mão de obra brasileira. Mas Belonísia gostava do som da palavra e talvez de alguma coisa que lhe remetesse à criação, à plantação, à vida.
Belonísia é personagem do romance “Torto Arado”, tem uma irmã, Bibiana , um pai e uma mãe. Depois chegam sobrinhos, filhos e netos pertinentes. O pai, Zeca Chapéu Grande e a mãe, Salustiana, são personagens essenciais na história. Mas não é meu papel contar a história já contada. Esta está disponível e é de fácil acesso.
Torto Arado, livro de ficção realista sobre o Brasil atual de já algum tempo. Alguma coisa ali nos anos 1950-1980, em que a caminhonete Ford concede o marco temporal. Situação rural, verdade maior brasileira que parece apenas servir para teses clássicas que, entretanto, não sensibilizam o dia a dia da vida corrida cotidiana mais ou menos citadina do leitor.
Romance contemporâneo. Ficção de um tempo longo e recente. História brasileira. Grande lacuna, esquecimento, desfaçatez, coisa sobre o que não se fala: história brasileira que poderia ser chamada história do campo do Brasil. Essa é uma tese bastante relevante. Mas de difícil articulação no debate público. Até porque o público vive nas cidades maiores ou menores, tanto faz, e esses assuntos parecem coisa de menor conta. Coisa não relevante ou curiosa. Ainda que economicamente (e culturalmente) seja a base nacional.
A história recente nesse campo envolve ligas camponesas, sindicatos rurais, luta pela terra, movimento dos trabalhadores sem terra, e, já há muito tempo, lutas indígenas, quilombolas e consolidação do poder econômico rural. Lei de terras (1850). O conflito aberto e realista da questão agrária no Brasil. A classe latifundiária é mandatária da política brasileira desde que existe Brasil “independente”. É uma situação explícita do conflito essencial que funda a realidade brasileira. Uma situação dentre várias outras passíveis de exposição de um fenômeno recorrente. Um eterno presente ou retorno brasileiro.
Mas nós temos de falar de um livro, um romance. Por que falar dessas outras coisas? Porque é disso que trata o livro. Mas é um livro de história ou romance? Essas coisas são incompatíveis? Com certeza não são. Mas é uma mistura difícil de se realizar. De qualquer forma, a história e o romance (ficção realista) caminharam juntos nos últimos dois séculos pelo menos, as vezes brigando, as vezes disputando o material passado, a história, a memória, ou seja, o tempo como orientação, como sentido para vida presente.
Muito bem. E o Torto Arado? Livro que deve ser lido. Especialmente por quem não conhece minimamente a história do Brasil colonial e independente, do pós-abolição da escravidão, a história da literatura brasileira, a história cultural do Brasil e, também, a história das artes daqui e de fora daqui. É um livro didático. E também deve ser lido por quem navegou por esses mares mencionados. É um livro necessário e, notadamente por sua recepção amplamente positiva, deve ser debatido, pois há muitas razões para sê-lo.
Importante portanto. O didatismo nada tem que ver com o pedantismo ou a paternalização. Pelo contrário, cumpre função nos debates públicos e discussões na cultura acerca de orientações legítimas na história pública.
O livro Torto Arado, assim, atinge a formação brasileira como tese. Opressão, resistência, conformações e impossibilidades. Impossível estabilização. É um romance de tese. Só existe uma voz: a do narrador. Todos personagens falam da mesma maneira, mesmo os espíritos ou encantados. Mesmo a muda Belonísia. Ela pensa na mesma linguagem. O livro transmite uma ideia clara (e historiograficamente verdadeira) sobre realidade rural no Brasil e acomodação violenta do pós-abolição ou escravidão continuada. Acomodação violenta é um contrassenso em si que parece ser a realidade desse país. E é.
Romance de tese. Talvez de testemunho. Ou de testemunha. Torto Arado é livro didático. Deveria ser adotado no ensino básico. Certamente criaria empatia nos citadinos brasileiros sobre a realidade maior desse país. Romance com função. Livro importante.
Créditos na imagem: Divulgação. Capa da edição brasileira, lançada pela editora Todavia.
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