Ao falar sobre a diferença entre os homens, Schopenhauer dividiu a sorte dos mortais em três determinações fundamentais: o que alguém é, o que alguém tem e o que alguém representa. Deixaremos as duas últimas de lado e pensaremos na primeira e mais importante, o que alguém é. Mais importante porque dá sentido e valor às nossas vivências e às nossas determinações. O que somos e sentimos direciona todos os nossos juízos diante das muitas mudanças que vivemos no nosso cotidiano. O mundo é, de fato, movimento. E nessa linha, calar e falar são escolhas diferentes do agir mas pertencem a uma só natureza: a atitude. Escolhemos o momento e a forma com que manifestamos os nossos sentimentos de modo que tudo o que imprimimos é produto do que sentimos e acreditamos, e assim é produto de quem somos. Estamos a todo e qualquer momento escolhendo, desde o grito que explode ao silêncio que estanca.

Essa noção atravessa nossas vivências de uma maneira tão sutil que por vezes não refletimos sobre a intensidade que sentimos as emoções por acharmos que faz parte da nossa personalidade explodir pelo mínimo ou calar diante da barbárie, o que pode nos levar a dois extremos nos fazendo pessoas temerárias ou temerosas. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles já nos falava que a ética é um constante exercício intencionado e refletido em que o homem busca a justa medida pelo caminho da prudência. Não age de forma ética quem teme em excesso ou quem age de maneira temerária sem exercitar a razão. Podemos pensar que em muitos momentos o silêncio é a melhor resposta, mas em outras circunstâncias pode ser ele a pior das palavras. Do mesmo modo, o grito pode anunciar a injustiça assim como encerrar o diálogo.

A forma que agimos e reagimos diante dos acontecimentos parte de quem somos, no entanto não somos telas terminadas. Tomando em nossas mãos os pincéis da criação projetamos nossa persona, nosso Eu, como uma entidade transcendental que conserva todos os traços das ações acumuladas por anos afirmando a impossibilidade de mudança e dizemos com toda certeza “faço isso porque eu sou assim!”. O que não é refletido é que o ato de não mudar é também uma ação intencionada, e o repouso é também parte da construção de quem somos. Mas não somos de autoria única, e sim múltipla. O processo de produção do sujeito, ou assujeitamento, parte por algumas vias que necessariamente tocam questões de gênero, raça e classe. Recordamos aqui a filósofa Ângela Davis que nos acorda para questões que, se não abordadas, torna a leitura da sociedade superficial. Se fôssemos produtos prontos não viríamos emergir na sociedade uma grande mudança de ethos ou questionamentos sobre a própria disposição social. É com a consciência de que somos politicamente situados que proponho de forma subjetiva um exercício meditativo, ou como o filósofo Thiago Teixeira escreve em seu livro, uma ética inflexiva.

Assim como o mundo exterior a nós é movimento constante, nós também o somos. Para organizarmos melhor nossas ações diante das inúmeras aporias que enfrentamos no decorrer de nossas vidas devemos organizar os nossos juízos. Penso que a beleza da arte não parte das vivências grandiosas do artista, mas sim da maneira com que ele tem em si suas inclinações e princípios organizados e a partir dessas concepções produz uma rica ou pobre obra. Guimarães Rosa em muitos de seus contos não narra acontecimentos espetaculares, mas a forma com que ele transcrevia suas percepções diante das mais comuns cenas engrandece até mesmo o movimento da pena do pássaro que naturalmente cai sobre o chão.

Se pensarmos como Epicteto, percebemos que tudo no mundo se divide entre coisas que podemos controlar e coisas que estão fora do nosso alcance. Logo, as que podemos controlar podem ser boas e más, as que não podemos controlar são indiferentes (adiaphora). No entanto, a indiferença aqui não significa algo sem importância, mas sim algo que não temos escolha, acontece independentemente das nossas vontades. Não devemos ignorar o que não controlamos, mas agir a partir do que nos cabe e do que podemos escolher, pois o acontecimento é indiferente, a forma com que lidamos com ele, não. Sendo assim, devemos refletir se o ódio que sentimos e expressamos diante do incontrolável não nos é ainda mais nocivo se juntado ao acontecimento. A ira mal direcionada pode nos cegar em muitos momentos e tapar nosso raciocínio nos impedindo de achar a melhor saída pelas vias que temos escolha, ou nos induzir ao erro de que ela por si já é a resposta.

Nas últimas semanas percebemos dois movimentos que exigem uma mudança de ethos e a construção de novos questionamentos sobre as relações sociais: o primeiro e mais explícito é momento de reclusão social devido à pandemia pelo novo coronavírus, que nos faz interiorizar novos hábitos como o uso de máscaras sem que tenhamos um tempo para adaptação; o segundo e mais velado é a percepção de preconceitos que por séculos adentraram as relações sociais e políticas de forma estrutural e escondida sendo escancarados sem deixar marcas de vergonha no rosto de quem dissemina e pratica o ódio às minorias. O primeiro evidenciou o segundo quando trouxe a vista do mundo que em meio à pandemia muitos grupos sociais temem mais o Estado à doença. Nas redes sociais explodiram correntes antifascistas de pessoas que se dizem indignadas e raivosas diante das injustiças e desigualdades que foram desmascaradas nesse momento.

No entanto, essa raiva sentida e manifestada nos meios digitais não diz respeito a uma mudança de algo que está sob nossos domínios, mas o que fazemos diante desses últimos acontecimentos diz. Sabemos que nossas ações são produtos do que somos, então é necessário que pensemos a partir das nossas escolhas para construirmos ideais novos e garantirmos os nossos direitos e os direitos do outro. Os preconceitos não se manifestam sempre em grandes eventos de uma barbárie incontestável, muitas vezes acontecem de forma velada nos pequenos atos vindos de desconhecidos, mas também de amigos e familiares. É necessário que fiquemos atentos ao nosso cotidiano e percebermos que a política deve ser instrumento de proteção a todos. Nem todos os grupos sociais ficaram surpresos com o racismo acusado nessas últimas semanas, tem muita gente falando sobre isso há muito tempo.

A filósofa brasileira Djamila Ribeiro tem falado e escrito sobre as várias formas de preconceitos velados e escancarados e não está só na causa. Junto dela percebemos vários nomes como Joice Berth, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Silvio Almeida, Ângela Davis, Adilson Moreira, entre outros. Para além dos textos, não percebemos uma diversidade de preconceitos estruturais no nosso cotidiano porque desaprendemos a ver e desacostumamos a ouvir. O título dessa reflexão é um convite a olharmos para dentro de nós e assim podermos agir melhor no mundo. Precisamos compreender que nos pequenos acontecimentos encontramos os melhores sentimentos e as piores injustiças, mas se não soubermos direcionar o nosso olhar não encontramos nada belo e nada feio. Que pensemos sobre a nossa fala e a nossa escuta. Por vezes cabe a nós o silêncio e principalmente a escuta, em outras a denúncia deve ser gritada.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES, de Anima. Ética a Nicômaco. Tradução, introdução e comentários de Mário da Gama Kury. Brasília. Ed. Universidade de Brasília, 1997.

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BERTH, Joice. O que é empoderamento? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA Empreendimentos Sociais; TAKANO Cidadania (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de janeiro; Takano Editora, 2003.

DINUCCI, Aldo. O que são coisas indiferentes no estoicismo de Epicteto e qual a atitude correta diante delas. Socientifica, 2020. Disponível em: < https://socientifica.com.br/o-que- sao-coisas-indiferentes-no-estoicismo-de-epicteto-e-qual-a-atitude-correta-diante- delas/?fbclid=IwAR0kX- 1p0BscDd1we48ny3EAkV9hob153y1EniioZPmWCXfLV2HTq4pdHcA>      Acesso       em: 13/06/2020.

MOREIRA, Adilson. O que é racismo recreativo? Belo Horizonte: Letramento, 2018. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

___________. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

___________. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias: 16.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015.

 

 

 


Créditos na imagem: Tatyana Ilieva / Reprodução.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “114”][/authorbox]