Falar sobre trajetórias e obras de mulheres artistas é necessário para que se abram novas possibilidades e chaves de leitura para a História da Arte, assim como para várias outras áreas do estudo da História. Até então, os textos aqui publicados vêm tratando destas questões de modo a apresentar aspectos referentes às vivências femininas no campo artístico brasileiro, principalmente sob a perspectiva contextual de formações, produções e validações. O presente texto tem como objetivo apresentar a perspectiva de gênero relacionada a uma questão diretamente ligada às dos textos anteriores: a conservação de obras de arte e sua visibilidade. Quando vamos à uma exposição, por exemplo, é importante que nos atentemos tanto à presença quanto à ausência de trabalhos produzidos por mulheres. As fontes utilizadas para a escrita deste texto são publicações do periódico O Globo, do Rio de Janeiro, disponibilizadas pelo site Acervo O Globo.

Para esta discussão, nosso foco será a atuação de Zoé Chagas Freitas (1920-1991), companheira do então governador do Rio de Janeiro, Antônio Chagas Freitas (1914-1991). Na década de 1970, Zoé encontrara, no porão do Palácio do Governo, cerca de cem obras de Lucílio de Albuquerque (1877-1939) e Georgina de Albuquerque (1885-1962), casal de artistas que estavam dentre os maiores mestres da pintura impressionista no Brasil. Tendo requisitado à pintora Carlota Santos (1913-2000) a restauração das obras, Zoé organizou então uma série de exposições para apresentar os grandes achados ao público, e é neste ponto onde a questão de gênero e visibilidades começará a ser posta em pauta. Quando em 12 de agosto o jornalista Frederico Morais (1936- tempo presente) publica um texto no periódico O Globo sobre a exposição realizada na Petite Galerie, identifica-se nas obras de Georgina melhor qualidade do que nas de seu esposo; em contrapartida, a artista é colocada pelo autor como uma mulher “frágil e decidida” e cujas obras traziam “certa qualidade feminina”, quando situadas no conceito e técnicas impressionistas. Por fim, Morais levanta questões acerca da situação de conservação e visibilidade das obras, que para ele necessitavam de melhor atenção por parte do governo, e também se questiona sobre o impacto do modernismo na valorização da arte anterior ao movimento modernista. Esta última questão é importante pois revela os rumos tanto dos artistas modernistas quanto de seus predecessores e o modo como as memórias em torno de cada trajetória é constituído para a posteridade – onde está incluída a visibilidade ou a relegação às reservas técnicas de museus e outras instituições.

Um pouco mais à frente, em setembro do mesmo ano, o O Globo volta a falar da exposição, onde vemos um avanço na resolução dos problemas identificados tanto por Zoé quanto por Morais. Zoé daria grande contribuição para a recuperação das obras, que fariam parte do patrimônio do Estado do Rio de Janeiro e depois, iriam por cessão para o acervo do Museu Histórico Nacional, instituição na qual Frederico Morais exercia a direção. Este momento inicial marca uma maior atenção ao estado de conservação dos trabalhos artísticos adquiridos pelo governo e que, por alguma razão, se encontravam longe dos olhares da sociedade. É um momento interessante, ainda, pelo modo como estas obras serão apresentadas ao público, o que reacende nosso último texto publicado, sobre os projetos expositivos e seus impactos sociais. Por estarmos falando de um período ditatorial, é importante que tenhamos ciência do modo como certas narrativas expositivas seriam construídas e apresentadas. Voltando à trajetória do conjunto de obras encontrado por Zoé, já há quase uma década após a descoberta nos porões do Palácio, em 1984 o O Globo volta a falar das obras mas, desta vez, a descoberta é atribuída ao político e escritor Maurício Lacerda (1888-1959), e a Zoé caberia a responsabilidade apenas pelo trabalho de restauração. O conjunto de obras, neste ano de 1984, havia sido transferido para o Museu Palácio do Ingá, onde se encontravam ameaçadas por infiltrações no ambiente em que foram alocadas. O autor da nota do periódico ironiza que, após Georgina de Albuquerque ter passado anos estudando os efeitos da água na luminosidade das telas, as obras descobertas por Zoé logo fariam parte dos estudos, por descaso do Governo.

É importante, claro, que não deixemos de citar o contexto ditatorial no qual todo este processo estava inserido; em um período em que a cultura fora posta de lado assim como a atuação das mulheres em vários setores da sociedade, para além do controle da imprensa, a análise discursiva da circulação da cultura é fundamental para compreendermos os rumos de importantes movimentos e estilos artísticos, bem como das trajetórias de artistas. A ditadura militar trouxe uma série de particularidades e controvérsias ao campo artístico, que devem ser tratados com a compreensão de que o discurso ou a notícia pode vir a sofrer este tipo de interferência – onde, neste caso, foi inserida uma figura política que, a princípio, não estava envolvida na descoberta e restauração das obras. A título de conclusão da reflexão, poderíamos levantar ao menos duas questões acerca deste caso, quando pensamos na atuação feminina nas artes: a primeira diz respeito ao trabalho de Zoé Chagas na descoberta, recuperação e exibição do conjunto de obras de Lucílio e Georgina ter sido atribuído sem embasamento a outra figura. O que Zoé iniciara, nesta ocasião, diz respeito a uma política válida para a preservação de obras de arte e, quando esta noção é aplicada à uma artista como Georgina, sua importância dobra no sentido de que a artista, assim como várias de suas contemporâneas, não havia alcançado visibilidade tal como as artistas modernistas e posteriores. O valor documental e cultural de suas obras é igualmente importante e não deveria ser posto de lado por se tratar de uma tendência artística – impressionista acadêmica – cuja adesão decaíra após o Modernismo. A segunda questão é a de que tanto Georgina quanto Zoé Chagas deixariam contribuições relevantes à situação da conservação e visibilidade de obras de arte. Por mais que seus esforços tenham sido diminuídos e que a memória acerca dos mesmos tenha sido fragmentada por fatores externos, ambas as atuações destas mulheres revelam aspectos de práticas e políticas de preservação e salvaguarda por parte do poder público que, quando observadas sob outras perspectivas, trazem resultados que tendem a se expandir em termos de novas questões e projetos.

 

 

 


REFERÊNCIAS

MORAIS, Frederico. A Persistência do Impressionismo. O Globo. 12 de ago. 1978, p.32. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=197019780812

MORAIS,  Frederico. Lucílio Albuquerque: as obras restauradas. O Globo. 5 de set. 1984, p. 39. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=197019780930

SWANN, Carlos. In Memoriam. O Globo. 30 de set. 1984, p. 15. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=198019840930

 

 

 


Crédito na imagens: Reprodução. A Charrete. In: Google Arts & Culture – Partner: Museu Nacional de Belas Artes. S. L: Google Arts & Culture, Acesso em 28 de abril de 2022. Disponível em: https://g.co/arts/YM8iKZpeae7mc1zm9

 

 

 

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