Mais de dois anos se passaram desde que o governo de Jair Bolsonaro começou e muitas análises tem sido feitas. É preciso dizer, com a honestidade intelectual que nos compete, que elas tem sido insuficientes. Mais que isso, elas parecem apontar na direção errada do problema, muitas vezes criando mais confusão que esclarecendo os fatos. Com muita sorte e boa vontade, elas arranham a superfície do tema quando, por exemplo, aproximam seu governo do fascismo (ou um neofascismo) ou quando se analisam o militarismo presente em seu governo a partir da perspectiva dos militares de 1964. Esses pontos podem revelar alguns aspectos importantes, como é o caso da presença de militares no governo, que, de fato é algo que merece ser melhor investigado – quais são seus fundamentos político-intelectuais? Seus objetivos? Suas diferenças em relação aos militares de 1964? Qual o conteúdo da grade disciplinar de sua formação? – mas outros podem nos levar ao erro, mais atrapalhando que ajudando, como é o caso da comparação com o fascismo.
Bolsonaro pode até ser um neofascista, mas o fundo teórico da chamada “ala ideológica” de seu governo não o é. Ela está pautada a partir de outra corrente intelectual chamada de Tradicionalismo – com “T” maiúsculo, como faz questão de frisar Benjamin Teitelbaum, autor de Guerra pela Eternidade, um livro que analisa as relações entre o Tradicionalismo e a nova extrema-direita populista. A diferença é importante, pois tradicionalismo com “T” minúsculo diz respeito apenas ao fato de se buscar manter os costumes e práticas direcionados a um passado referencial − muitas vezes idealizado −, enquanto Tradicionalismo com “T” maiúsculo corresponde a um conjunto de ideias, mais ou menos bem definidas, com um fim determinado: a destruição do mundo moderno e a restauração de uma “era espiritual”. É, portanto, uma ideologia. Explico a frase inicial desse parágrafo: Bolsonaro pode ser um neofascista, pois possivelmente não tem ideia do que seja o Tradicionalismo, mas diversos membros do seu governo e, principalmente, seu guru intelectual, Olavo de Carvalho, conhece bem essa corrente intelectual/ideológica. Como o tema é desconhecido e as conexões são muitas, vamos aos poucos.
Em primeiro lugar, é preciso explicar o que é o Tradicionalismo. Enquanto corrente intelectual/ideológica (talvez filosófica) seus referentes mais antigos são o francês Réné Guénon (1886-1951) e o italiano Julius Evola (1898-1974), enquanto seus referenciais contemporâneos são Steve Bannon, Alexandr Dugin e Olavo de Carvalho – cada um deles exerceu o papel de “guru” intelectual de governantes ou de membros importantes dos governos dos Estados Unidos, Rússia e Brasil. Enquanto corpo de ideias, o Tradicionalismo incorpora diversas coisas de religiões e/ou tradições espirituais orientais, principalmente o Vedanta, e concebe o tempo a partir de uma estrutura cíclica. Seriam então quatro ciclos que dividiriam o tempo: uma primeira idade dourada, uma espécie de “tempo dos sacerdotes”, na qual as pessoas se voltariam para preocupações espirituais; seguida por uma “idade da prata”, caracterizada por uma mentalidade guerreira; uma “idade de bronze”, marcada pelos comércio; e, finalmente, uma “idade dos escravos”, o Kali Yuga, que é a era na qual nos encontramos. O Kali Yuga, na concepção dos Tradicionalistas, é marcado por uma degeneração das sociedades, que passam a se importar apenas com os bens materiais e se deixam conquistar por outras nações, que buscam impor sua cultura – inevitavelmente materialista – sobre o resto do mundo. Como qualquer corrente intelectual, o Tradicionalismo é dinâmico e sofre alterações conforme o tempo e o ambiente em que se desenvolve, o que dá origens a divergências na compreensão de suas ideias. Isso faz, por exemplo, com que Bannon e Olavo acreditem que a China atualmente seja esse império materialismo que busca se impor ao mundo, enquanto para Alexandr Dugin, o guru intelectual de Putin, esse papel dominador é exercido pelos Estados Unidos. Olavo de Carvalho é um personagem ainda mais complexo, pois, ainda que acredite que a China exerça esse papel, não está convencido da ideia do tempo cíclico.
Olavo de Carvalho tampouco está convencido de outra característica do Tradicionalimo: a recusa completa do mundo moderno e das tecnologias. Não obstante, qualquer um já deparou com vídeos do guru no qual ele coloca em questões diversas concepções da física moderna. Para os Tradicionalistas, o mundo moderno é marcado não só pelo materialismo – que é preciso dizer, pode ser encontrado tanto no capitalismo como no comunismo −, mas também pela decadência dos costumes, observada nas liberdades sexuais; nas sexualidades que escapam à lógica heterossexual; na busca por equivalência nas relações entre homens e mulheres; pelo feminismo e por vários outros “ismos”. O que um Tradicionalista busca, quando chega ao poder – na maioria das vezes, ele não ocupa o poder, mas chega a ele através de um “executor”, como é o caso de Bannon, Putin ou Bolsonaro – é incentivar ao máximo a destruição das instituições. A tática principal é colocar nos cargos pessoas que são fundamentalmente contra as funções defendidas pelos cargos ocupados. No Brasil, é fácil se lembrar de pelo menos dois nomes que cumprem esse papel: Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, e Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares. Também é difícil esquecer dois ex-ministros da Educação, indicados diretamente por Olavo de Carvalho: Ricardo Vélez e Abraham Weintraub. É preciso que isso fique claro: não se trata de incompetência; é, de fato, uma tática estrategicamente adotada. E não é simplesmente a destruição pelo ódio e o ressentimento (embora esses elementos também estejam presentes e sejam importantes), mas antes uma destruição pautada em uma concepção filosófica/ideológica de mundo que não nasceu nos últimos tempos e não é fruto de excentricidades. Talvez Olavo não seja contra tudo do mundo moderno, principalmente contra os avanços tecnológicos, mas ele certamente detesta várias instituições e costumes modernos.
Esse imperialismo contemporâneo, como os Tradicionalistas o enxergam, vem acompanhado de um termo que se tornou muito conhecido ultimamente: “globalismo”. Acredito que agora mesmo o leitor mais incrédulo começará a perceber que o Tradicionalismo, por mais que nos pareça delirante, vem sendo aplicado na política brasileira. Na verdade, vai um pouco mais longe que isso, ocupando atualmente boa parte do Leste Europeu e já fez seus estragos mesmo na Europa Ocidental, no Brexit e já anda de conversa com Marine Le Pen e com setores de extrema-direita na Alemanha. Mas voltemos ao “globalismo”. Em oposição a esse imperialismo materialista de grandes potências, o que se pretende é a construção de Estados nacionais fortes, com fronteiras bem delimitadas, voltados para seu “verdadeiro povo” – um conjunto delimitado de cidadãos que representariam os “verdadeiros ocupantes” de um país. É isso que está por trás da construção do muro na fronteira dos Estados Unidos com o México e também na política externa exercida por Ernesto Araújo, agora ex-chanceler brasileiro, que se dedicou a atacar a China, resultado em nossa defasagem no suprimento de vacinas. Aos que não compreendiam a lógica dessa política externa, que comprometia as relações comerciais com nosso principal parceiro econômico, indo portanto, em sentido contrário a uma política liberal, defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a resposta é essa: em questões de política externa, as concepções Tradicionalistas destacavam-se das metas econômicas. A economia é algo pautado pela materialidade, é passageira. A defesa dos valores espirituais é transcendental. É preciso dizer que o arranjo político ministerial de Bolsonaro não é de todo coerente e busca atender a todos os setores conservadores/reacionários da política brasileira: os neoliberais à lá Guedes são um ponto, os militares outro e os Tradicionalistas – que Bolsonaro provavelmente nem sabe do que se trata, volto a dizer – são outro.
Outro aspecto interessante do Tradicionalismo é sua apropriação das ideias de Gramsci em torno da necessidade de se construir uma hegemonia cultural, ocupando instituições de ensino, as redes sociais, as mídias, editoras etc. Nesse sentido, é interessante que suas ideias sejam defendidas ainda que as pessoas não tenham ideia do que seja o Tradicionalismo: é sinal que estão conseguindo conquistar o corpo social, pautando o debate público. Via de regra, isso é mais importante que vencer eleições. Para se desviarem de Gramsci, mudaram o nome da tática, chamando-a de metapolítica. Se ao leitor ainda restam dúvidas quanto à presença do Tradicionalismo na atual política brasileira, basta dar uma conferida no blog de Ernesto Araújo, Metapolítica 17: contra o globalismo e, se o nome ainda não for o suficiente para convencê-lo, destaco o seguinte trecho de um texto do ex-ministro, chamado A Nação está voltando:
O globalismo surgiu quando alguém entendeu que o consumismo era o melhor caminho para o comunismo. Quando o objetivo de um mundo sem quaisquer fronteiras para o comércio e os investimentos tornou-se o projeto de um mundo sem quaisquer fronteiras ponto, um mundo onde desapareceria o Estado e se instalaria o totalitarismo mais completo, o totalitarismo que teria destruído até mesmo o poder estatal, frágil fio de Ariadne que ainda ligava a humanidade á transcendência (ARAÚJO, 2018).
Em questão de hegemonia cultural – ou metapolítica se se preferir – é necessário assumir uma coisa: os defensores do Tradicionalismo vem mostrando uma competência inimaginada por setores progressistas e das esquerdas. Enquanto alguns intelectuais insistem em subestimar a ascensão da extrema-direita, achando que a coisa é mesmo uma “marolinha” passageira pautada em uma negação do iluminismo, os executores dessa nova forma de fazer política se deliciam de seu avanço na política mundial, fazendo troça de nossas concepções “iluministas” e realizando o que parece ser, de fato, uma verdadeira transformação estrutural na forma de se fazer política a nível mundial. Ao menos é isso que aponta Giuliano Da Empoli em seu livro Engenheiros do Caos. Sua tese parece ser irremediavelmente consistente.
Da Empoli pesquisou a forma como as redes sociais vem influenciando na política, principalmente nas campanhas políticas. Ele considera a Itália como berço dessa nova fase da política mundial, cujo método de fazer política pelas redes se iniciou a partir de um “casamento” inusitado: de um lado Beppe Grillo, um comediante de stand up, cujas apresentações são caracterizadas por provocações e insultos, e Gianroberto Casaleggio, um especialista em marketing digital. Essa conjunção entre uma linguagem áspera, crítica às elites políticas e o marketing político feito nas redes, deu origem ao Movimento 5 Estrelas (em italiano Movimento 5 Stelle), também conhecido como M5S. O objetivo: democracia direta por meio da internet. O “povo no poder”. Já vimos isso em outros lugares. Embora ocupe atualmente o centro do poder da política italiana, o M5S não é sequer um partido político, mas sim um blog, uma estrutura privada que adquire matizes aparentemente democráticos por representar a democracia direta do “povo” contra as elites políticas e econômicas. Matteo Salvini, vinculado à Liga, partido de extrema-direita e apoiado pelo M5S, apresenta laços com Alexandr Dugin e Putin. É preciso reconhecer que trata-se de fato de um movimento mundial: Steve Bannon, Olavo de Carvalho, Alexandr Dugin, Salvini, sejam eles Tradicionalistas ou não, são elementos que se envolvem em uma rede complexa, que comporta contradições e conflitos, mas que apresentam uma pauta comum: a construção de uma nova política mundial feita a partir da destruição das instituições modernas.
Se os personagens políticos que hoje ocupam o poder podem ser transitórios, a base dessa “nova política” tende a ser permanente: o negacionismo científico dos Tradicionalistas que circula por memes e fake News, longe de se propagarem de forma aleatória, se configuram a partir de verdadeiros laboratórios de propaganda política, operados por não muitas pessoas, mas difundidos largamente em grupos e perfis de redes sociais como o facebook e o whatsapp. Em operações tecnicamente racionalizadas, cada uma dessas imagens e mensagens são testadas, sendo as efetivas aperfeiçoadas e servindo de modelo para novas mensagens, enquanto as que circulam pouco são descartadas. Analisa-se, de maneira pontual, via os acessos individuais nas redes, possíveis eleitores com tendências a mudar seu voto em determinado candidato e inicia-se uma série de bombardeios virtuais de mensagens, a grande maioria falsas, associando o provável candidato à políticas irreais ou contrárias aos valores do eleitor, fazendo com que este modifique seu voto. Os eleitores brasileiros jamais esquecerão a chamada “mamadeira de piroca”, artefato inexistente divulgado nas redes bolsonaristas que provocou um dano enorme na imagem do Partido dos Trabalhadores. Sabe-se que Bolsonaro contou com o apoio de Steve Bannon e sua Big Data, a Cambridge Analytica. Trata-se, portando, de uma mudança estrutural na forma de fazer política e que vem dando resultados: EUA, Brasil, Polônia, Hungria, Brexit, a Alternativa para a Alemanha (AFD), o VOX na Espanha etc. O Facebook se isenta de processos afirmando ser uma rede social e não uma rede de informações; não poderia, portanto, se responsabilizar pelas informações falas divulgadas por seus usuários. O espaço virtual parece realmente livre para a extrema-direita. Mais que isso, é a estrutura sobre a qual política contemporânea tende a se movimentar, seja ela de direita ou de esquerda. Voltar atrás parece uma impossibilidade, embora acredite que a antiga forma de se fazer campanha ainda continue existindo em paralelo com as redes: a campanha pautada no boca a boca, nas propagandas via rádio e televisão, os comícios etc. A questão é se essa velha forma de política conseguirá se mostrar ainda capaz de vencer as eleições. Felizmente, ainda vivemos em um mundo no qual a realidade ainda parece surtir algum efeito. Caso contrário, o que podemos estar assistindo – e essa é uma possibilidade severamente real – é a corrosão do sistema democrático, camuflado de “democracia direta”. Convido o leitor a dar uma olhada no caso de Nayib Bukele, atual presidente de El Salvador. Talvez ele seja um exemplo máximo dessa “nova política”.
Concluindo, ressalto a importância de se abandonar os velhos paradigmas para analisar o momento atual da política, não só brasileira, como mundial. Embora existam elementos semelhantes entre as ideologias, ou mesmo apropriações de uma para a outra, aproximar Bolsonaro do fascismo pode ser contraproducente. Benjamin Teitelbaum, em entrevista concedida ao Instituto FHC, afirma que alguns Tradicionalistas se colocam à direita do fascismo, considerado “demasiado igualitário, modernista, secular, científico e materialista”. É, portanto, imperativo deixar de subestimar a extrema-direita e encarar as coisas como elas são, utilizando-se dos conceitos adequados e analisando a situação com precisão. Nós estamos diante da maior ameaça mundial desde o fascismo, com a diferença que essa nova direita, se se utiliza de armas menos letais (isso também pode ser discutido), isso não significa que elas sejam menos eficientes para conquistar territórios.
Trump e Bolsonaro podem deixar a presidência. As estruturas que os levaram ao poder, infelizmente, parecem ter vindo para ficar.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Ernesto. A Nação está voltando. In: Metapolítica 17. Disponível em: https://www.metapoliticabrasil.com/post/a-na%C3%A7%C3%A3o-est%C3%A1-voltando. Acesso em: 03/04/2021.
EMPOLI, Giuliano Da. Os Engenheiros do Caos. São Paulo: Vestígio, 2020.
TEITELBAUM, Benjamin R. Guerra pela Eternidade. O retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista. CAMPINAS: Unicamp, 2020.
Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Alan Santos/PR.
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Warley Alves Gomes
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