A realeza do Brasil

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Nas macumbas, umbandas, omolocôs e demais terreiros cruzados dessa terra há um verso de caboclaria que diz: Sou brasileiro, eu sou brasileiro… Sou brasileiro imperador, eu nasci foi no Brasil, sou brasileiro sim sinhô! Os caboclos boiadeiros são almas vibrantes do chão profundo desse lugar. Seus rostos são como a malha do sertão, rachados pelo Sol seus corpos se vestem de couro para batalhar pela sobrevivência. Montados nas brisas ou ventos fortes eles alargam o tempo com o aboio, ronco da terra, e jogam seus laços para caçar as obsessões de um mundo desencantado.

O sertão que já foi mar pode vir a ser novamente. A chuva que se espera com arrelia para ver sangrar as covas e brotar fio de vida é ensinamento de grandeza que se esconde na fragilidade e fibra dessa gente. Enfrentado o ódio destilado contra as gentes simples desse país invoco as histórias de engabelar sono de menino que meu pai me contou. Entre as sagas sertanejas e do pé da serra alinhavadas na memória fica a do caboclo Antônio Venâncio, vaqueiro de corpo fechado e reza forte, que tinha o azar de botar quebranto em novilhas e a sorte de curar a peçonha por meio da palavração.

Contam que certa vez o velho Venâncio foi espreitado por serpente venenosa que o atou em bote certeiro e indefensável. O caboclo ao mesmo tempo em que levava a dentada da maldita rogou as palavras do oco da terra, aquelas que identificam, guardam e encanta a natureza dos seres que fazem da vida comum uma batalha. As testemunhas do fato, gente que sabe dos segredos de inventar esperança na escassez, passaram adiante o conto de que as palavras do caboclo Venâncio envergaram a maldita. Nessa cena, contrariando a lógica foi à cobra que morreu engasgada com o próprio veneno.

Existem muitos brasis nesse Brasil que se quer acima da diversidade de sua gente. De tradição racista, sexista, punitivista, hipócrita, violenta e tacanha os senhores que reivindicam a flâmula, a “família” e os grandes feitos são curtidos na empáfia bacharelesca e nos privilégios construídos nas desigualdades. Assim, em conluio eles rogam as armas, o latifúndio e a igreja como as vigas desse edifício do atraso. Porém, onde pia a serpente, arma o bote e mostra os dentes embebidos de veneno de morte há de ter um filho do chão rachado para soprar palavras de força que a façam beber do próprio mal. O Estado-Colonial não pode ser maior que as aldeias de sua gente e para enfrentar essa peleja haveremos de aprender as coisas da nossa terra.

Assim, mergulhar no Brasil profundo em que os caboclos cantam sua realeza simples é um dos caminhos possíveis para espantar o assombro e alumiar a sombra do edifício do atraso. Lembrar que a política é tudo aquilo que fazemos de nossas vidas e que as chamadas culturas populares mais que expressões do caráter diverso e da estética da gente simples é também o corpo que se lança na disputa da vida e da luta pelas belas batalhas.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Luiz Rufino

Luiz Rufino é pedagogo. Doutor em Educação (UERJ), atualmente realiza pós-doutorado em Relações Étnico-Raciais (CEFET/PPRER). Desenvolve pesquisa sobre crítica ao colonialismo, epistemologias, educações e pedagogias outras e brasilidades.

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