‘Cause all I ever wanted was love’ algumas considerações sobre amor e esperança

1

 

Esse texto é desdobramento de uma série de acontecimentos que me fizeram repensar o significado do amor e, é também, um agradecimento a todes os meus amigues e pessoas queridas que fazem parte da minha rede de apoio. Também é uma homenagem a todes os seres e ancestrais que, estando ou não mais presentes nesse mundo, me amaram. Amo vocês.

Não queimem as bruxas

Mas que amém as bixas

Mas que amém

Que amém

Clamem

Que amém

As travas também[1].

 

A minha rede de amizades e de apoio foi quase inteiramente composta por pessoas pretas durante grande parte da minha vida. Eu sou uma pessoa preta, fruto de uma relação interracial. Minha mãe é preta, minha avó é preta, meus irmãos são pretos, meus melhores amigos são pretos. No entanto, tal fato nunca garantiu que eu fosse uma pessoa antirracista por nascimento ou que a minha família não reproduzisse atos racistas no nosso cotidiano. Minha avó e meus tios, por exemplo, sempre implicaram com os nossos cabelos. Minhas irmãs deveriam alisar o cabelo enquanto eu deveria raspá-lo, tudo isso porque “cabelo de preto é feio”, segundo eles. Também deveríamos ter muito cuidado com nossos amigos e ter certeza de que eles possuiriam uma boa “índole” (nem preciso dizer a cor desses amigos ao qual se referem, não é mesmo?). Até pouquíssimo tempo, não havia espaço para se discutir nossa cor dentro da família. E essa aparente contradição é algo bastante particular e identitário do racismo brasileiro, já que, conforme Munanga (RIBEIRO, 2019, p. 17), é por meio do não dito, do silêncio, que o racismo brasileiro se reproduz nas relações interpessoais. Não existir espaços de diálogos e debates sobre essa temática é uma das ferramentas do racismo. Desde que eu vim ao mundo, essa é a principal lógica que rege a minha família.

Pretendo falar mais adiante sobre o processo de aceitação da minha negritude, mas posso adiantar que a minha entrada em uma universidade pública e o contato com pessoas diferentes de mim foi o grande estalo que me fez repensar a minha existência. Nesse processo, ampliei a minha rede de apoio e fiz novas amizades, em especial com pessoas brancas. Contudo, à medida que ficamos mais íntimos, fui percebendo um certo ar de desesperança e pessimismo nesses novos amigos acerca da imprevisibilidade do futuro (o que é minimamente razoável quando pensamos na situação atual em que o país se encontra). É pensando nessas novas amizades e nesse tom desesperançoso que escrevo esse texto. Aqui não me proponho a ser uma espécie de “salvador da esperança” ou algo do tipo. Eu me proponho a relatar um pouco das minhas experiências e vivências enquanto um homem cis preto, ao mesmo tempo em que tento refletir sobre a minha existência. Nada mais que isso. Mas antes de pensar a esperança, quero refletir um pouco sobre uma outra experiência: o amor.

O que é o amor? Uma pergunta tão objetiva e, aparentemente, simples, mas que vem sendo feita há séculos – quiçá milênios – e, por incrível que pareça, possui muitas definições, mas todas sempre em disputa. Alguns dirão que é um sentimento, muitas vezes atrelado ao amor romântico. Outros relacionam o amor aos laços familiares e parentais. Tive um professor de filosofia no ensino médio que disse uma vez em sala de aula que o maior amor que existe é aquele que os pais possuem por seus filhos. Também há aqueles que dirão que o amor é uma construção social ou uma ilusão. Seja como for, é indiscutível que o amor romântico é uma busca amplamente incentivada no ocidente, sendo a paixão e o romance heteronormativo e monogâmico entre duas pessoas brancas o ideal daquilo considerado como amor verdadeiro, como é possível observar em diversos filmes e produções estadunidenses.

Entretanto, não é somente no cinema que o amor é de algum modo o tema central. No jogo Assassin’s Creed Odyssey[2], por exemplo, o amor é ligado à família. Odyssey retrata uma intensa odisseia de uma misthios de origem espartana que se vê envolta em conflitos políticos, lutas territoriais e batalhas mortais contras monstros mitológicos como a Medusa, o Minotauro e o Ciclope, tudo isso enquanto procura uma forma de reencontrar sua família e recriar os vínculos que foram cruelmente cortados. Dessa forma, pode-se dizer que Odyssey baseia parte de sua trama na busca da protagonista pelo amor (aqui inferido como um amor consanguíneo e familiar) que pode, ou não, terminar em uma tragédia, a depender das escolhas feitas pelo jogador durante a sua jornada pelo Peloponeso.

Além disso, o amor também é atrelado a dor e ao sofrimento. Um dos casos mais ilustrativos dessa relação talvez seja a onda de suicídios que ocorreu na Inglaterra no século XVIII. Me refiro aqui ao romance “Os sofrimentos do Jovem Werther” de 1774. De maneira geral, a trama desemboca no fim trágico do protagonista que, ao se apaixonar por uma mulher comprometida, escolhe o suicídio ao ter que lidar com a rejeição. Essa história teve efeito na vida prática, quando diversas pessoas seguiram o exemplo do jovem e “morreram por amor”. Esse atrelamento entre amor e dor não fica restrito à literatura. Pensando na atualidade, existem diversas produções cinematográficas que atrelam o amor ao sofrimento. Tantos filmes que constroem uma relação romântica do casal para, no final, acontecer alguma tragédia, geralmente atrelada à morte de um dos pares. Tanto sofrimento, tanta dor.

Esse amor amplamente incentivado na nossa sociedade talvez se encaixe em um conceito cunhado pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie: a história única. Existe uma construção de uma história única sobre o amor. O amor é um sentimento atrelado ao romance, aos laços familiares e é perpassado pela dor e pelo sofrimento. Todavia, como diz a própria autora, “[…] a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos” (ADICHIE, 2019, p. 26). Há várias incompletudes sobre a experiência do amor, a começar pelo fato de que ele exclui as pessoas pretas e os afrodescendentes. De acordo com bell hooks (2010), não se pode desconsiderar os impactos da escravidão e do racismo quando pensamos no amor, especialmente quando tratamos do amor entre pessoas pretas. Como se pensar no amor num contexto de extrema perseguição cultural, social e religiosa? Em que irmãos são separados e arrancados de suas terras à força? Em que os corpos de seus companheiros são jogados no meio do oceano por não conseguirem sobreviver às condições desumanas dentro dos navios negreiros?

É daí que vem o meu inconformismo com filmes de romance que terminam em tragédia. Por qual motivo isso acontece? Qual o motivo de tanta desgraça na vida dos protagonistas? Por que eles não podem simplesmente ficarem juntos? Serem felizes? Qual a mensagem que esses filmes querem passar? Sendo sincero, eu nunca entendi a causa de tanto sofrimento nesses filmes, afinal o amor sempre foi um luxo destinado às pessoas brancas e às elites econômicas e sociais. Não foram as pessoas brancas que tiveram seus filhos arrancados de suas mãos para que pudessem ser vendidos como mercadorias. Não foram as pessoas brancas que foram açoitadas, queimadas, algemadas, enforcadas e espancadas até a morte. Não foram as pessoas brancas que foram dessocializadas, arrancadas a força de seus territórios, de seus lares sendo separados de sua comunidade e, em seguida, despersonificadas, se transformando em coisas, mercadorias e ferramentas destinadas a servirem nas lavouras. Os brancos nunca deixaram de ser pessoas. Enquanto as pessoas brancas cometiam suicídio por causa do “amor”, meus ancestrais cometiam suicídio por não aguentarem mais a escravização e preferirem a morte ao sofrimento. Vocês conseguem imaginar a dor de uma mãe que mata os seus bebês recém-nascidos para que não sofram assim como ela? Então qual o motivo de tanto sofrimento nesses filmes? Obviamente, não estou desconsiderando o sofrimento das pessoas em geral na minha fala. O que chamo atenção é para o quão estranho é essa fixação de diretores brancos por romantizar a relação entre amor e dor e generalizá-la. Não somente isso, é muito estranho que essas pessoas falem tanto de tragédia a partir do amor quando quem não pôde disfrutar do amor fomos nós.

Durante grande parte da minha vida, a minha experiência sobre o amor esteve relacionada com o anime[3] Devilman Crybaby. E se demônios existissem? E se eles vivessem na sociedade camuflados como humanos? O que aconteceria se a existência de tais seres fosse revelada ao mundo? No universo de Devilman, a partir dessa revelação, os humanos entram em uma guerra colossal e mortífera contra os demônios. Todavia, essa guerra se transforma em uma sangrenta e brutal caça às bruxas, em que diversos inocentes são mortos, não havendo qualquer critério sobre tais massacres. Qualquer um pode ser um demônio. Instaura-se a barbárie na Terra.

Imagem 1: quem são os verdadeiros demônios?

 

Devilman questiona a falsa binaridade bem versus mal tão cara para o ocidente e que foi fundante do pensamento cristão ao mostrar toda a vilania, bestialidade e crueldade do ser humano, colocando-os, muitas vezes, como mais maldosos e grotescos do que aqueles demônios retratados na Bíblia. Mais do que isso, o anime nega a existência do amor. Esse fato fica claro na fala do protagonista Akira: “o amor não existe, não existe nada disso, portanto não existe tristeza, era o que eu pensava”[4]. Os humanos não possuem a capacidade de amar e o destino da humanidade é o caos, a guerra e o eterno sofrimento. Uma visão extremamente pessimista, sem sombras de dúvida. Uma visão bastante cruel da realidade. Uma visão que eu compartilhei por muitos anos.

Conforme bell hooks:

[…] Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, “feridos até o coração”, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando (hooks, 2010).

 

Eu não sei amar, mas eu sempre soube como me odiar. Sempre odiei o meu cabelo, os meus lábios, o meu nariz. Sempre odiei o meu corpo e a minha cor. “Queria ter nascido branco”. Esse pensamento sempre rodeou o meu âmago. Se eu fosse branco, talvez não tivesse sido tão excluído na escola. Se eu fosse branco, as pessoas talvez não desviariam de mim na rua. Se eu fosse branco, talvez pudesse conhecer o amor verdadeiro, viver uma intensa paixão, construir uma família saudável e feliz como aquelas dos potes de margarina. Em algum momento da minha infância, aquela criança alegre e descontraída se tornou apática, fria e introvertida. Me relacionar com as pessoas se tornou uma tarefa que demanda muita energia e disposição. Os meus sorrisos deixaram de ser reais e se transformaram em cópias mal feitas dos sorrisos de outras pessoas. Ficar sozinho se tornava reconfortante e o mundo se tornou um lugar que eu não queria mais habitar. Talvez, a solidão fosse algo predestinado para mim. Quem iria querer se relacionar com alguém como eu? Alguém tão feio e deplorável? Quase sucumbi a esses pensamentos. Mas, em algum momento, algo mudou. Percebi que tenho medo da solidão. Esse foi o primeiro passo para uma mudança muito maior.

Depois que entrei na universidade, tive contato com alguns intelectuais que me ajudaram a repensar a minha existência. Me aceitei, aos 19 anos, como uma pessoa preta e percebi o racismo estrutural da sociedade brasileira de forma mais clara. Entendi que ele foi a razão de muitos dos meus sofrimentos e que o problema nunca fui eu, mas sim os outros. Comecei a odiar a sociedade e, no processo, odiei as pessoas brancas. No entanto, à medida que em que eu conquistava a minha autoestima e me perguntava o que me levou para a docência, comecei a direcionar esse ódio. De nada vale culpar os meus amigos que são brancos, estamos todos no mesmo barco, unidos pela pobreza e pela desigualdade social. Tive que aprender a culpar os verdadeiros algozes: a nossa elite composta por grandes latifundiários, empresários, militares e líderes religiosos. Como disse no texto de AmaRelo, a minha existência por si só é resistência, mas não posso me resumir a isso. Não posso esquecer que sou humano e que preciso viver e não somente sobreviver.

Foi aí que eu comecei a pesquisar sobre o amor e me deparei com o livro colossal de bell hooks “Tudo sobre o amor”. Um livro escrito por uma mulher, preta, religiosa e anticapitalista que busca uma definição clara sobre o amor. Segundo a mesma, “[…] o amor é o que o amor faz” (hooks, 2021, p. 47). O amor não é um sentimento e, sim, uma ação. Nós escolhemos amar e precisamos agir em direção ao amor. Obviamente, tal fato se torna mais complexo para nós pretos, mas não impossível. O amor é a combinação de responsabilidade, afeto, confiança, conhecimento, respeito e compromisso e só pode florescer em comunhão com outras pessoas. Ninguém ama sozinho. Mais do que isso, ninguém ama somente o eventual parceiro romântico. Amar não está condicionado ao romance, mas a nossa rede de apoio, seja ela composta por quem ou pelo que seja. As amizades são uma das relações em que o amor está mais presente e vívido. Você já disse que ama os seus amigos? É uma das sensações mais indescritíveis e deliciosas que existem. Aliás, apesar de ser descrito como o primeiro recinto do amor, nem sempre existe amor na família consanguínea. Consoante hooks (2021), não existe amor quando os pais batem nos filhos, mesmo eles dizendo que “é para o nosso bem” ou “que dói mais em mim do que em você”. Essa é uma das maiores falácias sobre o amor e que, muitas vezes, se trata da reprodução da violência e brutalidade da escravidão (hooks, 2010).

O amor também necessita ser o amor-próprio. Se não nos amamos, não há como amar os outros. Essa talvez seja uma das dimensões mais complexas e difíceis de serem alcançadas pelas pessoas pretas, afinal o nosso amor próprio é forjado pela dor. Enquanto não houver aceitação da nossa pele, não é possível abrir o caminho para o verdadeiro amor e para a cura. Falo isso por experiência própria. Mas não é impossível que isso ocorra. Além dessa dimensão mais “intimista” se posso assim dizer, o amor também possui uma dimensão coletiva. É preciso existir uma ética amorosa. Para bell, “[…] Uma ética amorosa pressupõe que todos têm o direito de ser livres, de viver bem e plenamente” (hooks, 2021, p.104). O amor só virá quando a nossa obsessão pelo poder e dominação acabar. E aqui não fica só no plano individual, mas estrutural também. Não há como o amor perpetuar em uma sociedade estruturada pelo racismo, pelo patriarcado, pela desigualdade social-econômica, pela destruição da natureza e pela LGBTfobia. É preciso que essas estruturas desapareçam, o que só pode ocorrer por meio da nossa luta. Como diz Djamila Ribeiro “[…] Nunca entre numa discussão sobre racismo dizendo ‘mas eu não sou racista’. O que está em questão não é um posicionamento individual, mas um problema estrutural” (RIBEIRO, 2019, pp. 13-14). Não é a sua posição individual que está em jogo, por isso precisamos saber exatamente com que tipo de estrutura estamos lidando para que possamos combate-la.

Ademais, pensar em uma ética amorosa é pensar em liberdade, ideia essa expressa brilhantemente pelo meu amigo poeta Jonathan:

 

Abra os olhos para a vida

Amor

Que não é liberdade

Sempre dói

 

Jonathan fala de um amor que é liberdade radical, em especial no âmbito das relações interpessoais e românticas. Amor também é distância, espaço e deve ser fluido, como a água. Essa ideia me toca bastante, uma vez que a liberdade é um assunto muito caro para nós afrodescendentes. Ser livre no presente significa nos libertar, efetivamente, de algumas amarras do passado e canonizar outras histórias. Significa, por exemplo, aceitar de uma vez por todas que os meus antepassados foram os responsáveis pela nossa libertação e que não foi um gesto benevolente de uma monarca que lutou contra a escravização. É ensinar em sala de aula que os povos africanos escravizados e os povos originários foram e são agentes históricos que lutaram e resistiram bravamente à conquista e continuam lutando até os dias de hoje! Ser livre é perceber que, mesmo que o sistema escravocrata tenha sido extinguido, a lógica colonial ainda perdura na sociedade brasileira. Ainda temos uma casa grande e uma senzala, sendo o racismo uma consequência direta desse passado colonial. Para sermos livres de fato, precisamos saber direcionar as nossas lutas e os nossos ódios e ter a consciência de que só derrubar o racismo não adianta. Precisamos destruir o patriarcado como um todo e pensar um sistema econômico sustentável que não nos leve para a extinção iminente. “Enquanto a terra não for livre, eu também não sou”[5]. É perceber que “[…] no tempo onde a única que corre livre aqui são suas lágrimas”, como diz Emicida.

O amor é ação, movimento, fluidez. O ato de amar é coragem, pois também um compromisso, não só com a nossa felicidade pessoal, mas com a felicidade coletiva. Uma ética amorosa se faz ao se comprometer com a mudança e com a luta por uma sociedade mais equitativa, solidária e amorosa. O amor não existe em solidão, afinal “[…] tudo o que nóis tem é nóis[6]”. Essa fala de Emicida traz uma dualidade muito interessante: tudo o que eu tenho sou eu e tudo o que nós temos é a nossa relação com os nossos. É uma dimensão individual e coletiva ao mesmo tempo. Amar requer o nosso amor-próprio e o amor aos outros, de maneira recíproca.

A música Princípia retrata essa concepção de um amor-ação responsável, afetuoso, comprometido e livre:

 

Amor é decisão, atitude
Muito mais que sentimento
Alento, fogueira, amanhecer
O amor perdoa o imperdoável
Resgata a dignidade do ser
É espiritual
Tão carnal quanto angelical
Não tá no dogma, ou preso numa religião
É tão antigo quanto a eternidade
Amor é espiritualidade
Latente, potente, preto, poesia
Um ombro na noite quieta
Um colo para começar o dia

 

E sobre a esperança? As pessoas geralmente se surpreendem quando conversam comigo e acabam dizendo que eu sou uma pessoa “otimista”. O que essas pessoas deixam passar despercebido é que, no meu caso, não é uma escolha ser ou não ser otimista. Acho bem interessante como as pessoas brancas fazem essa escolha. Escolher a desesperança significa a morte, literalmente. A aceitação da morte, para ser mais específico. Aqui não estou me baseando em um otimismo ingênuo, mas em uma realidade cruel: para as pessoas pretas, escolher a desesperança é escolher a manutenção do racismo e a nossa morte. Mesmo sendo esperançosos, a morte ainda está na nossa cola. Esperança não é um sentimento, mas uma ação também. Como Jonathan bem colocou na nossa conversa, assim como Freire pontua, a esperança vem do verbo esperançar e não do verbo esperar. Quando pensamos nos gregos antigos e no mito da caixa de Pandora, um dos males que estava ali presente e que não escapou foi a esperança. Até onde interpreto, a esperança seria um mal ao ter a capacidade de não deixar com que a humanidade encare o mundo de maneira realista mesmo quando estiverem próximos de seu fim. De fato, a esperança cega e ingênua possui essa característica. Um exemplo cristalino dessa esperança ingênua foi acreditar que Linn da Quebrada, uma travesti, fosse ganhar o maior reality show brasileiro. Essa sim foi uma esperança do verbo esperar. Contudo, o que entendo e defendo como esperança é ação pautada na realidade.

Recentemente, vivi um caso singular na minha trajetória até agora. Uma pessoa, tendo pena por eu ser preto e por sofrer o racismo, me apresentou um curso para tornar a minha vida mais “plena”, já que, segundo o mesmo, a realidade é essa e não irá mudar nunca, mesmo que tentemos. Ele só esqueceu de levar em conta que a minha existência na atualidade é fruto direto das lutas dos meus antepassados. Se a realidade não mudasse e a História fosse imóvel, eu não estaria no lugar onde estou agora. Tenho plena ciência que sou resultado do esperançar dos meus ancestrais e espero que, “[…] enquanto ancestral de quem tá por vir […]” eu possa esperançar e “[…] cantar com as menina enquanto germino o amor”. Esperança é um ato de amor. A Linn mostrou isso bravamente ao entrar naquele programa, construir uma rede de apoio enorme e colocar a transexualidade em pauta no país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. A Linna é esperançar por si só e é amor também.

Thamara dizia em suas aulas que devemos apontar para uma postura mais crítica sobre a realidade, deixando de lado o otimismo ingênuo e o pessimismo imobilizante. Vejo essa postura claramente na figura de Krenak, um intelectual ameríndio. Em seus textos, ele sempre busca alertar a sociedade sobre o fim do planeta se não mudarmos o nosso sistema econômico e a nossa relação com a natureza. Mas, ao mesmo tempo, ele também pensa em possiblidades para que essa mudança ocorra. Ele age. É assim que o amor e a esperança devem ser: uma ação baseada no olhar crítico sobre a realidade. Termino esse texto com as belíssimas palavras de bell hooks sobre o amor e o seu poder: “[…] quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura” (hooks, 2010).

 

I want your stupid love, love.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1ºed, São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1ºed, São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

hooks, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução: Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2021.

hooks, Bell. Vivendo de amor. Tradução: Maísa Mendonça. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/>. Acesso em: 09 de abr. de 2022.

 

 

 


NOTAS

[1] Trecho da música “oração”, de Linn da Quebrada.

[2] Assassin’s Creed Odyssey é um jogo eletrônico lançado em 2018, desenvolvido pela Ubisoft Quebec e que possui a pretensão de retratar a Grécia durante a Guerra do Peloponeso, misturando fatos históricos, reconstrução de paisagens e elementos lúdicos da mitologia grega.

[3] Os animes são animações produzidas no Japão desde o início do século XX e são obras bastantes populares, tanto nas ilhas, quanto no redor do mundo.

[4] Quando Satã descobriu a dor.

[5] Trecho da música Princípia.

[6] Trecho da música Princípia.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://ezatamentchy.com.br/amem-amem/

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago Henrique Oliveira Jardim

Graduando em História pela Universidade do Estado de Minas Gerais, integrante do Grupo de Estudos sobre Ásia (GEHA). Desenvolve pesquisas a respeito da utilização de mangás e animes no ensino de História e que são perpassadas pela teoria da História.

1 comment

  1. Mariane 22 abril, 2022 at 08:18 Responder

    É simplesmente incrível e emocionante ter a oportunidade de sermos amigues de uma pessoa tão grandiosa. Gratidão por compartilhar seus conhecimentos ancestrais conosco! Te ler nos carregou de energia para amar e esperançar cada dia mais. Que bom que sua flor rompeu o asfalto e agora floresceu!

    Ass.: Mih e Mari

Post a new comment

Veja:

Cheio de Si

  Surpreendido pelo afago do vento, até pensou estar vivo Os dias estão passando tão rápido, constatara em um lapso de lucidez Quando percebera o ...