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Descolonizando a Teoria da História: uma breve reflexão   
Ensaios e opiniões

Descolonizando a Teoria da História: uma breve reflexão   

 

Os Xapiri se deslocam flutuando nos ares a partir de seus espelhos, para vir nos proteger. Ao chegarem, nomeiam em seus cantos as terras distantes de onde vêm e as que percorreram. Evocam os locais onde bebem a água de um rio doce, as florestas sem doenças onde comeram alimentos desconhecidos, os confins do céu onde não há noite e ninguém jamais dorme (KOPENAWA; ALBERT, 2019, p. 177).

 

A Teoria da História cada vez mais tem se consolidado como um campo autônomo de reflexão sobre a história. No Brasil, por exemplo, uma amostra dessa consolidação se da pelos espaços de debates sobre o campo, isto é, os periódicos e eventos especializados, em especial à criação, em 2009, da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) (ARAUJO, 2013).

Sem dúvidas, a consolidação da Teoria da História é importantíssima para a história, no qual tem contribuindo para a sofisticação do pensamento histórico, tratando e complexificando temas sobre memória, temporalidade, historicidade, epistemologia etc.

Temos muito a comemorar sobre a consolidação do campo. No entanto, a nossa celebração não pode ser irrefletida, pois, afinal, a Teoria da História preza pela reflexão. A historiadora e professora Ana Carolina Barbosa Pereira nos trouxe algumas provações pertinentes sobre o lugar epistêmico da Teoria da História. Quais são os conhecimentos sobre Teoria da História que os pesquisadores(as) brasileiros(as) consomem e produzem? Qual o seu lugar Epistêmico? Ana Carolina Barbosa Pereira constatou que o consumo da Teoria da História, no Brasil, perpassa principalmente por reflexões realizadas nos seguintes países: Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos da América e, em menor escala, Holanda e Itália. Não se trata – como disse a autora – de recusar estas reflexões, mas compreender como se formou o cânone da Teoria da História. Basta recorrermos aos programas e manuais de Teoria da História que encontraremos os seguintes autores: Reinhart Koselleck, Michel de Certeau, Hayden White, Jörn Rüsen, Fernand Braudel, Marc Bloch etc.

Até agora, provavelmente, muitos que estão lendo este texto já esboçam calafrios: Nossa, você está dizendo para parar de ler estes autores? A resposta é clara: não. Todavia, precisamos reconhecer a hegemonia de autores norte-americanos e europeus em nossas aulas, bibliografias e pensamentos. Estar aberto para o novo, para a diferença, é fundamental para a Teoria da História. Quem sabe devemos diversificar o nosso cardápio epistêmico? Essa é a proposta de Ana Carolina Barbosa Pereira:

A decisão de mudar deve ser sempre fruto de uma escolha, de uma escolha epistêmica. O que, contudo, me parece fundamental, é ter ciência das relações geopolíticas geralmente invisíveis em nossas referências bibliográficas. Algo como “saber a procedência” do que nos alimenta e, preferencialmente, privilegiar o que preparamos nós mesmos de acordo com nossas próprias necessidades, recorrendo a uma infinidade de ingredientes disponíveis. Em resumo, importante mesmo, me parece, é superar a subnutrição epistemológica e metafísica, investindo em um cardápio mais diversificado (PEREIRA, 2018, p. 110).

 

Nós modernos, na maioria das vezes, acreditamos que cada pessoa tem uma história, ainda que nem todas as pessoas tenham uma historiografia. Ou seja, a maioria das culturas teve mitos e épicos religiosos, ao invés de uma escrita da história. Senjay Seth argumenta que o pressuposto do pensamento ocidental era que:

essas tradições intelectuais originárias tinham demonstrado que eram desiguais na tarefa de registrar e narrar a sua história, ao misturarem mito e realidade, desejos e fatos, deuses e homens. E os compromissos epistêmicos que sugeriram que essas eram pessoas incapazes de representar o seu próprio passado foram os mesmos compromissos epistêmicos que sugeriram, mais adiante, que essas pessoas eram atrasadas (SETH, 2013, p. 174).

 

O historiador indiano Dipesh Chakrabarty realiza uma denúncia sobre a suposta história homogênea do ocidente, que tenta reunir histórias diversas em uma narrativa linear, única e universal. O autor realiza fortes críticas ao historicismo, modelo e método histórico que, por sua vez, carrega uma visão de mundo que colaborou para subsunção das narrativas históricas e das subjetividades subalternas. O tempo histórico historicista, segundo Chakrabarty, é ateu, contínuo, vazio e homogêneo. Pois para os historicistas, a historiografia jamais poderá representar deuses, espíritos etc. O tempo contínuo se apresenta de maneira cíclica ou linear, além, é claro, desse modelo temporal ser um grande continente homogêneo, onde vários acontecimentos infinitos são postos sem nenhuma conexão. (CHAKRABARTY, 2008).

Por mais que alguns historiadores – como Koselleck e Braudel – criticaram o tempo histórico linear e homogêneo e, portanto, propuseram tempos estratificados e plurais, eles continuaram em maior ou menor medida eurocêntricos. Ora, não estamos os crucificando, entendemos as suas historicidades, afinal, são historiadores europeus – por mais abertos a reflexão que eles estivessem, isto é, o lugar epistêmico ainda é a Europa.

A Teoria da História precisa urgentemente descolonizar-se, não podemos mais aceitar uma área tão importante que reflete sobre a historicidade, sobre a memória, sobre a narrativa, sobre a temporalidade – ignorando outras tradições de raciocínio. Ora, se o mundo cultural é formado por deuses, mitos, animais, espíritos, por qual razão a Teoria da História deve abandoná-los? Colocar deuses, mitos e outras historicidades dentro da narrativa historiográfica não quer dizer que vamos acabar com os procedimentos científicos.

Façamos um breve exercício reflexivo.  O que constitui, por exemplo, a historicidade de agentes históricos e, particularmente, de agentes históricos indígenas? Seria somente seu encontro com o Estado, com uma instituição religiosa ou com o mercado os fornecedores da mais-valia existencial do sentido histórico? E quais os termos de sua historicidade? O que é ser testemunho, produzir memória, narrar uma história, representar o passado, realizar uma ação sistêmica ou conjuntural, no contexto de uma narrativa dos índios? Os povos originários têm história, mas teriam sua própria historiografia? (SETH, 2013).

Pensemos, por exemplo, no lugar epistêmico do intelectual yanomami Davi Kopenawa. Pensar a condição de intelectual entre os yanomani e, de modo mais abrangente, entre aqueles povos que geográfica, epistêmica e ontologicamente estão situados no perspectivismo ameríndio, é situar tal atividade sobretudo entre os xamãs, diplomatas que medeiam a relação entre o mundo dos humanos, dos animais e dos espíritos, mas também, por meio dessas relações entre mundos habitados por diferentes existentes que, de certo modo, pensam com o xamã. Essa já é uma característica específica desse intelectual da mata, pois seu pensamento não se forma sem os xapiri[1] e sem diversos outros existentes que habitam seu mundo e, por meio da sua fala, trazem esse mundo para a presença de nós.

A teoria da história yanomami é formada por uma cosmologia da mata, que carrega a sua própria constituição de temporalidade e de historicidade, diferente do juízo moral do pensamento ocidental que, por sua vez, entende o pensamento indígena apenas como imagético. Contudo, o que não sabem, é que a profecia xamânica, se parece cada vez menos apenas imaginária e cada vez mais parecida com a realidade. Viveiros de Castro (2015, p. 34) no prefácio da obra A queda do céu relata como Bruno Latour observou, argumentando sobre a crise da ontologia dos modernos e da catástrofe ambiental planetária a ela associada, no qual, hoje, sobretudo, podemos ver um retorno, por assim dizer, às cosmologias antigas, e, suas inquietudes, as quais percebemos, não serem infundada, pelo contrário, que se apresentam como necessárias para refletir e intervir no mundo contemporâneo. Estamos na época do antropoceno, precisamos mais do que nunca da reflexão yanomami para pensar um outro mundo. Um pensar yanomami, é um pensar que, sobretudo, traz os xapiri, os humanos, a natureza, os animais, a mata, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol para perto de nós – isto é, uma morada de saber mais originária, e menos antropocêntrica.

A Teoria da História, bem como a Historiografia precisam fugir da epistemologia colonial, e apostar mais no pensamento liminar, nos conhecimentos formados nas margens da diferença colonial (MIGNOLO, 2003). As visões xamânicas yanomami nos possibilitam pensar a história de outra forma, menos antropocêntrica, e mais integradora dos vários existentes que habitam o mundo. Assim, o pensamento yamomami se revela como único e singular, elaborando uma crítica da razão ocidental e nos ensinando novas moradas de saber. O que não significa abandonar totalmente a racionalidade ocidental e sim, pluralizar a razão.

Bom, se a Teoria da História estiver mais disposta a abrir o leque para as epistemologias do sul, quem sabe ela nos ajude a adiar a Queda do Céu – ou quem sabe não a permitir.

 

 

 


NOTAS

[1] Os xapiri são guardiões invisíveis das florestas isto é – espíritos evocados nos rituais xamânicos para refrescar a terra, curar o corpo e, sobretudo, afastas as epidemias.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ARAUJO, Valdei. História da historiografia como analítica da historicidade. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 6, n. 12, p. 34-44, 2013.

CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe:Postcolonialthought and. historical difference. Princeton University Press, 2008.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MIGNOLO, W.D. Histórias locais /projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento laminar. Trad. Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 – 114, abr/jun. 2018.

SETH, S. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva?. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 6, n. 11, p. 173–189, 2013. DOI: 10.15848/hh.v0i11.554. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/554. Acesso em: 12 jan. 2022.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Davi Yanomami em uma comunidade, Brasil. © Fiona Watson/Survival

 

 

 

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