Quando nasci, no dia 3 de janeiro de 1991, eu já não era mais doente. Segundo uma importante instituição – a Organização Mundial da Saúde, ligada a ONU – eu não seria mais doente a partir do dia 17 de maio de 1990. Assim, por muito pouco (apenas 231 dias) eu não vim ao mundo portando de qualquer doença. Eu nasci não-doente!
Criança nascida e criada na zona rural do interior paulista, o caçula de cinco irmãos homens, ainda não sabia o que eu era, nem sabia se algum dia já tinha sido doente. O grande problema era que, mesmo a importante instituição afirmando que eu não tinha mais qualquer doença, a informação demorou muito para chegar a Campos Novos Paulista, especificamente ao Sítio São Thomé. A notícia demorou ainda mais para chegar aos meus pais e, por não entenderem exatamente o que era aquela doença que eu não tinha mais, enxergavam-me com a ajuda das lentes cristãs do pecado. Assim como meus irmãos, tios/tias, primos/as, vizinhos/as.
A notícia também tardou chegar à escola e colegas, professores/as, funcionários/as não conseguiam me dizer que eu já não era mais doente. Eles/as continuavam me olhando com desaprovação, às vezes com violência, às vezes com pena. Aos sete anos, na escola, já fazia quase oito anos que eu não era mais doente. Mesmo assim, era triste e violento habitar um dos espaços que eu mais gostava. Era impossível entender como aquele espaço que era tão querido por mim conseguia ver a doença que eu não mais tinha. Nem mesmo eu podia ver claramente a minha própria não-doença. Não havia caminho possível para acessá-la, auscultá-la, examiná-la, descreve-la. Era mais difícil ainda, na escola, compreender o que era aquela não-enfermidade. Era estranho e assustador pensar que eu nunca contei à ninguém que eu não tinha qualquer doença, e ainda assim nomearem a minha não-doença, inscrevendo em mim nomes como viadinho, bicha, boiola e toda a sorte de apelidos que escancaravam, como portas de armários arrancadas à força, a minha condição de não-mais-doente. Mal eu sabia que eu não precisava enunciar ou compreender a minha não-doença, pois os seus não-sintomas, suas não-cicatrizes, suas não-sequelas e suas quase-deformidades estavam à mostra: ao falar, ao andar, ao se interessar por qualquer coisa. A não-doença ainda me habitava, como um espelho que nada refletia, mas me dizia o tempo todo que estava ali. As cicatrizes de uma não-doença queimam como aquelas das doenças mais comuns. Às vezes matam e às vezes levam ao suicídio.
A doença que eu não tinha ainda me acompanhou pela adolescência, sem saber como compreendê-la, sem poder pronunciá-la a quem quer que seja. Como compreender algo que já não existia, mas estava ali, focado, presente, apontado, marcado, cicatrizado? As primeiras experiências sexuais e afetivas de um não-doente que não sabe muito sobre si são moribundas: sem nenhuma proteção, acontecidas em espaços inseguros, cercadas de violências daqueles que nunca tinham sido doentes e, infelizmente, por alguns que tinham deixado de ser doentes em meados de 1990.
Aos dezoito anos, começou uma outra rota de compreensão da minha não-doença: a universidade pública. Como pode uma pessoa, com idade e corpo quase prontos para iniciar a jornada da vida adulta e que já não é mais doente, não entender quase nada sobre doenças que já não existem? A primeira experiência com a não-doença que curou o meu olhar sobre ela: vi duas mulheres que já não eram mais doentes se beijando bem em frente ao prédio mais antigo e mais bonito da minha faculdade. Eu sentia um misto de surpresa, de vergonha, de ansiedade, de paixão, de liberdade. Era estranho ver que só aos dezoito anos eu pude ver duas pessoas não doentes trocando afetos à luz do dia, como se nunca tivessem sido doentes. Era um absurdo perceber como os transeuntes, alguns nunca doentes e outros ex-doentes desde 90, passavam por aquela cena sem praticamente nem notá-la. Aparentava que para eles, ali, indo e vindo, nunca fez sentido esse negócio de ser doente, ser não-doente, ser quase-doente etc. Eram, simplesmente, quaisquer pessoas fazendo qualquer coisa. Era quase como aquela outra menina, sentada no banco, rabiscando um caderno. Para os passantes, não havia exatamente nada que diferia um beijo em espaço público de um tracejo em caderno barato. Chegavam a ser, as duas coisas, desinteressantes. Mas, para mim, aquilo era exuberante, estarrecedor. Revolucionário! E foi, pela primeira vez, ao observar duas meninas não mais doentes trocando afetos, que percebi as possibilidades e a potência da minha não-doença. Era tudo aquilo! Mas tudo aquilo não era exatamente nada. Eram apenas coisas que a luz do sol podia tocar.
“Acalma teu coração, meu menino!” é o que eu quero dizer agora ao garoto morador da zona rural que nasceu não-mais-doente. “Acalma teu coração e perceba que a tua não-doença nada tem de interessante. Ela é apenas uma das marcas das suas potências e das suas possibilidades de existir”. Na verdade, por muito tempo, eu quis que meus pais, meus irmãos, minhas amizades, meus professores, meus primeiros afetos me dissessem tudo isso. Guardei até certo ressentimento de muitos por não me dizerem nada sobre não ser mais doente. Tive que, mais ou menos sozinho, dizer a mim mesmo, quase que como uma oração diária, “não há nada de errado com a sua não-doença! Acalma teu coração!”. Aos meus/minhas companheiros/as e amores não-doentes, não-mais-doentes, semi-doentes, por-vezes-doentes, nunca-doentes, eu digo: “Acalmem os seus corações! Sobrevivam! Orgulhem-se! Amem-se! Lutem e contem comigo pra isso!”
Vivam todos/as aquelas/es não-mais-doentes! Feliz dia da não-mais-doença a todos/as! E, sem pestanejar, apontem seus canhões contra o fascismo e contra a precarização das nossas vidas nunca-doentes, mas sempre possíveis e revolucionárias. E nunca, em hipótese alguma, posicionem as suas armas contra si mesmos.
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