No dia três de março de dois mil e vinte e um, o Brasil bateu novo recorde em número de  mortes: foram 1910 – MIL-NOVECENTOS-E-DEZ! – pessoas mortas em vinte e quatro  horas, ou, um falecimento a cada quarenta e cinco segundos. Atualmente, chegamos à  triste marca de quase 260 mil mortes. Em Manaus, a população morre asfixiada – 

literalmente –, por descaso governamental e falta de logística quanto aos suprimentos  hospitalares necessários. Por todo o país é decretado o colapso do sistema de saúde. O  desemprego atinge patamar histórico, mais de catorze milhões de brasileiras(os), afetando  sobretudo a população mais pobre. Ocorre, ao mesmo tempo, o fim do auxílio  emergencial – que deve ser retomado, após muita luta. Tudo isso agrava a situação de uma porcentagem de 12,8% de brasileiras/os sobrevivendo na pobreza extrema. O  negacionismo, presente em todas as esferas deste (des)governo como política ideológica,  traz efeitos deletérios a sociedade, sendo o mais imediato a morte de milhares de pessoas  todos os dias. Aliás, a falta de uma política governamental para a condução da vacinação  gera resultados catastróficos. Porém, no entanto, todavia – e pode-se acrescer aqui tantas  outras conjunções adversativas – o atual presidente não sofre impeachment – artifício este  utilizado, de forma fraudulenta, diga-se, para derrubar a primeira presidenta que este país  elegeu, Dilma Rousseff, em 2016. Por que isto não ocorre? 

Antes de responder a esta pergunta, é preciso definir o impeachment e estabelecer quando  este dispositivo constitucional pode ocorrer. 

Impeachment significa impedimento. Sua criação ocorreu em meados do século passado,  pela Lei 1.079/50. Nesta lei, há uma lista contendo os chamados crimes de  responsabilidade, sendo estes divididos em diversas categorias – crimes contra a  existência da união, crimes contra o livre exercício dos poderes constitucionais, crimes  contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, crimes contra a lei  orçamentária. Ou seja, nota-se, logo nas primeiras linhas do documento legal, uma  necessidade básica para ocorrer o impeachment contra alguém: esta pessoa deve ter  cometido crime de responsabilidade que, em outros termos, significa uma ação ilícita  praticada por agente político. Embora a lei seja antiga, ela serve para ditar os critérios  formais, técnicos, jurídicos, para que seja possível a realização do impedimento.

Dito isso, podemos retornar a pergunta-título deste texto.  

É fato que Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade: sugeriu intervenção militar  pontual – capítulo III, art. 7º, parágrafo 7: “incitar militares à desobediência à lei ou  infração à disciplina”; hostilizou países vizinhos, sobretudo a Venezuela, bem como  apoiou o ataque dos Estados Unidos da América que matou o general iraniano Qassem  Suleimani – capítulo I, art. 5º, parágrafo 3: “cometer ato de hostilidade contra nação  estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a  neutralidade”; propôs armar à população, no início da pandemia, para conter as restrições  “ditatoriais” implementadas por executivos estaduais e municipais – capítulo III, art. 7º,  parágrafo 6: “subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social”;  de forma deliberada, incitou atos contrários às recomendações de autoridades científicas,  no que diz respeito às formas de se portar frente ao corona vírus – capítulo V, art. 9º, parágrafo 7: “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do  cargo”. Enfim, outros exemplos poderiam ser citados para afirmar que Bolsonaro praticou  crimes de responsabilidade de sobra para ser impedido. Contudo, é preciso destacar que não é por falta de crime de responsabilidade que este sujeito não cai.  

Os mais otimistas poderiam dizer que faltam dois elementos para que se acione a Lei  1.079/50, quais sejam, a pressão social e a atuação do Congresso Nacional. Porém, penso  que a resposta é outra e, ao dizer isto, não nego, aqui, a força popular, que, aliás, já  promoveu muitas mudanças profundas, tanto no Brasil quanto em outros lugares.  Tampouco rebato o argumento sobre a necessidade da criação de uma opinião pública,  consequência direta de manifestações populares, favorável ao impedimento. Sobre a  atuação dos parlamentares, não é preciso argumentar que existem setores da esquerda  buscando a deposição do atual chefe do executivo federal desde há muito tempo, todavia  sem apoio dos setores do centro que se dizem democráticos. O argumento, portanto, para  a compreensão do não-impedimento de Bolsonaro deve ser buscado em outros motivos.  

Minha tese, partilhada por pessoas com muito mais capacidade intelectual que este que  está a escrever o texto, é que o bloco no poder[1] – conceito importantíssimo  desenvolvido pelo marxista grego-francês Nicos Poulantzas –, que não é homogêneo e  possui contradições e interesses específicos, uniu-se em torno da política e da agenda  neoliberal agora liderada por Paulo Guedes.  

Esta ideia faz sentido se levarmos em consideração que Michel Temer, produto direto,  assim como Bolsonaro, do golpe de Estado de 2016 (MIGUEL, 2020), também cometeu 

crimes de responsabilidade e não foi impedido em razão destes. Isto não ocorreu porque  Temer aprovou: 1) a PEC 55 – que congela os investimentos em Saúde e Educação, por  exemplo, pelos próximos vinte anos; 2) a reforma trabalhista; 3) a Lei da Terceirização;  ou seja, reformas neoliberais que visam a reprodução do capital, capitaneadas por frações  da burguesia que o sustentaram e, atualmente, sustentam o governo Bolsonaro.  

Infelizmente, portanto, enquanto o bloco no poder – que geralmente forma uma fração  hegemônica capaz de usurpar benesses estatais, controlando políticas governamentais,  auxiliando na elaboração destas e, obviamente, se beneficiando delas – for liderado pela  fração burguesa que não prima por uma política minimamente democrática, de costumes  e voltada ao desenvolvimento nacional, o atual mandatário do executivo federal seguirá,  à custa de milhares de mortes de brasileiras/os, presidindo a nação.

 

 

 


REFERÊNCIAS

MIGUEL, Luis Felipe. A atualidade do golpe de 2016. In: NORONHA, Gilberto Cézar  de; LIMA, Idalice Ribeiro Silva; NASCIMENTO, Mara Regina do (orgs.). O golpe de  2016 e a corrosão da democracia no Brasil. Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2020, p. 21-28.  

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Trad. Maria Leonor F. R.  Loureiro. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2019

 

 

 


NOTAS

[1] Nicos Poulantzas, em sua obra “Poder Político e classes sociais”, originalmente  publicada em 1972, desenvolveu o conceito bloco no poder para designar a relação  existente entre classes e frações de classes dominantes e o Estado. Para o autor, existem  interesses imediatos que se sobressaem, fazendo com que a burguesia fique presa a tais  interesses. Não se trata, portanto, de um acordo explicito, mas sim de uma unidade  política que visa a manutenção da ordem social garantida pelo Estado. Nas palavras de  Poulantzas, o bloco no poder é uma “unidade contraditória particular das classes ou  frações de classe politicamente dominantes, em sua relação com uma forma particular do  Estado capitalista” (POULATZAS, 2019, p. 240-241).  

 

 

 


Créditos na imagem: Autoria: @militante cansado. Disponível em: https://www.instagram.com/militantecansado/?hl=pt-br

 

 

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