Três Papas e uma categoria

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Em dezembro do ano passado a plataforma de streaming Netflix lançou três filmes produzidos com o objetivo de colocar a empresa no páreo das grandes premiações do cinema mundial: História de um casamento, de Noah Baumbach; O Irlandês, de Martin Scorsese e Dois Papas, de Fernando Meirelles.

No primeiro, a trama é compartilhada entre um casal que procura manter o amor e respeito em meio a um doloroso divórcio, no qual os papeis de mãe e pai são repassados a olhos nus, sobretudo no impactante diálogo no qual a advogada interpretada pela já premiada com um Globo de Ouro, Laura Dern, afirma que a sociedade não aceita uma mãe que cometa falhas. No filme que tem Robert de Niro, Al Pacino e Joe Pesci como grandes estrelas o enredo discorre por disputas entre grupos de mafiosos e negócios escusos envolvendo grandes sindicatos nos Estados Unidos das décadas de 1960/70. Nesse universo notadamente masculino as mulheres aparecem como adereço, com exceção para Peggy, filha do personagem título, interpretada na fase adulta por Anna Paquin. Embora tenha pouquíssimas falas, a personagem adquire um peso determinante para o desfecho da trama. Na história dirigida pelo brasileiro e que simula um encontro entre Joseph Ratzinger e Jorge Mario Bergoglio, no momento de crise do papado de Bento XVI, as personagens femininas centrais são aquelas que marcaram duas inflexões na trajetória do sacerdote argentino, antes deste se tornar o Papa Francisco I. A primeira delas é a noiva que ele abandonou para seguir o sacerdócio; a segunda, sua amiga, desaparecida após posicionar-se contra a ditadura instalada na Argentina em 1966.

Em meio a tantas questões que os filmes nos trazem para pensar a condição das mulheres na nossa sociedade, dedico as palavras a seguir ao “Dois Papas”. Talvez por uma série de coincidências que fizeram esta ex-protestante se interessar pelo Vaticano e, em especial, pelos Papas João Paulo II, Bento XVI e Francico I em 2019. Tudo parece ter começado no dia 1 de janeiro de 2019, quando tive a oportunidade de visitar a cidade eterna e receber a benção do Papa Francisco I no primeiro Angelus do ano. Naquela oportunidade o Papa exortava o grupo que se aglomerava na Praça de São Pedro a tomar a responsabilidade pela construção de um mundo mais justo e pacífico. O convite ao engajamento não eximia os governantes em seu discurso, que parecia estar muito atento para a posse presidencial que aconteceria em Brasília horas depois. O Papa cuja popularidade inconteste se alicerça no constante envolvimento com as questões no mundo no qual vivemos e na adoção de uma postura mais reformista da própria igreja, mais uma vez dava amostra de sua concepção de religiosidade comprometida com a diversidade de seu rebanho e a construção de um mundo mais solidário. Fechando o ciclo de 2019, por acaso, assisti ao filme do Meirelles no último dia do ano.

Mas minha relação com os dois Papas não parou por aí. Motivada pela necessidade premente de participar de maneira mais responsável nos debates sobre os estudos de gênero e as disputas políticas em torno daquilo que grupos conservadores brasileiros tem aglutinado sob a alcunha de “ideologia de gênero”, dei início a um projeto de pesquisa cujo objetivo central consiste em historicizar o surgimento e os objetivos da teoria de gênero e da ideologia de gênero, para compreender como cada um tem interferido no ensino de história nas últimas décadas no Brasil. Foi nesta seara que me deparei com um episódio central desta disputa, a IV Conferência Mundial das Mulheres, realizada em setembro de 1995, em Pequim. Feministas das mais diversas nacionalidades defendiam mudanças nas condições de vida das mulheres, por meio do combate à feminização da pobreza; à desigualdade no acesso à educação, à saúde e à participação política; à violência contra a mulher, bem como os efeitos dos conflitos armados sobre a mulher; a insuficiência de mecanismos institucionais para a promoção do avanço da mulher; entre outros.[1] Os debates em Pequim contribuíram sobremaneira para que a categoria de gênero ganhasse espaço contra concepções biologizantes ou que ainda consideravam a condição das mulheres a partir de uma lógica binária que afirma o masculino e o feminino como naturezas.

Mas a resposta a esse empoderamento feminino – conceito central para as resoluções da IVCMM e alvo de críticas ao viés neoliberal que algumas políticas públicas assumiram desde então – veio antes mesmo da conferência acontecer. Em junho de 1995, o Vaticano tornou pública a Carta do Papa João Paulo II às mulheres, documento no qual a Igreja disputava a definição de mulher e da feminilidade, ancorada em pressupostos anti-históricos e que afirmavam a imagem do feminino a partir da função dogmática atribuída à Maria, mãe de Jesus. A cúpula do catolicismo claramente visava os documentos de status internacional que seriam ali elaborados e sua influência em políticas públicas. A partir destes embates toma corpo uma verdadeira cruzada contra os estudos de gênero, que paulatinamente serão acusados de ideológicos por grupos conservadores em vários países do mundo.

Em 2004, já na vigência do papado de Bento XVI, o Vaticano lançou um documento intitulado Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na igreja e no mundo, no qual os estudos de gênero são caracterizados como deturpações ideológicas que ameaçam instituições sagradas como a feminilidade e o casamento. Segundo a Carta, a luta feminista contra a supremacia de um sexo sobre o outro pretende promover a dissolução das diferenças naturais entre os sexos, ao tornar a categoria de gênero – que segundo a Igreja seria uma dimensão estritamente cultural – a principal referência para pensar essas relações. Peço permissão para citar o documento no qual o Vaticano conclui que “Uma tal antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico, acabou de facto por inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionamento da família, por sua índole natural bi-parental, ou seja, composta de pai e de mãe, a equiparação da homossexualidade à heterossexualidade, um novo modelo de sexualidade polimórfica”.

Podemos ver como o movimento feminista, os estudos de gênero e a própria categoria ocupam papel de destaque entre as preocupações da Igreja Católica e como sua resposta fortalece a concepção de que a teoria de gênero seria responsável pelo surgimento de uma ideologia permissiva e aniquiladora de instituições sagradas como o casamento, a família, a feminilidade e, no limite, a própria dogmática católica. Talvez não por coincidência, o piloto do projeto do “Escola sem partido” foi elaborado pelo advogado Miguel Nagib em 2004 e um de seus pilares é a afirmação de que há em curso no Brasil uma pedagogia doutrinadora com o objetivo de difundir o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”.

Mas até aqui não seria de se admirar que o papado de Bento XVI, um conservador declarado, tenha se empenhado em conter as transformações que a crítica dos movimentos feministas e os estudos de gênero tem endereçado à condição de submissão que tem sido imposta às mulheres, seja por razões econômicas, culturais ou religiosas. Afinal, o controle do corpo feminino e da expressão da individualidade das mulheres é de interesse da Igreja há séculos. Porém, em dois de fevereiro de 2019, o Papa Francisco I assinou um documento intitulado “Homem e mulher os criou” para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação, destinado aos setores da educação católica.

Embora o documento seja endereçado às instituições católicas e aos profissionais da educação que atuam em tais escolas, a retórica universalista ainda é uma marca indelével da argumentação da chefia da Igreja Católica. Numa tentativa de forjar o diálogo, como proposto no título do documento, a argumentação parte do reconhecimento da importância dos estudos sobre o gender – a palavra não é traduzida nem para o italiano, nem na versão do documento para o português, a opção deliberada parece apontar para a “setorização” do debate. Não obstante, se por um lado as investigações sobre o “gender” são aceitas por “aprofundar adequadamente o modo em que se vive, nas diversas culturas, a diferença sexual entre homem e mulher”, ao longo de todo documento é afirmada a “visão antropológica cristã”, que estabelece uma relação intrínseca e irrefutável entre sexo e gênero e a concepção da masculinidade e da feminilidade através de sua vocação para a reprodução. Neste aspecto, não poderíamos deixar de destacar a negação recorrente no documento de vidas e famílias cujos projetos não estejam comprometidos com a reprodução.

No filme de Meirelles, um dos temas centrais no diálogo entre os dois papas é a pedofilia. Denúncias de crimes cometidos por religiosos minaram o papado de Bento XVI, obrigaram a Igreja a se posicionar publicamente e assumir a responsabilidade por décadas de omissão. Até quando a Igreja vai fingir não saber que a atitude abusiva de tantos párocos e demais líderes da Igreja estão vinculadas a uma cultura patriarcal, cuja característica fundamental é o predomínio da violência nas relações de poder? Violência física, simbólica, econômica, política. Essa violência direcionada às mulheres há séculos também se materializa no controle da vida e do corpo das crianças e em inúmeras relações nas quais a masculinidade é performada através da afirmação da virilidade, do autoritarismo e do egoísmo permitido somente aqueles cuja existência é adornada por uma aura de universalidade.

Se o Papa dos pobres parasse para me ouvir com a mesma atenção e respeito com os quais eu o ouvi na Praça de São Pedro, eu pediria para ele o seguinte: que a Igreja mostrasse mais do que empatia pela condição de pobreza das mulheres, que ela efetivamente se abrisse para a compreensão de que o controle do corpo feminino, da reprodução e da realização individual das mulheres é hoje uma das bases desse sistema que possibilita que as 26 pessoas mais ricas do mundo concentrem mais renda do que a metade mais pobre da população mundial, equivalente a 3,8 bilhões de pessoas. Não há combate efetivo à pobreza e à pedofilia que não considere as estruturas de dominação e exploração das mulheres.

Provavelmente os jovens que tem acesso à plataforma de streaming vão se interessar menos pelos filmes citados do que pela segunda temporada de Sex Education. Talvez eles tenham razão.  No final das contas, o sistema vende conservadorismo, mas também tem seus nichos progressistas. O capital transforma qualquer coisa em lucro, de Papa a Che Guevara, só para falar dos argentinos.

 

 

 


NOTAS

[1] Nos documentos ainda é muito persistente o uso do “mulher” ao invés de “mulheres”.

 

 

 


Créditos na imagem: Cena do Filme “Dois Papas”. Netflix, 2019.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Gésssica Góes Guimarães Gaio

Professora Adjunta de Teoria da História e História da Historiografia da UERJ e pesquisadora da COMUM.

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