Eu olho e vejo espíritos todos os dias. Espíritos dos meus ancestrais que me olham de volta, através de olhos triangulares de gato. Olhos triangulares de um castanho profundo, quase negros. Dependendo como o sol bate, rajadas avermelhadas podem aparecer, mas continuam sendo olhos triangulares de gato que me olham de volta, me lembrando dos espíritos que andam comigo a todo momento.
São espíritos que se encantaram a muito ou a pouco tempo, dos meus ancestrais que nunca conheci, ou dos meus parentes que tanto amo. São os olhos castanhos, triangulares de gato do meu pai que vejo no espelho, me encarando de volta, todos os dias, e sei que ele e tantos outros e tantas outras caminham comigo, nessas trilhas da vida.
Eu abaixo meus olhos castanhos e triangulares para minhas mãos grandes e fortes, com unhas arredondadas, e vejo as mãos da minha avó. Minha anciã e espírito mais recente a me acompanhar. Ela que sem saber me ensinou a acreditar nos encantados, nos guias, e a agradecer ao Caboclo protetor da família, que abre as trilhas e protege dos perigos. Ela que escolheu a Lua pra me apadrinhar.
Sou afilhada dupla da Lua, abençoada por Jaci e Jacira. Jaci, na cosmologia Tupi, é a Lua, quem abençoa os frutos e a vida vegetal. Jaci é uma adaptação de Iací, e para Luís da Câmara Cascudo, Iací é tratade como feminino, como todo o ciclo lunar e o que gira em torno desse ciclo. Particularmente não gosto do Câmara Cascudo, mas aqui ele vai ser útil para nos explicar que Jaci/Iací abençoa junto à Lua pois é a própria Lua na cosmogonia Tupi, e Jacira ou Iacirá é o mel dessa mesma Lua. O sufixo “irá” de Jacira, aparentemente, está ligado ao significado “mel”, embora eu não tenha encontrado uma fonte confiável para confirmar a informação.
Jaci/Lua encantada que interfere nas idas e vindas das águas, das marés, tal qual sua parente Iemanjá. Nessas águas que conectam os encantados e ancestrais, águas que habitam a terra, corpo e corpo-território. A Lua presenta duas faces então: em Jacira, que pode ser doce como mel, em seu lado mais suave; mas em Jaci em sua forma plena e cheia, que pode mover marés e oceanos, trazer ressacas e mostrar as forças das águas. Acredito que foi uma boa escolha para apadrinhamento…
É costume na minha família manter a conexão com a terra e voltar à Ela, como pó, depois de encantar. Meu umbigo está enterrado no pé do limoeiro, pois somos da terra e dela nos nutrimos. Meu corpo é território ancestral, dos de quem me lembro e dos que se perderam. Dos que amo, mas também dos que foram calados, em um compromisso firmado com os espíritos que me olham de volta pelos olhos castanhos, triangulares de gato, até que eu seja devolvida à Mãe, abençoada por Iací.
Créditos na imagem: Reprodução: Caboclo protetor – acervo pessoal da autora.
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Helena Azevedo Paulo de Almeida
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