Em janeiro de 2023 completou dois anos em que a montadora estadunidense Ford fechou suas fábricas no Brasil. Se procurarmos pelas repercussões à época, encontraremos muito barulho sobre a tomada dessa decisão por aqui. Não por menos, já que não é raro ouvirmos que todo brasileiro é apaixonado por carros. Compartilhamos essa “constatação” com a excelente análise apresentada pelo comediante Gregório Duvivier em seu programa Greg News, exibido pela plataforma de streaming HBO Max. Na descrição do episódio intitulado “BR-319”, lemos: “Neste episódio a gente fala sobre a paixão do brasileiro por carro, um caso de amor que pode acabar mal com a tentativa de asfaltar um trecho bem grande da Amazônia. Por que isso tem tudo pra dar errado?”.[1] Se fizéssemos essa pergunta para o Oswald de Andrade dos anos 1930, ele nos diria que já estávamos “fordidos”.
Não por acaso, se olharmos para a nossa história, não é difícil perceber que a expressão “rodoviarismo” é o termo amplamente usado para falar desse projeto de transporte que nasceu já no final do século XIX, atravessou o XX e chegou aos dias atuais. Segundo Daniel Monteiro Huertas, “iniciado em 1893 com o registro da circulação do primeiro automóvel no Brasil, na capital paulista, ao longo da República Velha, uma série de leis federais incumbiu os governos estaduais a implementar as suas próprias redes rodoviárias” (HUERTAS, 2022, p. 2).
Hoje, bastaria acompanhar, por exemplo, as últimas decisões do governo Lula sobre os subsídios para a compra de carros populares e a reação das montadoras, que já anunciam a redução nos preços, ao anúncio do governo federal. Pelo menos desde de Washington Luís, para quem governar era “abrir estradas”, passando pelos governos de Getúlio Vargas, de Juscelino Kubitschek e dos militares pós Golpe civil-militar de 1964 e chegando aos dias de hoje, com raros lampejos de tentativa de valorização de outros modelos de transporte, os carros e as autoestradas sempre foram o centro das preocupações com transporte das administrações públicas.
Contudo, o que parece ter ocorrido com a Ford foi uma mudança de perspectiva, digamos. Em texto de dezembro de 2022, publicado no Monitor Mercantil, o que aconteceu foi uma “reviravolta” da montadora no Brasil. Segundo lemos, “fábricas fechadas, enxugamento de concessionárias, portfólio limitado e apenas veículos importados. Há quase dois anos, o destino da Ford não parecia muito promissor, após a montadora encerrar sua produção de carros e caminhões no Brasil”. Entretanto, “na última semana, a Ford anunciou que além de ter voltado a lucrar no país, vai lançar 10 novos veículos em 2023” (NUNES, 2022). Ou seja, o mercado de carros talvez não estivesse assim tão ruim por aqui…
Ainda sobre a Ford, vejamos como ela aparece em solo brasileiro. Retiramos da sua página na Wikipedia, chamada “Ford do Brasil”, o seguinte parágrafo:
Ford do Brasil é a subsidiária brasileira da montadora estadunidense Ford. Fundada em 1919, a Ford do Brasil dedicou-se inicialmente à importação de veículos produzidos no exterior. Foi a segunda filial sul-americana da Ford, depois da Ford Argentina, e a primeira a se instalar no Brasil, inicialmente num armazém na rua Florêncio de Abreu, na cidade de São Paulo, mudando-se um ano depois para a Praça da República, até a inauguração, em 1921, de instalações especialmente projetadas para funcionarem como linha de montagem de veículos, na Rua Solon, no bairro do Bom Retiro. O automóvel Modelo T e o caminhão Modelo TT foram os primeiros veículos montados pela Ford no Brasil. (FORD…, 2023)
Contudo, segundo Ned Ludd em “Carros e remédios”, publicado no curiosíssimo livro, que carrega um excelente título, Apocalipse motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído, esse quadro de otimismo desenvolvimentista via automóvel não passava de uma solução mítica:
Henry Ford, decidindo abrir sua empresa no Brasil em 1919, afirma que o automóvel está destinado a fazer deste país uma grande nação. No Brasil, governar viria a ser sinônimo de abrir estradas. Automóvel-economia-desenvolvimento: o mítico caminho que nos levaria da fome à depressão. (LUDD, 2005, p. 25)
Mas o que isso tem a ver com o escritor paulista Oswald de Andrade, você pode estar, na altura desse ensaio, se perguntando. O que o modernista dos anos 1920 tem a ver com essa história de carros, subsídios, montadoras?
Como na própria passagem citada acima nos indica, foi na São Paulo dos anos 1910 que surgiu a primeira filial da empresa, cenário favorecido pelo contexto do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da modernização da cidade. Nota-se também a importância, ligado ao contexto, da fundação do primeiro Automóvel Clube do Brasil (1907), no Rio de Janeiro, espalhando, posteriormente, por outras capitais com o passar do tempo.
Segundo lemos,
(…) o clube atendia a uma necessidade da elite carioca das primeiras décadas do século XX que, vinda da monarquia e sob forte influência cultural inglesa, procurava criar clubes de sociabilidade onde pudessem exercer a hierarquia social e, no caso específico, fomentar a cultura automobilística como meio de transporte, lazer, esporte e a abertura de autoestradas. (AUTOMÓVEL…, 2022)
Ou seja, um grupo elitizado de pressão sobre o poder público por mais carros e estradas.
É nesse caldo, portanto, que surge o Oswald de Andrade que nos interessa. Para além de escritor, lugar que o consagrou nas letras nacionais, ele também foi por toda a sua trajetória um homem da imprensa. Desde de 1909 havia se iniciado na vida do jornalismo profissional ao escrever primeiramente para o Jornal Popular, quando contava apenas 19 anos. A partir daí, o jornalismo o acompanhou até os anos de 1950, quando da sua morte.
E é possivelmente do final dos anos 1920 e começo dos anos 1930 que encontramos alguns dos seus escritos mais curiosos: algumas anotações manuscritas reunidas em livro póstumo intitulado Dicionário de bolso, sob a organização da pesquisadora e professora Maria Eugenia Boaventura. Como o título nos aponta, o que encontramos é uma série de verbetes curtos, agressivos e bem-humorados que carregam a marca da veia antropofágico-comunista do escritor desse período de seu itinerário. Ou, segundo Boaventura, onde o escritor teria manifestado “exaustivamente seu ódio contra a burguesia ou contra a classe dominante” (BOAVENTURA, 2006, p. 18). Nessa empreitada, sua metralhadora giratória atirou para todos os lados: de “Cabral, o culpado de tudo” (ANDRADE, 2006, p. 52) a “Loyola, má companhia de Jesus” (ANDRADE, 2006, p. 53) passando por “Nietzsche, super-Hitler” (ANDRADE, 2006, p. 62) ou “Mussolini, macarronada de sangue” (ANDRADE, 2006, p. 68).
Sobre Henry Ford, que aqui nos interessa mais de perto, escreveu: “Criador e experimentador do neologismo ‘forder-se’, que quer dizer ‘tomar na cabeça ou em outro qualquer lugar por excesso ou falta de iniciativa’” (ANDRADE, 2006, p. 69).
E em nota ao final do livro, a explicação para essa consideração:
Telegramas do Norte publicados pelos jornais de São Paulo referem que o Tenente Barata, a gentil pedido da Concessão americana que rói o nosso território, mandou desocupar e queimar seiscentas casas miseráveis de famílias nacionais, que não queriam abandonar o seu quinhão de terra nas mãos dos ricos invasores. As 600 famílias saíram para, quem sabe, através do mundo [texto incompleto]. […] lugar por excesso ou falta de iniciativa. […] Carro barato de que se serve o Tenente Barata, para vender barato a Amazônia ao imperialismo americano. (ANDRADE, 2006, p. 98-99)
Também hoje, se voltarmos à questão da política atual do governo federal sobre os subsídios para a compra de carros ditos populares, as críticas também se avolumam. Por exemplo, uma das discussões colocadas no espaço público é sobre a necessidade de redução das emissões de gases do efeito estufa, um dos principais causadores das mudanças climáticas no mundo atual. E nesse contexto, a Amazônia, assim como já observado por Oswald nos anos 1930, já ocupava, como ainda ocupa hoje, lugar de destaque e preocupação.
Assim, como se tivesse pressagiando o futuro que ainda nos aguardava, influenciado por uma realidade que se mostrava a sua frente, Oswald de Andrade, quase profeticamente, concluiu: “Por essas e outras é que estamos ‘fordidos’”.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Oswald de. Dicionário de bolso. São Paulo: Globo, 2006.
AUTOMÓVEL CLUBE DO BRASIL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2022. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Autom%C3%B3vel_Clube_do_Brasil&oldid=63343656>. Acesso em: 22 jun. 2023.
FORD DO BRASIL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2023. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ford_do_Brasil&oldid=66131661>. Acesso em: 22 jun. 2023.
HUERTAS, Daniel Monteiro. Quando governar é abrir estradas: o processo de construção histórica do rodoviarismo em São Paulo. Revista História, São Paulo, v. 41, e2022042, 2022. DOI: <https://doi.org/10.1590/1980-4369e2022042>.
LUDD, Ned. Carros e remédios. In: LUDD, Ned. Apocalipse motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído. 2. ed. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005, p. 15-33.
NUNES, Lucia Camargo. A reviravolta da Forda no Brasil. Monitor Mercantil, 2022. Disponível em: <https://monitormercantil.com.br/a-reviravolta-da-ford-no-brasil/>. Acesso em: 22 jun. 2023.
NOTAS:
[1] DUVIVIER, Gregório. “BR-319”. HBO Max, 7a temporada, 30min, 2023. E já que estamos falando de cultura audiovisual, também vale destacar a minissérie documental, também exibida pela mesma plataforma, intitulada Transamazônica: uma estrada para o passado, de 2019, sob a direção de Jorge Bodanzky, o mesmo que realizou o excelente Iracema: uma transa amazônica, no ano de 1974.
Créditos na imagem: Reprodução: Imagem retirada do vídeo “¿Qué es el FORDISMO?”, do canal do YouTube Bluecinante, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9jGf-q9RcfA&ab_channel=Bluecinante>. Acesso em: jun. 2023.
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Valdeci da Silva Cunha
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Journal of Theory and History of Historiography
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Excelente ensaio! Vale muito a leitura.
Obrigado pela leitura e pelo comentário, Rafael!
Um abraço!