Ao longo de mais de 500 anos de conflitos e invasão de terras originárias, os processos de dominação e subalternização foram muitos, entendendo aqui como subalternizados os grupos que vivem a margem do paradigma hegemônico, postos constantemente e violentamente em condição de inferioridade, como aponta Gayatri Spivak, em “Pode o subalterno falar?”. Assim, podemos delimitar duas grandes formas gerais desses processos sendo eles físicos e culturais/simbólicos. No entanto, destaca-se aqui o primeiro sendo consequência do segundo e vice-versa; ambos se retroalimentando constantemente. Dessa forma, aponta-se ainda que frente a essas formas de violências, seguiram-se formas múltiplas e mutáveis de resistências dos povos originários, sejam resistências físicas e/ou culturais, destacando seus protagonismos e agenciamento de suas ações.
Como apontou John Manuel Monteiro, em “Tupis, Tapuias e historiadores” (2001), o processo colonizatório dividiu os povos indígenas em duas grandes generalizações: Tupis e Tapuias, sendo os primeiros considerados como passíveis de “civilização” e os segundos como bravios irredutíveis, restando para eles o massacre. Os Tupis, assim, seriam úteis aos europeus invasores, enquanto os Tapuias seriam encarados como empecilhos até o período Imperial, e mesmo em nossa contemporaneidade.
Inicialmente, travou-se uma intensa disputa em relação ao poder de controle sobre os povos indígenas e, no período colonial, essas tentativas de controle se estenderam para a mão-de-obra (incluindo escrava), pelas almas (através da catequização), ou ainda pelo conhecimento que aqueles povos ofereciam. O poder sobre o conhecimento territorial, localização de víveres para exploração (incluindo ervas, como a poaia nos sertões mineiros) e fixação estratégica de população nos territórios, fizeram parte de exemplos que as ciências indígenas ofereciam aos invasores, como formas de sobrevivência naquele território, como demonstra Sérgio Buarque de Holanda, em “Caminhos e Fronteiras” (1994). O autor ainda menciona que, se não fosse por tais conhecimentos, os colonizadores não teriam sobrevivido o suficiente para manter as invasões.
Por isso, uma forma de desestabilização das resistências, além de método para escravização daqueles povos, foram os “descimentos”. Utilizados mais ou menos intensamente a depender do período e região, os descimentos eram expedições para escravização de indígenas e, consequentemente, remoção de suas terras originárias, como destaca John Monteiro em “Negros da Terra” (2009). Como conheciam muito bem seus territórios de origem, o rapto e a comercialização daqueles sujeitos dificultavam as resistências. Um exemplo amplo e realizado em uma perspectiva em longa duração foi o caso da escravização dos Carijós. De acordo com John Hemming, em “Ouro Vermelho”, esse povo se localizava na região da Lagoa dos Patos, atual Rio Grande do Sul. O processo de desterritorialização forçada (e por isso, dominação física e simbólica) foi tão intenso que se pode encontrar registros desse povo em Mariana e Ouro Preto, como escreveu Renato Pinto Venâncio, em “Os últimos Carijós”. O autor aponta também que as tentativas de aculturação, desarticulação de resistências e separação de famílias, foram tão intensas que seus registros não explicam se eram do mesmo povo originário do sul, ou se esta denominação seria uma nova forma de auto identificação de um número maior de indivíduos ou povos, que encontraram formas de resistirem culturalmente e coletivamente, em oposição à diáspora indígena. Vemos as consequências desse êxodo forçado ainda hoje, a partir da negação do direito originário à terra, enfatizado pelo debate sobre o Marco Temporal que, articulado aos processos de expulsão dos povos indígenas de suas terras, afirma que apenas têm direito sobre os territórios ocupados a partir de 1988, negando as violências anteriores.
Dentre as violências simbólicas, destacam-se as proibições de suas línguas, crenças e o processo de evangelização forçada. A proibição de suas línguas foi intensificada pela promulgação do Diretório dos Índios, de acordo com Mauro Cézar Coelho, em “Do Sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia – o caso do Diretório dos Índios” (2005). Além disso, o autor aponta o “incentivo” ao casamento interétnico e à aceitação do cristianismo. No entanto, mesmo com as violências em longa duração, percebe-se o resgate sobre as línguas originárias, principalmente após a redemocratização do Brasil, como defende Manuela Carneiro da Cunha, em “Introdução a uma história indígena” (2006). Um exemplo desse resgate é a língua Puri, como demonstra Aline Rochedo Pachamama, em “Boacé Ucho” (2020).
O processo de evangelização seria, também, mais ou menos intenso a depender do período e região analisados, e ainda mediante a legislação em voga e a atuação da Igreja. A Bula Papal Sublimis Deus, direcionada aos povos indígenas, afirmava que todas as nações tinham a capacidade de aprender a fé cristã. Devido a isso, se destaca a atuação dos jesuítas (pelo menos, até sua expulsão durante o período Pombalino), responsáveis principais pela catequização dos povos indígenas, com destaque para os Tupis, como destaca Carlos Alberto Zeron, em “Linha de Fé” (2011). No livro, o autor demonstra a heterogeneidade da atuação jesuítica também em relação ao uso de mão de obra, a depender da legislação do período, muitas vezes mascaradas pelo direito de tutela.
As leis oscilavam intensamente no que tange a questão indígena, ora perseguindo-os ora “protegendo-os”. Aponta-se aqui o caso dos Botocudos de Minas Gerais, que foram alvo da Carta Régia de 1808, que deflagrava uma guerra “justa” ao povo considerado antropofágico. Esta identificação canibal foi construída com objetivo de depreciação intensa e para justificar seus massacres, pois se localizavam amplamente nas regiões dos Vales dos Rios Doce, Mucuri e Jequitinhona: bacias hidrográficas necessárias ao escoamento de víveres, como aponta Maria Hilda Baqueiro Paraíso, em “Tempo da dor e do trabalho”. O termo “Botocudo” é mais uma generalização feita na língua portuguesa, invisibilizando a diversidade dos povos originários. Próximos a estes povos, se encontravam também os Puris, que resistem ainda hoje através do resgate de suas línguas e da retomada de suas identidades, ainda amplamente negadas, até o final do governo Bolsonaro, pela FUNAI.
Defende-se assim, a partir da evidenciação de violências constituídas em longa duração, uma ampla revisão historiográfica sobre fontes e abordagens mais tradicionalmente euro e etnocêntricas. É o caso das Missões Jesuíticas dos Sete Povos. Contra um discurso nacionalista, se encontra o texto “Missões Jesuíticas dos Setes Povos e o Tratado de Madri (1750)” (2019), de Mateus Cari e Paula Faustino Sampaio. Os autores destacam o processo de transformação cultural e constituição da identidade étnica “guarani-missioneiro” e a luta contra as determinações do Tratado de Madri. Essa resistência foi tão forte e persistente que o líder Sepé Tiaraju se encontra em processo de canonização desde 2018. Cari e Sampaio partem de perspectivas que transcendem às análises eurocêntricas do recorte, destacando o protagonismo indígena, no que tange as negociações sobre aquele cenário geopolítico, assim como sua própria sobrevivência física e cultural.
A trajetória do Brasil está repleta de exemplos dessas resistências, que se transforam ao longo do tempo. É o que demonstra Maria Regina Celestino de Almeida, no livro “Metamorfose Indígena”, sobre a construção dos aldeamentos indígenas, destino de muitos dos descimentos, mencionado anteriormente. Almeida aponta que a organização dos aldeamentos era feita inicialmente para inibir revoltas, colocando povos tradicionalmente rivais no mesmo espaço, por exemplo. No entanto, a autora destaca a atuação de vários sujeitos que escreviam cartas à Coroa, realizando demandas individuais e coletivas, tendo pareceres favoráveis. Em muitas vezes. Além disso, evidencia-se o conhecimento das fórmulas de requerimentos portugueses (ao longo do período colonial e imperial) por parte desses indígenas, ou seja, do conhecimento social e jurídico para terem suas demandas assistidas. Aqueles povos resistiam também em diferentes lados, de acordo com seus próprios interesses, em conflitos como a Insurreição Pernambucana. Em estudo recente, Eduardo Navarro traduziu uma série de cartas escritas em Tupi, trocadas por indígenas nos diferentes lados do movimento, demonstrando que, mesmo com uma pressão para a não utilização de suas línguas-mãe, havia resistência e atuação contra essas opressões (o estudo se encontra no prelo). Outro ponto a ser salientado, é a adaptação da oralidade à adequação escrita, subvertendo a grafia dos invasores às suas próprias demandas.
As proibições das línguas coexistiam junto com a obrigação de abandono de seus povos e nomes originários, dominação violenta que teve duras consequências ao longo do tempo, como demonstra Maria Leônia chaves de Resende, em “Gentios Brasílicos” (2003). Na tese, a autora demonstra a construção de uma invisibilidade sobre o registro das ancestralidades indígenas, principalmente em documentações cartoriais, pois ao serem batizados, aqueles sujeitos eram obrigados a abandonarem seus nomes e adotarem nomes cristãos.
Outras violências simbólicas aconteceram mediante a literatura romântica do século XIX, que generalizou e engessou os povos indígenas em um passado longínquo, como se aqueles povos não pertencessem àquele período, como mostra Eduardo Martins, em “A fonte subterrânea”. Resistindo frente à literatura como esta, está a literatura indígena contemporânea com autores como Daniel mundurucu, Márcia Kambeba, Julia Dorrico, Ailton Krenak, dentre tantos outros.
Ao longo do século XX ainda temos outras tentativas de dominação, mascaradas de proteção como foi o Serviço de Proteção ao Índio e, em muitos parâmetros a própria FUNAI. Foi na transição do SPI para FUNAI que realizou-se a escrita do que ficou conhecido como “Relatório Figueiredo”, documento com mais de 7 mil páginas denunciando assassinatos, tortura, raptos, estupros entre os povos indígenas, além da corrupção presente no próprio SPI. O documento foi tido como “perdido” durante a ditadura civil-militar e apenas reencontrado com a Comissão da Verdade, em 2012, como aponta Rubens Valente, em “Os Fuzis e as Flechas” (2017). As resistências continuam, em todos os campos de atuação, incluindo por meio do Acampamento Terra Livre, em Brasília, onde inúmeros povos, das mais diferentes regiões do Brasil, se reúnem contra a invasão de suas terras pelo agronegócio, contra a mineração das Terras indígenas e a favor do acesso à saúde, enfim, em favor à vida.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas: Identidade e Cultura nas Aldeias Coloniais do rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013
CARI, Mateus B; SAMPAIO, Paula F. Missões jesuíticas dos Sete Povos e o Tratado de Madri (1750): protagonismo, resistência e autodeterminação dos índios na luta pela terra. Revista Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 38. 2019.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo – SP, ClaroEnigma, 2015.
COELHO, Mauro Cezar. Do Sertão para o Mar – Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1750 – 1798). Tese de doutorado defendida pela USP, 2005.
HEMMING, John. Ouro Vermelho: a conquista dos índios brasileiros. São Paulo – SP, EDUSP, 2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo – SP, Companhia das Letras, 1994.
MARTINS, Eduardo Vieira. A Fonte Subterrânea: José de Alencar e a Retórica Oitocentista. São Paulo: Editora EDUSP, 2005.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo – SP, Companhia das Letras, 2009.
———————————. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Campinas – SP, Tese apresentada para o concurso de livre docência na UNICAMP, 2001.
PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Guido Pokrane, o imperador do Rio Doce. Londrina: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História, 2005.
RESENDE, Maria Leonia Chaves de. Gentios Brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista. Tese defendida pela UNICAMP, 2003.
SPIVAK, Gayatry Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
VALENTE, Rubens. Os Fuzis e as Flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das letras, 2017.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Os últimos Carijós: escravidão indígena em Minas Gerais 1711-1725. Revista Brasileira de História, N. 17, vol. 34, 1997.
ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Linha de Fé: A Companhia de Jesus e a Escravidão no Processo de Formação da Sociedade Colonial (Brasil, Séculos XVI e XVII). São Paulo: EDUSP, 2011.
Créditos na imagem: Reprodução: Foto de cinco mil cruzes plantadas em Brasília na página de Facebook da Itiban Comic Shop.
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