MIGNOLO, Walter. Pensamento liminar e diferença colonial. In. Histórias locais, projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003. p. 79 – 133.

 

O texto “Pensamento liminar e diferença colonial”, presente na obra “Histórias locais, projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar” é uma reflexão extremamente necessária a todas/os as/os estudiosas/os das ciências humanas preocupadas/os em combater as violências epistêmicas nas suas práticas intelectuais. Mignolo inicia o capítulo compartilhando sua experiência num evento científico ocorrido em março de 1998, na Universidade da Tunísia. Na ocasião, ao fim da sua fala no evento, Mignolo relata que uma historiadora da arte chamada Rashida Triki lhe fez uma pergunta relacionada à questão modernidade/colonialidade, a qual ele afirma não ter sido capaz de responder num primeiro momento devido as diferentes perspectivas que envolviam as duas pessoas então unidas por um problema. Se para o professor argentino era evidente que a modernidade tinha como “o lado mais escuro” a colonialidade, para a historiadora tunisiana a questão que relacionava a modernidade a colonialidade estava pautada numa visão europeia pós- Iluminista, diferente da perspectiva das Américas defendida por Mignolo. Tal situação é tomada como exemplo pelo autor para pontuar que a diferença colonial atua em dois direcionamentos, de modo a rearticular fronteiras internas relacionadas aos conflitos imperiais, e de modo a rearticular fronteiras externas ao atribuir novos significados à diferença colonial.

O autor segue dissertando a respeito dos debates realizados com outros intelectuais nesse sentido, pontuando o que cada um concebe como colonialidade e sua relação com a modernidade. Para o antropólogo argentino Néstor García Canclini, por exemplo, o “período colonial” é considerado um momento anterior à “modernidade”, onde essa última seria o recorte de tempo que compreenderia as independências de países em relação à Espanha e Portugal. Essa forma de pensar um período colonial como algo que antecede a modernidade vai de encontro com o que defende Mignolo, em que a colonialidade seria a “face oculta” da modernidade. Essa questão é pensada mais profundamente em seu texto que introduz The darker side of western modernity: global futures, decolonial options, publicado em 2011. Aqui, Mignolo disserta sobre os padrões coloniais de poder elencando vários nós histórico- estruturais que exemplificam suas inter-relações.

No entanto, tal explicação é feita pelo autor também na introdução da obra aqui analisada. Mignolo pontua mais uma vez que sua perspectiva é a de que a partir do século XVI, a conexão do Mediterrâneo com o Atlântico a partir de um novo circuito comercial inaugura a modernidade e a colonialidade, simultaneamente. Problematiza aqui as reflexões que trazem consigo a separação que coloca a modernidade em função da Europa e a colonialidade em função dos não europeus. Aqui ele pontua a Argélia, país do norte da África que foi colonizado pela França na primeira metade do século XIX e novamente na metade do século XX, com muitos massacres, torturas e execuções por parte dos franceses. Segundo o autor, a Argélia dificilmente será incluída como parte da história nacional da França, embora a história nacional argelina não possa ignorar a dura presença francesa.

Em constante diálogo com demais teóricos, Mignolo segue afirmando que as perspectivas da América Espanhola, da região de Maghreb e do Caribe repensam de maneira crítica o sistema moderno mundial, de forma que não são contra-histórias ou apenas histórias diferentes narradas por intelectuais, mas sim novas concepções epistemológicas que objetivam questionar o construto social a qual foram submetidas desde o século XVI pela racionalidade europeia.

Dissertando sobre a relação modernidade/colonialidade através da questão da colonialidade de poder proposta por Aníbal Quijano, Mignolo faz algumas considerações a respeito da “Teoria da dependência”, que entre muitas propostas, colocou na agenda de maneira incisiva os problemas implicados na ideia de “desenvolver” países de Terceiro Mundo, refletindo também em que medida a filosofia na América Latina foi por muito tempo parte de um sistema global de dominação. A partir da consolidação da noção de ocidentalismo e a partir da transformação interimperial do sistema capitalista, a antiga missão cristã colocada na América passa a ser uma missão civilizatória no sentido do pensamento, da reflexão e da racionalidade a partir do século XIX. Mignolo cita Enrique Dussel, na afirmação do sociólogo em que a América Latina foi a primeira periferia da Europa Moderna.

Pontua críticas às reflexões de Immanuel Wallerstein e Edward Said sem desqualificar seus trabalhos na totalidade. Coloca que ambos desconsideraram, cada um a sua maneira, a diferença colonial e minimizaram a importância da Espanha e de Portugal na ordem econômica e intelectual. Said, em sua obra, é criticado por não levar em conta que sem ocidentalismo, não há orientalismo, já que um é construto social do outro. Explica que o ocidente nunca foi o outro para a Europa, mas a diferença dentro do mesmo, de forma que a América foi a extensão europeia e não sua diferença, como foi o Oriente.

Como Mignolo disserta sobre a temática da modernidade e colonialidade através de pontos de contato e pontos de discordância com demais estudiosos, ele também faz uma colocação bastante pertinente em relação à Aníbal Quijano, Enrique Dussel e o brasileiro Darcy Ribeiro. O autor afirma que todos eles tiveram dificuldade de encontrar uma localização “para além do eurocentrismo” em seus estudos e não atentaram para um ocidentalismo que torna subalterno outras formas de conhecimento. Como não desqualifica por completo os trabalhos por ele analisados, o autor reitera a relevância da obra de Quijano, que, como sociólogo, analisa as crises epistemológicas e faz críticas ao conhecimento cartesiano europeu, pontuando suas diferenças com o conceito renascentista de ciência pautado primordialmente pelo humanismo e pela lógica, ao invés da observação e da experiencia.

No subtítulo subsequente, “As histórias locais do pensamento liminar”, Mignolo explica que histórias locais não são histórias dos colonizados, ponderando que se deve atentar para os projetos globais que são fermentados nas histórias locais dos países metropolitanos que por sua vez são encenados de formas distintas em locais particulares. De acordo com o autor, a partir do final do século XX torna-se tarefa mais difícil a identificação de projetos globais em países específicos, em decorrência da globalização do mundo e da relação conflituosa entre empresas transnacionais e Estados. Para Mignolo, o conceito de pensamento liminar não é definitivo – o que qualificaria uma contradição em termos –, mas que do seu ponto de vista ele emerge das histórias locais dos legados espanhois na América. A partir daqui, ele passa a dialogar com o filósofo marroquino Abdelkebir Khatibi, que faz uma dupla crítica aos fundamentalismos ocidentais e islâmicos e defende uma forma de pensar através de duas tradições e através de nenhuma, simultaneamente. É essa a ideia de um pensamento liminar. Liminar significa algo situado num limite e que se encontra num lugar de passagem. É e não é ao mesmo tempo. Assim, esse “outro pensamento” ancorado num pensamento liminar vai de encontro com uma dialética hegeliana que considera o curso da história como algo progressivo. Assim, um “outro pensamento” encaminha as reflexões a partir da consideração das histórias locais e suas diferentes relações com o poder.

Mignolo segue dialogando com Khatibi, frisando que o filósofo fez duras e necessárias críticas ao intelectuais marroquinos do período de descolonização, questionando- se em que medida apenas importou-se um pensamento europeu e criou-se uma mistura que em nada se diferenciava de um pensamento dicotomizante e simplista de teorias marxistas e teologias árabes. Nessa forma de pensar não se configura uma dupla crítica, tampouco um pensamento liminar.

Em termos epistemológicos, o potencial do pensamento liminar, segundo Mignolo, é a possibilidade de ir além da limitação de concepções modernas de razão e racionalidade. Já em termos éticos, o potencial se dá na medida em que um “outro pensamento” não é pautado em suas próprias limitações e não objetiva dominar nem menosprezar conhecimentos outros, portanto, não é etnocida. Para o filósofo argentino Enrique Dussel, o “mito da modernidade” e a razão moderna hierarquizaram conhecimentos e colocaram-se acima de todos eles a partir de atos genocidas. Aqui, Dussel pontua a contradição inerente da modernidade que racionalizou um pressuposto emancipatório na mesma medida em que o mito irracional da modernidade tenta encontrar justificativas para genocídios. Aqui cabe fazer uma relação com outro texto, “O entre-lugar das culturas”, em que Homi Bhabha critica o discurso liberal do multiculturalismo e a fragilidade de seus discursos de “tolerância”.

No caso de Khatibi, sua dupla crítica aos pensamentos ocidentais e islâmicos parte de um locus geoistórico de enunciação, que é a região do Maghreb. Diferentemente da ideia de nação, um locus geoistórico se configura como um lugar de passagem epistemológico. Particularmente a região em questão, ela é literalmente uma região de passagem, pois localiza-se entre o ocidente, o oriente e o continente africano. Esses lugares, segundo Mignolo, não devem ser considerados como “área a ser estudada”, mas sim como uma diferença que não pode ser narrada a partir de pressupostos da filosofia positivista. Nesse sentido, é necessário estar atento as pluralidades e historicidades das diferenças.

No subcapítulo que segue, “A descolonização epistêmica e a diferença colonial”, Mignolo faz considerações relevantes sobre a relação entre o “outro pensamento” e o pensar em línguas, visto que estar situado entre uma língua e outra está intimamente relacionado com a ideia de pensamento liminar. Aí entra a importância da tradução. Segundo Khatibi, é necessária a descolonização da sociologia a partir de uma tradução epistêmica que intervém no monoliguismo das ciências sociais.

Para essa discussão sobre línguas, Mignolo acha pertinente trazer o que Édouard Glissant dinstinguiu entre “mondialité” (globalidade) e “mondialisation” (globalização). No entendimento de Mignolo, globalização é a dimensão dos projetos globais, enquanto a globalidade é articulada nas histórias locais. A globalidade revela as histórias locais em sua complexidade a perspectiva de quem arquitetou os projetos globais interagindo com a perspectiva dos “modelos menores” e “nômades”.

No final do capítulo, o autor tece críticas ao sírio Aziz Al-Azmeh, por este se colocar contrário às possibilidades de diálogos interculturais e às perspectivas do culturalismo. O pensador sírio, segundo Mignolo, estabelece uma dicotomia entre a epistemologia ocidental e a retórica culturalista, indo de encontro com o que os intelectuais até então abordados por Mignolo no decorrer de seu texto defendiam.

Por fim, Mignolo pontua que a ideia de pensamento liminar não é totalmente inédita, visto que expressões como “consciência dupla”, “visão dupla”, “nova consciência mestiça”, “fronteiras da teoria” e “tradução dupla” já foram cunhadas por outros pensadores. O que todas têm em comum é a reflexão crítica do imaginário do sistema mundial moderno sob o ponto de vista da colonialidade do poder e de histórias particulares e locais da modernidade/colonialidade. Todas essas palavras e expressões rompem com as dicotomias, mesmo que elas próprias constituam uma. Assim, a principal ideia do pensamento liminar é pensar a partir de conceitos dicotômicos ao invés de organizar o mundo em dicotomias. Além disso, todas são críticas à colonialidade do poder e subjugação de diversas formas de conhecimento a uma única forma racionalizada e europeia.

 

 

 

Créditos na imagem: MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003

 

 

 

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